Opinião

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Pelo fim da guerra

Os Estados Unidos até podem ganhar a guerra, mas já perderam a batalha moral. As razões dessa derrocada são múltiplas. A principal, talvez, consista no fato de que a nação mais forte do mundo promova um ato brutal de agressão a uma outra nação muito mais fraca, sem nenhuma justificativa legítima. O que se vê reinstaurado hoje, no plano das relações entre as nações, é o bárbaro direito do mais forte.

Com o ataque ao Iraque, os Estados Unidos puseram por terra o direito internacional e desmoralizaram a ONU. Que credibilidade tem a ONU depois de ter patrocinado o desarmamento do Iraque e permitir que o país fosse atacado? Como pode se falar em direito internacional quando a vontade do mais forte agride outro país em nome de uma ataque preventivo? A tese do "ataque preventivo" se funda no mais absurdo arbítrio e à medida em que ela passa a vigorar autoriza a instauração do reino da violência e da destruição da humanidade. Só se pode julgar um país ou uma pessoa através de seus atos e ações. Seria uma rematada loucura, por exemplo, se as normas autorizassem que nós atacássemos nossos vizinhos na suposição de que algum dia eles vão nos assaltar. O mesmo ocorre com a tese do ataque preventivo.

Por outro lado, atacar o Iraque, promover uma destruição devastadora de bens públicos e privados, proporcionar a morte de muitos civis inocentes e de milhares de militares adversários em nome da derrubada de um governante, por se tratar de um ditador, expressa uma agressão ao consagrado direito de autonomia e soberania dos povos. Promover a pressão e utilizar armas pacíficas para forçar Saddam Hussein a se desarmar e a respeitar os direitos humanos é uma coisa bem diferente do que usar a mais poderosa máquina de guerra para destruir e matar. Cabe aos iraquianos, em última instância, decidir que regime e que governante desejam. Nenhuma nação, nenhum povo, pode advogar o direito de decidir pelos outros.

É esta desrazão, praticada pelos Estados Unidos e seus aliados, que faz com que qualquer argumento que utilizem para justificar a guerra caia na vala da ilegitimidade. É por ter percebido o caráter injustificável e imoral dessa guerra que a maioria da opinião pública mundial voltou-se contra ela. É tudo isso que faz com que o presidente de uma nação democrática, George W Bush, seja mais repelido e odiado do que um ditador como Saddam Hussein. Por estarem promovendo a violência para atingir fins obscuros e absurdos, os Estados Unidos e seus aliados perderam a condição moral de agirem em nome de valores como a liberdade, a democracia e o direito.

Por mais que se advogue o nome de Deus para promover essa guerra, a face trágico-farsesca desse argumento consiste no fato lamentável de que, mesmo antes que a guerra acabe, se discuta a partilha, entre empresas norte-americanas, sobre os lucros da reconstrução do Iraque. Por ser uma guerra estúpida e sem sentido para a humanidade, numa era de globalização do mundo, ela já provoca uma série de contra-efeitos nos Estados Unidos, no Iraque e no países árabes.

Nos Estados Unidos, país que irradiou a liberdade e a democracia desde o final do século XVIII, vê-se, hoje, sua mídia transformar um trágico e terrível acontecimento humano numa mera discussão sobre táticas de guerra. Trata-se de uma profunda desumanização, um culto ao cientificismo e à técnica de matar. No Iraque, o que se vê, é um povo empobrecido e oprimido por um ditador apoiando o seu governo por repudiar a brutal agressão e invasão do seu território. Nos demais países árabes, a guerra fomenta o radicalismo e o ressentimento contra o Ocidente. Dessa forma, a guerra rechaça a possibilidade de que aqueles povos simpatizem com a democracia e aceitem um mundo multicultural e multicivilizacional.

Com esta guerra, a democracia e a liberdade perdem nos Estados Unidos, perdem no Iraque e perdem nos países árabes. Talvez, uma de suas maiores heranças seja o crescimento do ódio e do ressentimento. Os grupos islâmicos radicais poderão ver cada vez mais no terrorismo o único meio de se vingar do agressor mais poderoso do mundo. A guerra dissemina a crença de que as ferramentas da violência constituem os melhores meios para se alcançar objetivos ou para se vingar dos outros. O terrorismo e a violência, como o sabemos, não representam saídas e são meios condináveis.

Mas por mais cruel e desanlentadora que seja a guerra, não podemos deixar de alimentar uma chama de esperança. O fato é que milhões de pessoas estão protestando e indo às ruas para pedir a paz. A maioria da opinião pública mundial repudia a guerra. Isto pode ser um indicador de um avanço civilizatório da humanidade. A maior parte dos seres humanos parece estar dizendo que vivemos num tempo em que a guerra não é mais um meio aceitável para atingir objetivos de nações ou de governantes. Este sinal, esta esperança, deve nos empurrar para as ruas para exigir o fim da guerra. Se instituições como a ONU desmoronaram, que se erga algo novo sobre o qual possa tremular a bandeira branca da paz.

29 de Março de 2003

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