Opinião

Versão para impressão  | Indicar para amigo

Os intelectuais e o governo

Intelectuais de esquerda, tradicionalmente ligados ao PT, têm emitido fortes críticas ao rumo do governo Lula. São dois os focos das críticas: a condução da política econômica e a reforma da Previdência. Os intelectuais, de fato, não só no governo Lula, mas em qualquer governo, devem manter sua autonomia em relação ao poder e desempenhar o seu papel, no sentido de produzir teoria e pensamento críticos. Seria desastroso para a reflexão e para a sociedade se os intelectuais se tornassem áulicos do poder.

A crítica, no entanto, embora deva ser sempre livre, pode se tornar estéril e nociva se assumir uma perspectiva meramente destrutiva. Além de lançar as luzes do esclarecimento sobre a realidade e os acontecimentos, a crítica deve ter o intuito de construir alternativas e indicar saídas. Posta neste horizonte positivo, a crítica pode suscitar um debate produtivo no próprio ambiente da intelectualidade, entre os intelectuais e os políticos e entre os intelectuais e outros agentes sociais. Posta de forma destrutiva, a crítica não passará de uma fúria do nada, de um desencanto com o mundo.

Nas críticas dos intelectuais de esquerda ao governo tem se verificado a ambivalência tanto da proposição e do esclarecimento, quanto da destruição. Alguns intelectuais deserdaram, acreditamos que prematuramente, da esperança de que o governo Lula possa construir um caminho de esquerda no Brasil.

A deserção é prematura por várias razões. Em primeiro lugar, é preciso levar em conta a crise de paradigmas em que a própria esquerda se encontra. Com efeito, após o colapso do socialismo autoritário, o pensamento de esquerda não conseguiu construir um núcleo de idéias coerentes e consistentes, capaz de ganhar força política e consistência programática. O contrário ocorreu com o liberalismo conservador, que conseguiu estruturar uma visão de mundo e um programa de reformas que se tornaram hegemônicos no mundo globalizado, no mundo pós-Guerra Fria.

Além do desmoronamento do socialismo autoritário, a esquerda encontra dificuldades de consolidar uma via democrática de atuação, que lhes seja específica. A esquerda européia, por exemplo, adotou o caminho da submissão ideológica ao liberalismo conservador, tornando-se uma variante do mesmo. Governos de esquerda e de centro-esquerda na América Latina ou fracassaram ou encontram dificuldades de viabilização. Os casos mais notórios são os da Argentina e o da Venezuela.

É neste contexto de dificuldades que o governo Lula precisa ser avaliado, não só no que ele vem sendo até agora, mas também nas suas tendências futuras. Todos os que têm senso de realidade sabem das condições de grave crise em que o governo Lula encontrou o país e das desconfianças generalizadas que se projetavam sobre a nova administração. Estancar a crise revertendo o seu fluxo e estabelecer condições de confiabilidade no novo governo foram duas condicionalidades a serem enfrentadas de forma imperativa. Sem o enfrentamento e remoção dessas condicionantes, a governabilidade mínima não estaria garantida. A alternativa a isso seria o aprofundamento da crise e a ingovernabilidade, caminho que se traduziria no fracasso de um experimento da esquerda no seu nascedouro.

Em segundo lugar, é preciso considerar as restrições que o sistema hegemônico global, particularmente o sistema financeiro, impõe aos governos dos países periféricos. Não deve ser novidade para os intelectuais que parte significativa da soberania dos países periféricos encontra-se aprisionada pelo sistema hegemônico vigente. O espaço de manobra desses países e de seus governos é relativamente restrito. Criar um novo caminho para a esquerda democrática implica combater essa hegemonia com uma contra-hegemonia coerente e estruturada, algo que ainda está em definição.

Em terceiro lugar é necessário olhar para a própria correlação de forças internas ao país. Os partidos de esquerda contam com apenas 174 deputados num universo de 513 parlamentares na Câmara. No Senado, são 25 senadores de partidos de esquerda, num total de 81. O PT governa cerca de 180 municípios num total de 5.000, e venceu as eleições em apenas três estados, que não são os mais importantes da federação.

Com esses parâmetros de realidade, pensar que o governo Lula é um governo de transição para o socialismo é pensar uma ilusão. Até mesmo porque sequer os parâmetros do que seja o socialismo estão definidos. O governo Lula pode ser definido como um governo de transição no rumo de quatro grandes objetivos: a retomada do desenvolvimento com a geração de emprego e distribuição de renda, o aprofundamento da democracia, justiça e inclusão social e inserção internacional do Brasil com a redefinição e reconstrução da soberania. Essa transição é lenta e dura. Mas somente seu êxito poderá garantir as perspectivas positivas de viabilização e consolidação de uma experiência inovadora de esquerda no Brasil.

12 de Junho de 2003

Busca no site:
Receba nossos informativos.
Preencha os dados abaixo:
Nome:
E-mail: