Opinião

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Discurso de Genoino no Congresso da Internacional Socialista

Para o PT, como convidado e anfitrião, é uma honra a escolha do Brasil para a realização do 22° Congresso da Internacional Socialista. Esta escolha, acreditamos, honra não só o nosso partido, mas também os demais partidos de esquerda brasileiros, o nosso governo e o nosso povo. Nosso compromisso é de investir cada vez mais numa relação regional, bilateral e multilateral com todos vocês.

A Internacional Socialista realiza seu Congresso no Brasil num momento especial: pela primeira vez em sua história, o país está sendo governado por um partido de esquerda e por um presidente que tem toda sua história de vida comprometida com a luta em defesa dos interesses do povo e dos trabalhadores; comprometida com a defesa dos valores da liberdade, da justiça, da equidade e do bem estar para todos. Penso que a Internacional Socialista expressa uma das várias tradições da esquerda, que nasceu no século XIX, sobreviveu ao turbulento e sangrento século XX. Nada mais oportuno submeter ao debate esta longa trajetória e renovar o ideário da esquerda para que possamos acalentar as esperanças de um mundo melhor, a ser construído ao longo do século XXI. Por isso, se este Congresso é especial para os dirigentes da Internacional e para os partidos que a integram, é especial também para o PT. Viemos aqui para dialogar e para aprender, com a certeza de que comungamos valores comuns e de que pugnamos por lutas semelhantes. Aliás, um dos grandes méritos da Internacional Socialista foi o de adotar o pluralismo político e partidário como princípio e como prática. Pluralismo que se expressa de forma viva neste Congresso, através de uma variedade de representações partidárias. Outro grande mérito da Internacional Socialista foi o de ter reconhecido nas formas democráticas de governos, desde o alvorecer do século XX, um princípio e um meio fundamental para alcançar sociedades livres, justas e igualitárias. A idéia de que a democracia é um meio e um fim ao mesmo tempo, é algo que deve ser sempre renovado e reconhecido nos encontros e nos documentos da esquerda. O PT, desde sua origem, comunga desta idéia: a instituiu como prática interna, como prática política na sua relação com a sociedade e a está renovando, agora, como prática de governo.

A humanidade vive um momento no qual se acentuam relações desumanizadas e de um individualismo exacerbado. Depreciaram-se os valores da justiça, da igualdade, do bem estar e da solidariedade. Erigiu-se como nova ideologia dominante a crença de que a técnica e o mercado são a solução para tudo. Essa ideologia antipolítica procura despolitizar as relações humanas e os conflitos sociais e econômicos. Por isso o tema que preside este Congresso, "O Retorno da Política", foi uma escolha necessária e bem feita. A política é uma exigência imprescindível para se tratar de forma adequada a pluralidade, a complexidade e a singularidade dos seres humanos. Somente a mediação política é capaz de encaminhar soluções pertinentes dos conflitos humanos e de estabelecer os fundamentos éticos e a sociabilidade de uma vida em comunidade. Não negamos a necessidade da técnica na busca de soluções para os problemas da vida social. Mas as soluções técnicas só serão eficazes e efetivas se forem presididas pela política.

A tarefa da esquerda hoje é dupla: por um lado, é preciso reafirmar compromissos e valores históricos. Por outro, é preciso enfrentar os novos desafios com novos paradigmas, com novos parâmetros, com novas soluções e agregando novos valores à sua tradição política e intelectual. As boas tradições - a esquerda é uma boa tradição - só perduram no tempo se forem capazes de se renovar internamente, de renovar suas formas de pensar e de agir. A esquerda deve ser capaz de ser contemporânea. Com isso, além de se renovar, evitará ser caudatária de outras tradições. O perigo que ronda a esquerda neste início de século é a de ser caudatária do liberalismo conservador. O liberalismo político contribuiu de forma decisiva na conquista da liberdade e na construção da democracia. Mas não há como não reconhecer que, nas últimas décadas, o liberalismo esteve trilhando o caminho do conservadorismo. O liberalismo conservador abandonou os caminhos da melhor tradição republicana, a da preeminência do bem público. Tradição que nós, da esquerda, devemos cultivar. A vitória do PT e o governo do PT representam uma infusão de ânimo e uma infusão de renovação de caminhos e do ideário da esquerda.

Ser de esquerda é uma distinção plena de sentido no presente e continuará a ser plena de sentido, ao menos até onde a imaginação e o pensamento podem se projetar para o futuro. A realidade de fartura e riqueza para alguns, e de pobreza, violência, injustiça e opressão para bilhões, que motivou o surgimento da esquerda, não só persiste em nossos dias como, em vários aspectos, se tornou mais brutal, mas dramática e mais inaceitável.

A esquerda não pode aceitar que, enquanto riqueza e renda se concentram, quase a metade da humanidade viva com menos de US$2 por dia, como disse ontem o companheiro Guterrez. A esquerda não pode aceitar que a exclusão política marque um novo apartheid.

Ser de esquerda significa colocar o ser humano antes do lucro, a coletividade acima dos interesses particulares, o bem público acima da acumulação privada.

Se há um novo desafio para a esquerda mundial, esse desafio é o de reduzir a pobreza mundial. Pela primeira vez na história da humanidade, o problema da pobreza global se apresenta como um problema concreto e efetivo a ser resolvido por governos, sociedades e instituições internacionais. É tarefa e responsabilidade da esquerda liderar em qualquer país, em qualquer comunidade e nos fóruns internacionais, a busca de soluções para o problema da pobreza mundial.

A esquerda aprendeu que a estabilidade econômica é condição necessária, embora insuficiente, do desenvolvimento. Aprendeu também que políticas sociais compensatórias são necessárias. Mas a esquerda também sabe que a superação efetiva da pobreza e a verdadeira inclusão social só serão alcançadas com a distribuição da renda e da riqueza, com a criação de empregos e de oportunidades e com o desenvolvimento sustentável, que preserve condições adequadas do meio ambiente para a vida humana e para outras formas de vida. Esses bens não se disseminarão pelo mundo sem uma respectiva disseminação do conhecimento, da tecnologia, do acesso à saúde e à educação, da existência do saneamento básico e de condições dignas de moradia.

Além da facilitação do acesso e da democratização desses bens estruturantes, o desenvolvimento requer também a superação das assimetrias de comércio entre países ricos e pobres.

Ser de esquerda significa não aceitar a financeirização das relações humanas e o aprisionamento das economias dos países em desenvolvimento aos ditames do capital financeiro internacional. A desregulamentação do capital financeiro internacional e o poder sem precedentes dos grandes grupos transnacionais conferiram-lhes poder de desestruturação e de desnacionalização das economias dos países em desenvolvimento. No rastro desse poder foi produzida uma mão- de-obra mundial barata, nova condição de alta lucratividade na economia globalizada.

Hoje, não se trata tanto de discutir mais Estado e menos mercado, ou mais mercado e menos Estado. Trata-se de discutir e definir regras e condições justas sob as quais os mercados e os capitais devem operar. Elegemos presidente, governadores, deputados, senadores, mas não elegemos mercado. Trata-se de ter uma sociedade mais ampla que o mercado.

Muitos países estão, hoje, inviabilizados por suas dívidas financeiras. É preciso encontrar formas de atenuá-las para aqueles que vivem em situações mais dramáticas. Os países ricos devem aumentar sua destinação de recursos em forma de ajuda e de capacitação e não de empréstimos, principalmente, para os países da África.

A América Latina, especialmente a América do Sul, vive um difícil e complexo aprendizado democrático. Ao que parece, conseguimos deixar para trás as perspectivas de regimes autoritários. Avançamos na consolidação de instituições democráticas, mas ainda não conseguimos fazer com que a democracia adquirisse um conteúdo econômico e social. Este, talvez, seja o maior desafio da esquerda na região. Concentração de renda, pobreza, corrupção estrutural, deficiências administrativas, violência, narcotráfico, fragilidade dos nossos sistemas de saúde e educação, precariedade de direitos e falta de democratização do direito de propriedade são algumas das faces dos males que não nos deixam. Na América do Sul, desde o início dos anos 90, só o Chile e o Uruguai não tiveram presidentes afastados do poder pelo clamor das ruas. A Colômbia também não teve um presidente deposto neste período, mas vive um conflito interno sangrento, que se prolonga há décadas. Se a democracia institucional resistiu bem a estas provas, as demandas não satisfeitas dos nossos povos que se transformaram em marchas e barricadas, demonstram que ainda não somos capazes de produzir bons governos e boas soluções. Para nós, da esquerda, esses acontecimentos, como os que aconteceram recentemente na Bolívia, devem servir, ao mesmo tempo, de esperança, porque representam um despertar cívico das nossas populações, e de alerta, porque essas populações querem um sentido de urgência na solução de seus problemas.

A esquerda latino-americana e sul-americana deve colocar-se à frente dos processos de integração da região. Precisamos fortalecer o Mercosul e as outras estruturas e blocos regionais de integração. Precisamos criar uma correlação de força mais favorável aos países latino-americanos no processo de negociação da Alca com os Estados Unidos. Devemos manter a perspectiva da construção de uma Alca ampla, mas simétrica, que não represente uma ameaça de ruína das economias mais fracas. A esquerda deve ser construtiva e buscar consensos, desde que sejam justos, equilibrados e eqüitativos e não lesivos aos nossos povos e às nossas soberanias.

Outro grande desafio da esquerda neste início de século e de milênio é o de construir as condições de paz e de segurança mundiais. Pela primeira vez na história, a humanidade vive um momento no qual as grandes potências e demais Estados podem competir entre si sem o recurso à violência.

Construir um mundo pacífico e tolerante implica reconhecer o caráter multicultural e multicivilizacional das sociedades e dos povos. Significa recorrer às medidas de mediação, negociação e de persuasão como instrumentos fundamentais para solucionar conflitos e impasses. Significa não interferir ou apoiar com armas ou força uma das partes envolvidas nos conflitos internos de países específicos. Os princípios da não-ingerência e da mediação conjunta, comandada pela ONU, são os melhores conselheiros da paz e da segurança mundiais. A paz e a segurança mundiais só prosperarão se o mundo for capaz de produzir relações e instituições supranacionais que expressem um equilíbrio de poder entre os Estados.

O surgimento e o desenvolvimento de uma sociedade civil mundial é algo necessário e desejável. Ela deve se instituir como um contra-poder à concentração de poderes econômicos, políticos e militares proporcionados pela globalização. Trabalhar para que se desenvolva com vigor esta sociedade civil mundial, deve ser um dos objetivos fundamentais da esquerda contemporânea.

O terrorismo precisa ser repudiado e combatido. Suas maiores vítimas são sempre os inocentes. Mas o combate ao terrorismo precisa voltar-se também para remover causas e solucionar demandas que o geram. É inadmissível que a comunidade internacional não tenha conseguido, até hoje, ter encontrado uma solução justa para o conflito palestino-israelense. O combate ao terrorismo, por outro lado, não pode se tornar uma cortina de fumaça para camuflar uma política internacional unilateral pelas potências mais fortes, particularmente pelos Estados Unidos. O regime de Sadam Hussein merecia o mais veemente repúdio da humanidade, devido à sua brutalidade. É verdade também que as mentiras, hipocrisias e falsidades que se criaram para justificar a guerra representaram uma involução no padrão moral dos Estados e dos seres humanos. O combate ao terrorismo, da mesma forma, não pode representar um recuo das conquistas dos direitos civis e das liberdades individuais.

Quanto ao combate ao narcotráfico internacional, à ação das máfias, à lavagem de dinheiro da corrupção e de outros ilícitos e à existência de paraísos fiscais não se vê, por parte dos países desenvolvidos, uma disposição e ações claras. É de se perguntar sobre as razões dessa apatia. As próprias instituições internacionais precisam adotar um pronunciamento mais incisivo no combate a esses males que se projetam, principalmente, sobre as comunidades pobres e sobre os países menos desenvolvidos.

A atitude de esquerda exige, por fim, que se reitere de forma permanente o compromisso com a defesa e a promoção dos direitos humanos. Se há algo de universal que a humanidade conseguiu produzir até hoje é a Carta dos Direitos do Homem. Mas existe ainda uma distância abissal entre a proclamação dos Direitos e sua garantia efetiva para a maior parte da humanidade. Por isso, o compromisso da esquerda com os Direitos do Homem não pode ser meramente proclamatório, discursivo. Governando ou na oposição, Estados e instituições, a esquerda deve lutar de forma permanente e incansável para efetivar praticamente os direitos humanos.

O novo milênio surgiu pleno de desafios, de ameaças, de perigos, de esperanças e de oportunidades. O mundo sente o peso da tragédia representada pela fome global. A humanidade sente o perigo representado pela destruição do meio ambiente. Nas relações internacionais, observamos a existência de uma superpotência, cujos poderes são sem precedentes na história humana. O conhecimento, a ciência e a tecnologia estão nos levando para novas fronteiras da relação entre o homem e a natureza e entre o homem e o próprio homem. A biotecnologia representa muitas promessas e muitos perigos. Pode servir o bem na medicina, na produção de alimentos e no meio ambiente. Mas pode servir o mal através da manipulação genética de seres humanos e como instrumento de construção de poderes totalitários. A biotecnologia está implicada em sérias e complexas conseqüências éticas, às quais a esquerda deve ser capaz de contribuir no oferecimento de respostas e soluções.

A esquerda e os socialistas têm a tarefa de se empenhar na construção de um novo sistema multilateral, de uma nova ordem mundial. Uma ordem onde a globalização seja também a globalização da justiça, a globalização da paz, a globalização da democracia e a globalização dos direitos humanos. É com estes e com outros pressupostos que o PT estabelecerá uma correlação com a Internacional Socialista para sonhar com os pés no chão.

A Internacional Socialista tem que dar mais importância aos países da América Latina e da África. Estabelecemos aqui excelentes relações bilaterais. E, na condição de colaborador, não meramente um ato burocrático de filiação, queremos estabelecer uma construção política em torno de mudanças, programas e renovação de valores.

Muito Obrigado!

28 de Outubro de 2003

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