Opinião

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Moralidade pública e reforma política

 

No debate ético-político atual, aguçado pelo caso Waldomiro Diniz, observa-se que há um certo viés moralista abstrato na abordagem que se faz sobre o governo e o PT, em prejuízo da focalização das verdadeiras causas que produzem sucessivas crises políticas como decorrência de práticas públicas condenáveis. A rigor, de forma mais ou menos intensa, observa-se que, após a redemocratização do país, todos os governos foram atingidos por crises vinculadas a práticas públicas ilícitas ou a atos de corrupção propriamente ditos. Esta recorrência projeta a necessidade de se proceder a uma reflexão mais profunda sobre as causas dessas crises. Analisar a natureza das instituições políticas parece ser um bom caminho para perscrutar as razões das crises e possíveis soluções. Registre-se que as formulações da filósofa Marilena Chauí têm contribuído para firmar esse entendimento.

No processo de construção do Estado moderno e das democracias modernas se consolidou a compreensão de que a boa política e até mesmo o bom governo dependem da natureza das instituições. Maquiavel descobrira essa equação ainda na origem da era moderna. Os federalistas norte-americanos, ao lançarem os sólidos fundamentos da Constituição dos Estados Unidos, também seguiram por esse caminho. O pressuposto básico dessa equação consiste na idéia de que as instituições públicas devem bloquear os potenciais destrutivos da natureza humana. O legislador, dizia Maquiavel, deve pressupor que todos os homens são pérfidos, mesmo que na vida prática não o sejam. É essa consideração que faz emergir boas leis e sólidas instituições.

Todo o sistema de equilíbrios, freios e contrapesos que caracterizam os bons arranjos democrático-republicanos do poder se baseiam nessa equação. Em suma, o poder deve ser capaz de controlar o poder, como sentenciavam os federalistas.

Podem ser descobertas várias deficiências e lacunas se as instituições políticas brasileiras forem analisadas a partir do enfoque axiomático resumido acima. Nem sequer existe um bom sistema de equilíbrios, freios e contrapesos entre os três ramos centrais do poder: Executivo, Legislativo e Judiciário. Só nesse aspecto temos um foco incubador de várias crises. As crises que espocaram sobre os últimos governos, no entanto, têm seu foco num nível inferior de instituições e leis. Resultam das imperfeições e permissividades que se estruturam nos sistemas eleitoral e partidário.

O modelo privado de financiamento de campanhas faz com que se alastrem a partir dele os longos tentáculos da corrupção. É a partir dele que se estabelecem relações perigosas entre grupos de interesses e futuros políticos. Por mais aceitáveis e necessárias que sejam as cruzadas moralistas, o mal da corrupção da política brasileira não será remediado se não se atacar a sua causa. Claro que uma legislação penal mais dura contra as práticas de corrupção também vem a calhar.

Além de instituir o financiamento público das campanhas, deve-se buscar um modelo de eleições que as torne mais baratas. Os altos custos de produção de programas de TV para o horário eleitoral gratuito é um desafio sobre o qual se devem debruçar políticos e especialistas. Não se pode instituir o financiamento público das campanhas a partir de uma lógica que projeta a necessidade de um aporte de recursos públicos crescentes para financiar o alto custo das campanhas. O financiamento público deve estar articulado com um sistema mais complexo de medidas de reforma política, com o objetivo de simplificar o sistema eleitoral e tornar as eleições mais econômicas.

A reforma dos sistemas eleitoral e partidário deve buscar ainda outros escopos. Um deles consiste em diminuir o custo da governabilidade. Ou seja, os últimos presidentes eleitos não conseguiram agregar maiorias parlamentares no processo eleitoral. Essas maiorias são construídas a posteriori, implicando a inflação do mercado de apoios políticos no Congresso e uma descaracterização programática dos governos. Buscar um sistema eleitoral e partidário mais racional, que seja propiciador de maiorias e minorias parlamentares definidas, já no processo das eleições, é algo que tornará os governos mais fortes e menos dependentes das injunções das práticas fisiológicas. A fidelidade partidária deve-se encaixar no contexto da reforma política e eleitoral mais ampla. Um dos aspectos que estimula a infidelidade partidária é exatamente esse jogo das coalizões a posteriori. Ele faz com que uma gama de parlamentares oposicionistas migre para a base governista.

É preciso observar que não serão cobranças ou juízos moralistas abstratos que estancarão essas sangrias. Nem serão os reclamos de coerência dos partidos, como os que são feitos agora ao PT, que serão capazes de introduzir uma racionalidade efetiva no comportamento dos políticos e das agremiações partidárias. Somente uma reforma política séria e profunda será capaz de abrir perspectivas para melhorar, a um só tempo, o sistema eleitoral e partidário e o desempenho dos governos. Na oposição, o PT insistiu por mais de uma década na necessidade da reforma política. No governo, já deu passos significativos para que ela seja aprovada, no máximo, até 2005. A pressão da sociedade e da opinião pública sobre o governo e o Congresso, certamente, seria um fator a mais a contribuir para sua aprovação.

13 de Março de 2004

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