Opinião

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O equívoco da miniconstituinte

Algumas lideranças políticas, entre elas o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, lançaram a idéia da convocação de uma miniconstituinte para 2007, com o objetivo de promover uma reforma constitucional limitada a alguns pontos. Uma proposta dessa natureza acarreta uma série de implicações políticas e de legitimidade, que merece ser debatida publicamente. Quero afirmar preliminarmente que, a meu juízo, tal proposta se trata de um equívoco político e jurídico.

Antes de tudo, é preciso fazer algumas breves observações sobre a Constituição de 1988. Após 15 anos de promulgação, hoje praticamente ninguém duvida de que a Constituição tenha representado um avanço democrático, constituindo-se como causa da estabilidade política e institucional que o Brasil vem experimentando desde o final da década de 1980. Por outro lado, o ex-deputado Ulisses Guimarães tinha uma boa dose de acerto em ajuizar a idéia da "Constituição cidadã". De fato, a Constituição avançou e afirmou direitos coletivos e individuais e abriu as portas para ampliação da cidadania. Foi na esteira da Constituição que sobrevieram vários estatutos de cidadania, que ampliaram a garantia de direitos. Basta citar o aperfeiçoamento do Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e, agora, o Estatuto do Idoso, etc. Os direitos da mulher foram significativamente ampliados, direitos de minorias foram reconhecidos e direitos sociais, confirmados. Claro que ainda existe uma distância significativa entre os textos constitucionais e legais e a realidade social e material. Mas, sem dúvida, a Constituição foi e é a estrada pela qual o Brasil caminha rumo à ampliação de direitos e à afirmação de cidadania.

Desse ponto de vista, é um erro supor que a Constituição seja a causa de todos os males e sua revisão, a tábua de salvação nacional. É verdade que a Lei Magna constitucionalizou muitos temas que poderiam ter permanecido na legislação infraconstitucional. O problema é saber se existia outra saída.

Ocorre que a Constituição brasileira nasceu de um processo de redemocratização, levado a efeito por pactuações cujo conteúdo era definido por correlações de forças. Não se pode compará-la, portanto, à Constituição norte-americana, que nasceu de um processo de ruptura e de fundação de um país. Esta teve por base um processo constituinte e fundacional protagonizado pelo povo, tendo o pacto sido subseqüente a esse processo. A nossa Constituição teve no pacto a própria gênese. E para que o País não fosse conduzido a impasses os vários pactos foram constitucionalizando temas diversos. Há que notar também que, no mundo contemporâneo, emergiram novas realidades econômicas, políticas, sociais e culturais que merecem uma abordagem constitucional.

A proposta de miniconstituinte para 2007, em primeiro lugar, tem um problema de legitimidade. A Constituição de 1988 determinou dois mecanismos de mudança constitucional:

Revisão ampla da Constituição, que deveria processar-se cinco anos após sua promulgação - isto é, em 1993; e por meio de emendas constitucionais com quórum qualificado.

O primeiro mecanismo foi superado pelo tempo, na medida em que a revisão não foi realizada na época prevista. Na minha avaliação, tratou-se de um equívoco não realizá-la. O País poderia ter superado impasses em 1993, que se repuseram ao longo do tempo e, em parte, persistem até hoje.

Sobrou o segundo mecanismo, que está em andamento. Já foram promovidos ajustes na ordem econômica e estão em andamento mudanças na Previdência e na tributação. Na ordem tributária, na verdade, está sendo dado um primeiro passo, que deve ser completado com mudanças futuras, buscando equacionar melhor a relação entre os entes federados e introduzir a justiça tributária.

São necessárias, ainda, mudanças significativas nos temas do Judiciário e das relações de trabalho. O chamado pacto federativo distribui-se em vários desses temas e o seu ajustamento permeia as várias reformas constitucionais que vêm sendo feitas.

A proposta da miniconstituinte tem, portanto, um problema de legitimidade e de legalidade, na medida em que não foi autorizada pela Constituição. Não é legítimo nem constitucional convocar uma miniconstituinte por proposta de emenda constitucional. Esse precedente mergulharia o País numa grave insegurança jurídica e constitucional. Maiorias parlamentares futuras poderiam convocar novas miniconstituintes ao sabor dos acontecimentos. O Brasil agora precisa de tempo para consolidar seu sistema constitucional, processando as mudanças que a vida impõe por meio de emendas constitucionais.

Alguns observadores especulam que por trás da proposta da miniconstituinte estaria a idéia da retomada da tentativa de instituir no Brasil o sistema parlamentarista. Essa intenção também bate de frente com o problema da legitimidade. O atual sistema presidencialista de governo foi definido por plebiscito. Somente um novo plebiscito teria a legitimidade de pronunciar-se sobre o assunto. É por essas razões que a proposta de uma miniconstituinte representa um equívoco político e jurídico.

11 de Outubro de 2003

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