Opinião

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PT: vontade coletiva versus livre arbítrio

O cerne do debate que se travará na próxima reunião do Diretório Nacional do PT, nos dias 13 e 14 de dezembro, será em torno do próprio conceito de partido político. Ou seja: um partido político deve ser a expressão de uma vontade coletiva, formada a partir de regras democráticas internas ou deve ser o reino do livre arbítrio das vontades individuais? Se um partido é uma associação voluntária de pessoas que se unem para lutar por objetivos comuns, estruturam um estatuto e definem regras de convivência e de comportamento, então, não há como negar o direito democrático do PT de julgar disciplinarmente parlamentares que votaram contra as diretrizes do partido e contra decisões de suas instâncias dirigentes.

Negar esse direito ao PT, de julgar e punir infrações disciplinares de acordo com as regras estatutárias, consistiria em aviltar a democracia fundada no princípio da associação voluntária. Significaria consagrar um princípio fraudulento da democracia, que consiste no comportamento não segundo normas. A democracia, por definição, significa o império da lei. Nesse contexto, a democracia é negadora do comportamento arbitrário dos indivíduos, que pretendem se impor ou impor sua vontade exclusiva pela força, pela fraude ou por qualquer outro expediente que nega o processo do debate, da discussão de opiniões para a formação de consensos e fundamentação de processos deliberativos.

Se há algo de autoritário, não é o direito que o PT tem, com base nos seus estatutos, de julgar atos indisciplinares. Se há algo de autoritário é essa tentativa de fazer com que o corpo inteiro de um partido político se vergue à vontade arbitrária de poucos. É estranho que alguns intelectuais, sempre dados aos rigores conceituais, se esqueçam exatamente dos conceitos de democracia e de liberdade, de partido político e de vontade coletiva, dando-se o direito de emitir acusações contra o PT, sem cerimônias e sem critérios.

O PT só se viabilizou como partido forte porque soube combinar dois princípios: liberdade de opinião e de crítica e unidade de ação configurada, principalmente, na disciplina de voto das bancadas. Foi este paradigma partidário que o PT quis e em parte está conseguindo consagrar na vida política brasileira. Com isso, o PT se chocou e se choca com uma das tradições mais negativas da prática política no Brasil, que se articula com um dos aspectos de caráter que herdamos dos povos ibéricos: a negação da atividade política fundada no livre-arbítrio. Tinha razão Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, quando afirmava que as doutrinas que apregoam o livre-arbítrio são tudo, "menos favorecedoras da associação entre os homens".

Assim, não há como querer um partido forte, organizado, democrático, verdadeiramente representativo do eleitorado, se este partido se fundar na vontade arbitrária de cada um, principalmente daqueles que detém mandatos. Seguir este caminho é seguir a tradição política autoritária, do mando pessoal, do viés patriarcal, que na história do Brasil se impôs pela truculência física ou verbal dos coronéis, como tão bem retrataram Buarque de Holanda, Raimundo Faoro e Vitor Nunes Leal. Esse tradicional personalismo é avesso à boa disciplina e à organização, é desestruturador de vontades coletivas, de projetos e de interesses organizados. Nenhum grupo subalterno da sociedade, seja ele político ou social, terá qualquer chance de êxito se não se organizar e atuar a partir da formação de uma vontade coletiva.

Dessa forma, o PT não pode cair na armadilha de se intimidar com acusações sem fundamento e do emocionalismo lacrimejante, desprovido de conteúdo. Os que acusam o PT, os que reclamam, pestanejam e choram, precisam dizer qual é sua concepção de partido político. Mais do que isso: precisam dizer por que são contra uma reforma da Previdência que atacou privilégios para poucos que exauriam os recursos públicos. Uma reforma que diminuiu a desigualdade, estabeleceu o princípio da equidade e abriu caminhos para que milhões de brasileiros deserdados dos benefícios previdenciários possam ingressar no sistema de direitos.

Para que o debate não se perca em querelas sectárias e sensacionalistas precisa ser trazido para o terreno do conteúdo. É no terreno do conteúdo o lugar onde a democracia pode frutificar porque a democracia, além de ser regra, lei, ela é também argumento, opinião, convencimento. O PT deu todas as chances possíveis aos parlamentares que serão julgados por atos indisciplinares. Garantiu-lhes o direito de debater, de propor, de criticar publicamente as posições do Partido. Só não lhes franqueou a possibilidade de votar contra a organização partidária porque isto significaria o princípio da auto-destruição.

Na medida em que os parlamentares em questão romperam unilateralmente com o PT e já que o PT é uma associação voluntária, como define o artigo I dos Estatutos, o caminho mais lógico e coerente desses parlamentares seria o de se desligarem do Partido. Incoerentes com o PT, parecem ser incoerentes consigo mesmos ao permanecerem numa agremiação que condenam, que fazem oposição sistemática, que agridem verbalmente seus dirigentes. Além de romperem com a disciplina partidária romperam com a possibilidade de um convívio interno de companheirismo, adequado aos que pertencem a uma mesma comunidade partidária.

José Genoino - Presidente Nacional do PT

06 de Dezembro de 2003

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