Opinião

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O PT e a democracia partidária

Ao participar da abertura do 48º Congresso da UNE, desenvolvi uma análise de conjuntura centrada nos desafios que um governo de esquerda precisa enfrentar no Brasil para obter êxito. A análise incorporava a seguinte constatação: em experiências recentes na Europa, quando governos de esquerda sofreram oposição de esquerda, quem se fortaleceu foi a direita. Isso pode ser observado na Itália, com a vitória de Berlusconi; na Espanha, com o longo reinado de José Maria Aznar; e na França, quando, nas últimas eleições, o ultradireitista Le Pen passou para o segundo turno, deslocando o Partido Socialista.

Essa mesma lógica empírica pode ser observada em experiências de governos locais de esquerda no Brasil. Luiza Erundina em São Paulo, Vitor Buaiz no Espírito Santo, Cristovam Buarque em Brasília e Telma de Souza em Santos, que tiveram suas administrações acossadas por setores de esquerda e por grupos corporativos, foram substituídos por governantes de perfil conservador. Essa análise, fundada em fatos, suscitou em alguns articulistas da Folha e até mesmo em um de seus editoriais ("O "jogo da direita"", pág. A2, 23/6/03) a acusação de que eu teria ressuscitado argumentos compatíveis com a velha esquerda, alinhada à antiga União Soviética.

Aliás, alguns articulistas da Folha têm desencadeado uma crítica sem precedentes contra o PT. Os ataques têm como foco as medidas disciplinares que o partido vem adotando contra alguns parlamentares, denominados pela imprensa de radicais. A história do PT é marcada pela promoção de dois valores: liberdade de opinião e disciplina partidária, definida pela unidade de ação. As lideranças e a militância do PT sempre acreditaram que só a instituição de um sistema partidário forte poderá consolidar a democracia no Brasil.

De fato, um dos problemas endêmicos da consolidação da democracia brasileira é o caráter gelatinoso e a fragilidade do seu sistema partidário. A inexistência de um sistema partidário estruturado cria problemas tanto na governabilidade quanto na representação. A prevalência de interesses individuais sobre as coletividades partidárias obriga os governos a cooptar suas bases parlamentares a partir da distribuição de cargos e favores. Por outro lado, a fragilidade dos partidos falseia também a representação: os eleitores se identificam com candidatos, com parlamentares individualizados, não com idéias e programas partidários.

No fundo, o conflito que se expressa no interior do PT, entre a direção e os chamados radicais, está relacionado a essa deficiência da democracia brasileira, que se projeta negativamente sobre a própria democracia partidária. Ou seja, o que está em jogo é o experimento do PT de tentar estruturar uma agremiação verdadeiramente partidária, fundada na democracia interna, na liberdade de opinião, na unidade de ação e na disciplina partidária. A democracia do PT está definida no seu estatuto, que é o seu código da vida ética e política. Esse estatuto, ao garantir o direito de opinião dentro e fora do partido, define também a preeminência do coletivo sobre o individual. O aspecto fundamental dessa preeminência é a unidade de ação. Sem essa hierarquização, a vida partidária seria uma farsa.

No âmbito da vida no partido, a liberdade de opinião e eventuais divergências não desobrigam as pessoas de uma conduta construtiva, responsável, respeitosa, solidária e da observância das decisões partidárias. O que os chamados radicais fazem é uma sistemática oposição às decisões do partido e ao governo, caracterizada por participação em atos hostis ao PT e ao governo, divulgação de fitas, agressões verbais e vaias aos líderes do governo e do partido, indisciplina de voto na escolha da mesa do Senado etc.

Para sermos democráticos, é preciso observar também que o povo brasileiro estabeleceu uma determinação imperativa ao PT: ser um partido de governo. O processo eleitoral democrático deu a função de oposição a outros partidos. Assim, não é coerente, nem democrático, nem ético permanecer no PT e fazer oposição ao governo. O PT não pode aceitar que três ou quatro parlamentares, ao sabor de suas vontades arbitrárias, tornem-se juízes públicos do partido e do governo, beneficiando-se, inclusive, da condição de pertencer ao PT.

No dia em que o PT aceitar o reino da vontade arbitrária de alguns indivíduos sobre o coletivo, estará aceitando o princípio da fragmentação do próprio partido. É por acreditar que a democracia se funda em regras de vida coletivas que o PT adotou as medidas disciplinares contra os quatro parlamentares. Essas medidas em nada agridem o direito de opinião. A Executiva do PT ofereceu aos parlamentares dissidentes a possibilidade de um acordo: eles poderiam manifestar livremente suas convicções, desde que se comprometessem a votar conforme as decisões partidárias. O acordo foi recusado.

Resta decidir agora se analistas e articulistas entendem que a democracia se define pelo arbítrio da vontade individual ou por um conjunto normativo da vida em comunidade. A melhor tradição da filosofia política, no entanto, sempre definiu a democracia como o império da lei.

30 de Junho de 2003

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