Opinião

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Arquivos históricos e indenizações

Apesar de já se terem passado 20 anos do fim do último governo militar, o Brasil tem ainda algumas questões democráticas pendentes que precisam ser resolvidas com mais urgência. Uma delas é a questão dos arquivos históricos em geral e dos arquivos do regime militar em particular. É preciso reconhecer que, mesmo no governo petista, a questão dos arquivos não tem andado com a velocidade desejável e satisfatória. A legislação necessária para a abertura dos arquivos já foi aprovada, mas a operacionalização precisa andar com mais rapidez.

A questão da abertura dos arquivos está incursa num complexo de problemas mais amplos que diz respeito à própria natureza do Estado. Nas sociedades contemporâneas, o direito à memória passou a ser entendido como um direito fundamental dos indivíduos. Não se trata apenas de um direito circunscrito à cidadania de cada Estado nacional.

Na medida em que o ser humano é um ser histórico e que a História é constitutiva do conceito de humanidade, o direito à memória de cada sociedade se torna extensivo a todos os seres humanos. Se esta concepção é válida, é legítimo cobrar do poder público e dos Estados a preservação da memória de suas sociedades. Afinal de contas, é através da memória que se pode construir a identidade ou as identidades humanas e desenvolver a perspectiva de um destino comum dos seres humanos.

No Brasil, o direito de acesso à informação e à proteção dos documentos é definido na Constituição federal de 1988 em vários de seus títulos. A Lei n.º 8.159 (Lei de Arquivos), de 8 de janeiro de 1991, dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados para o País e aborda o tema do acesso à informação. A Medida Provisória n.º 228, de 9 de dezembro de 2004, o Decreto n.º 5.301, de 9 de dezembro de 2004, e o Decreto n.º 4.553, de 28 de dezembro de 2002, incidem sobre a regulamentação da preservação e do acesso aos arquivos.

Mesmo que esta questão da preservação e do acesso aos arquivos históricos esteja avançando lentamente, é preciso reconhecer que, no Brasil, em todos os âmbitos do poder - municipal, estadual e federal - a questão da memória histórica vive uma situação caótica e de total falta de regulamentação. Não há a preservação e muito menos a disponibilização dos atos e das decisões dos sucessivos governos. Este desleixo, que há décadas tem tomado conta da documentação e dos arquivos da vida pública brasileira, é grave. Por um lado, perdem-se a memória histórica e o sentido de continuidade. Por outro, sonega-se às gerações presentes e futuras o direito fundamental à memória. Além do desleixo para com a História, isto revela uma falta de senso republicano da nossa cultura política, relacionado à exigência de transparência e do caráter público dos atos do Estado e dos governantes.

Há que cobrar, portanto, urgentes medidas para que o Estado brasileiro, nas suas esferas federativas - União, Estados e municípios - e nas suas funções de poder - Executivo, Legislativo e Judiciário -, assuma as suas responsabilidades, estabelecendo e regulamentando políticas públicas capazes de criar as condições para a constituição, localização, preservação e disponibilização dos acervos documentais do poder público. A definição de políticas públicas de constituição, preservação e disponibilização de acervos documentais deve caminhar em paralelo com a definição de uma política de transparência e de democratização da gestão administrativa.

Outro aspecto da temática democrática que precisa ser discutido diz respeito à política de indenizações dos perseguidos pelo regime militar. Neste terreno existem evidentes distorções dos fins e dos objetivos das indenizações concedias a perseguidos e prejudicados pelo regime militar. A indenização justa deve ter um sentido essencialmente simbólico, de reparação de um agravo moral cometido pelo Estado, seja por violência física ou outros instrumentos persecutórios que se constituíram numa injustiça e numa violação de direitos das pessoas atingidas.

Se é este o sentido da indenização, o seu valor também deve ser simbólico. Afinal de contas, aqueles que lutaram contra o regime o fizeram em nome de ideais e de causas políticas e coletivas, não com o fim privado de auferir recursos pecuniários.

Neste contexto, tornou-se um absurdo inaceitável que o caráter e o valor simbólico das indenizações se tenham transformado em auferição de quantias milionárias. A falha fundamental deste processo, claro, foi dos legisladores e das autoridades que regulamentaram a concessão dessas indenizações milionárias. Por isso, é necessário que as normas e regras que as permitem sejam revistas com urgência.

Ainda em relação às indenizações, órgãos da imprensa têm noticiado que ex-militares que combateram os grupos guerrilheiros estão pleiteando reparações indenizatórias do Estado.

Na nossa avaliação, o pleito não se justifica e não tem base legal. Afinal de contas, o princípio da indenização está vinculado ao fato de que um Estado de arbítrio violou direitos e garantias individuais das pessoas. Ou seja, o poder arbitrário violou o próprio Estado Democrático de Direito.

Seria paradoxal que os agentes desta violação viessem receber indenização pelos seus atos.

09 de Maio de 2005

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