Opinião

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Colunismo político e julgamento moral

Ao ler determinadas colunas políticas da imprensa escrita, torna-se difícil divisar se, de fato, trata-se de uma coluna política fundada na especificidade analítica, ou se se trata de um texto de julgamento moral. Antes de ser acusado indevidamente de autoritário, como vêm sendo acusados o PT e o governo, quero declarar que não só sou favorável à liberdade de opinião, de expressão, de informação e de imprensa, mas dediquei parte da minha vida a conquistar essa liberdade. Em situação normal, essa declaração seria inócua, desnecessária e até soaria pretensiosa. Em tempos de acusações fáceis e abundantes, no entanto, é conveniente a caução com ressalvas declaratórias.

O que quero dizer é que me parece legítimo colocar em discussão pública a natureza e a especificidade das colunas políticas. Acredito que, entre outras funções, sua função específica consista em produzir análises políticas capazes de oferecer um entendimento adequado dos acontecimentos políticos ao leitor. Evidentemente, ao se circunstanciar a análise, pode e deve haver formulações críticas. Mas, quando as colunas políticas assumem o conteúdo de um julgamento eminentemente moral, perdem a sua especificidade e tornam-se espaços de mera manifestação do que pensa o colunista, mas na condição de um emitente de crenças privadas.

Um exemplo claro de julgamento moral é a coluna de Fernando de Barros e Silva "Foi o PT que fez", publicada na Folha em 31/8 (Pág. A2). Primeiro, julga moralmente a prefeita Marta Suplicy. Cita as qualidades que o eleitor atribui a Marta (experiente, realizadora, corajosa, moderna, inovadora), que antes eram atribuídas a Maluf, para condenar a prefeita por ser depositária de uma "herança maldita", qualificando-a de "monstro mutante Martuf". Ora, a manipulação moral maniqueísta de tal tipo de juízo é evidente.

Nas eleições de 2002, muitos desses atributos conferidos a Marta eram atribuídos ao governador Geraldo Alckmin. O governador não só foi depositário desses atributos, como herdou, no segundo turno, a maior parte dos votos malufistas. Ninguém, corretamente, sentiu-se autorizado a supor que Alckmin seria depositário de nenhuma "herança maldita" de Maluf. Qualquer prefeito que tenha se destacado em sua administração, seja ele de que partido for, pode ter esse tipo de qualidade atribuído à sua pessoa.

Em segundo lugar, o colunista afirma que "o presidente do PT converteu-se numa mistura caricata de "businessman" com o Roberto Jefferson da era Collor". A frase é fácil e o chiste é tentador, mas a informação é vaga e imprecisa. Por isso, presta-se a uma interpretação acusatória e condenatória. O colunista deveria esclarecer quais sãos os "negócios" que me atribui e de que natureza são eles. Na verdade, a acusação e a condenação moral, vagas e gratuitas, têm como objetivo desqualificar-me pessoalmente, anulando-me como interlocutor com quem quer que seja.

A liberdade de imprensa garante, claro, que o colunista político possa se manifestar em seu espaço sobre qualquer assunto. Garante, inclusive, que emita juízos morais condenatórios, mesmo que infundados. Mas, nesse caso, ele corre o risco de ver questionada a relevância de sua coluna e é legítimo que se promova um debate público sobre o seu conteúdo. Afinal de contas, nenhum colunista e nenhum jornalista pode se considerar na posição de Deus, no Dia do Juízo Final, a emitir sentenças definitivas para todos os lados. Debater o conteúdo das colunas e os posicionamentos dos colunistas é um direito de liberdade e é tão democrático quanto criticar o governo ou o PT.

Ao se transformar num juiz moral e emitir acusações, o colunista detém um espaço privilegiado, fixo e contínuo. Para os condenados pelas sentenças, restam os espaços esporádicos das páginas de opinião e de debate dos jornais ou das cartas dos leitores. A luta é desigual. Os adversários políticos do PT e do governo fazem uso sistemático da produção acusatória de alguns colunistas. É de perguntar se não seria mais correto e transparente se esses colunistas se declarassem juízes morais, investidos de poder de dizer o que é a verdade. Claro que não são obrigados a fazê-lo. Mas o julgamento moral é autoritário e intolerante. Criminaliza a disputa. Veda o debate e a polêmica e não garante o contraditório.

Convém lembrar que Max Weber insistiu na tese de que não é possível estabelecer nenhuma ética quando se acusa os outros com o intuito de ter sempre razão. Tal conduta esconde os interesses efetivos que se emboscam por detrás das acusações. Transita-se com grande facilidade do mero ressentimento para uma postura que especula com o moralismo alheio e despolitizado do senso comum. É nesse trânsito que o colunismo moralista se dá o direito de destruir reputações e os valores morais dos outros, sem medir as conseqüências.

Quero terminar dizendo que as pessoas, as instituições e as empresas têm histórias específicas que precisam ser respeitadas. A Folha escreveu uma página admirável na história brasileira ao lutar, por exemplo, pelas Diretas e pela anistia. Teve colunistas do porte de Cláudio Abramo, que dignificaram a profissão e o próprio jornal.
Sou convicto de que não há democracia sem imprensa livre. Mas estou convencido também de que não haverá consolidação dos valores democráticos sem um debate público plural e sério e sem um jornalismo responsável.

13 de Setembro de 2004

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