Opinião

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Norberto Bobbio e a Esquerda

O filósofo e pensador italiano Norberto Bobbio, morto no último dia 09 de janeiro aos 94 anos, deixou para o pensamento político e para a filosofia do direito uma das maiores obras teóricas de caráter universal, construída no século XX. Além do seu caráter universal, sua obra tem um inequívoco viés de esquerda. Sua opção, nesse sentido, era consciente e explícita.

Na última década do século passado, num momento em que se intensificaram as proclamações decretando a morte das ideologias, Bobbio, com seu estilo simples e direto, não titubeou em afirmar a relevância da permanência da distinção política e ideológica entre direita e esquerda. Com efeito, a decretação da morte das ideologias e da validade da distinção entre direita e esquerda veio conectada a três fenômenos: ao colapso do comunismo; à globalização; e ao discurso (que não deixa de ser ideológico) do neoliberalismo propondo que as soluções no âmbito do poder público devem ser, substancialmente, de natureza técnica. Com isso, o discurso conservador procura impor a despolitização da própria política, sob a forma disfarçada e hegemônica de um novo discurso ideológico, centrado no argumento do fim das ideológicas e da preeminência da racionalidade técnica sobre a ação e o pensamento políticos.

Sem desconhecer as implicações técnicas nas questões políticas, principalmente no complexo mundo do nosso tempo, Bobbio reafirmou a localização da política no espaço da diferença e do conflito. A partir disso, sem negar outros critérios, definiu o conceito e do valor da igualdade como critério analítico do posicionamento acerca do a validade da distinção entre direita e esquerda. Ou seja, a direita faz um juízo negativo do ideal da igualdade social; e, ao contrário, a esquerda faz um juízo positivo do ideal da igualdade social. Bobbio, ao mesmo tempo, reconhece que existem diversas formas práticas de buscar a realização do ideal da igualdade, pressupondo assim o pluralismo não só no contexto mais amplo da sociedade e da política, mas no âmbito da própria esquerda.

Se aceitarmos a idéia de que a política se situa no espaço do conflito e de que as sociedades se movem em polaridades entre mais igualdade e de monos igualdade, então, a distinção entre direita e esquerda tende a perdurar como uma distinção válida até onde podemos imaginar as fronteiras do futuro. Ou, como diz o próprio Bobbio, do ponto de vista dos valores e do engajamento político, ser de esquerda continua válido "enquanto existirem homens cujo empenho político seja movido por um profundo sentimento de insatisfação e de sofrimento perante as iniqüidades das sociedades contemporâneas", mesmo que essas iniqüidades possam ser atenuadas.

Embora Bobbio tenha se orientado sempre por uma postura analítica isenta, sua teoria sobre a democracia influenciou de forma decisiva as correntes democráticas de esquerda. A leitura de Bobbio foi determinante para que essa esquerda aceitasse a idéia de que a democracia se define não só pelo conteúdo, mas também pela forma. Ao valorizar a forma – as regras e os procedimentos da democracia – Bobbio, contudo, não a reduziu ao formalismo esquemático, como fazem hoje muitos teóricos afinados com o neoconservadorismo.

Como formas e procedimentos, a democracia deve determinar-se por normas definidoras da legitimidade de quem pode governar e com que método governa. Em síntese, são as normas do sufrágio eleitoral e o método de governo segundo as leis. Bobbio também não opôs democracia representativa e democracia direta. Sustentou que a democracia representativa pode ser completada por formas de democracia direta.

Se a democracia se define por regras e procedimentos básicos, ela não é, contudo, estanque. O pensador italiano identificava nos movimentos históricos das lutas por direitos os processos definidores do conteúdo da democracia. A democracia, assim, era concebida por ele como um processo contínuo de democratização. Democratização da esfera política, democratização da administração pública, democratização das relações sociais e democratização das relações econômicas e de trabalho. Em suma, a democracia deve ser entendida como um movimento de afirmação dos direitos humanos, desdobrados em direitos políticos, civis, sociais, econômicos, ambientais, bio-éticos etc.

A teoria da democracia de Bobbio contribuiu para que as correntes de esquerda percebessem que é possível, e imprescindível, conciliar os valores da liberdade e da igualdade. A busca da igualdade deve ocorrer num contexto de manutenção das liberdades humanas fundamentais, preservando a forma política democrática. Esta talvez seja uma das maiores heranças que a esquerda democrática deva projetar para o futuro. A produção teórica de Norberto Bobbio, com seu iluminismo pessimista, além de sua relevância acadêmica, deverá continuar a projetar luzes de esclarecimento e de advertência sobre a prática política, principalmente, a prática política de esquerda.

17 de Janeiro de 2004

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