Opinião

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Entrevista

"Financiamento público vai baratear campanha eleitoral", diz Lula ao Jornal O Valor

Ruy Barom / Valor

'Sem mágicas', Lula reafirma política industrial

Por Vera Brandimarte, Claudia Safatle, Cristiano Romero e Raymundo Costa para o Jornal O Valor

O governo está preocupado com a apreciação do real e adotará medidas para compensar os setores mais atingidos pelo dólar fraco, mas não fará "mágica". Para esse tema, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva adotou o discurso do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles.

"Não tem milagre", disse ele nesta entrevista exclusiva ao Valor, concedida na sala de reunião do gabinete presidencial do Palácio do Planalto. "As pessoas têm que saber que o câmbio é flutuante. Em algum momento o mercado vai se ajustar e é assim que nós vamos conviver."


Ao mesmo tempo em que defende uma postura mais liberal em relação ao câmbio, o presidente defendeu, enfaticamente, a adoção de uma política industrial que ajude setores ineficientes ou escolha os que precisam de mais investimentos. No primeiro caso, estão indústrias de calçados e têxteis. No segundo, os setores siderúrgico e de papel e celulose.


Na entrevista, o presidente não se furtou a tratar de temas tabus para sua base de apoio política e sindical, como as reformas trabalhista e previdenciária e a defesa do aumento das importações. "Tenho dito aos dirigentes sindicais que é preciso parar de ter medo da reforma (trabalhista)." A seguir, a íntegra da entrevista:


Valor: Seu governo consolidou a estabilização da economia e agora, com a inflação sob total controle, tem que decidir a meta de 2009. O sr. quer manter a meta de 4,5% ou reduzi-la?


Luiz Inácio Lula da Silva: Quando o CMN se reunir para discutir a meta de inflação de 2009 (dia 27 de junho), vai ter que analisar o sacrifício que fizemos no primeiro mandato para consolidar a inflação entre 4,5% (meta), 3,5% (efetiva). Vocês são testemunhas do sacrifício que fizemos em 2003. São testemunhas também do sacrifício que voltamos a fazer em 2005, porque a inflação dava sinais de retorno e, aí, fomos obrigados outra vez a arrochar. Agora, estamos vivendo um momento de muita tranqüilidade. Penso que não devemos fazer mais sacrifício, reduzindo a meta. Seria bom, e essa é uma opinião muito pessoal, que a gente refletisse bem. Já fizemos o sacrifício para 4,5% e foi muito duro. Gostaria que pensássemos politicamente, que não temos mais o direito de fazer um novo arrocho.


Valor: Diante da inflação efetiva de 3,5% estimada para este ano, definir uma meta de 4,5% para 2009 não seria sinal de que o governo optou por "inflacionar" um pouco?


Lula: Não. Se mantivermos 4,5% ou 4% por dez anos, será uma bênção para este país. Mas, obviamente, você pode ter 4,5% ou 4% como meta mas reduzir (a inflação) a 2%. O que importa na economia é a seriedade com que passamos para a sociedade os nossos atos. Não tem mágica. As pessoas vão se acostumando a ganhar mais pelo aumento de unidades vendidas e não pelo aumento de preços. Ao mesmo tempo, acho importante utilizar as importações como uma espécie de porta que você abre quando precisa controlar determinados preços e fecha quando precisa resolver problemas de desenvolvimento industrial.


Valor: Esse caminho, o sr. crê, nos leva ao crescimento sustentado?


Lula: Toda a situação e o horizonte internacional me fazem crer que o Brasil encontrou um caminho a ser seguido de forma definitiva. Antes, não se combinava nunca crescimento das exportações com crescimento das importações. É importante que a balança comercial cresça, mas não precisa uma balança sempre com vantagem imensa como estamos tendo. Precisa crescer um pouco importações e crescer o mercado interno. Um das razões do grande momento que estamos vivendo é que o mercado interno está ficando vigoroso. Saímos de R$ 300 bilhões para quase R$ 800 bilhões de crédito. O consignado é um sucesso.


Valor: O que fez o sr. se convencer de que o próprio crescimento da economia, e não novas reformas, ajustaria as contas públicas de agora em diante? Não há mais o que fazer com os gastos públicos?


Lula: Há muito para fazer. Administrar um país é mais ou menos como administrar a nossa casa. A gente aumenta o gasto quando pode e diminui quando é necessário. Nós trabalhamos muito para diminuir os gastos do Estado brasileiro, sempre levando em conta que não se pode jogar em cima dos assalariados do governo a responsabilidade de fazer a economia que o Estado necessita. Já determinamos ao ministro do Planejamento que faça estudos para ver, ministério por ministério, onde a gente pode conter despesa. Quando eu falo que o crescimento resolve parte do problema é porque em casa que não tem pão todo mundo briga e ninguém tem razão. De um lado, todo mundo mais liberal acha que a gente vai resolver o problema da humanidade fazendo um arrocho na Previdência Social. Do outro, há setores da esquerda que acham que tudo vai ser resolvido quando baixar a taxa de juros. Na minha opinião, pela prática de 4 anos e meio, nem um nem outro.


Valor: Por quê?


Lula: Primeiro, porque não tem reforma da Previdência que não seja uma sangria política em qualquer país do mundo. Temos consciência de que a sociedade brasileira está ficando mais velha, está vivendo mais, e isso é ótimo. Isso precisa de um ajuste na Previdência Social, por isso constituímos um grupo de trabalho para pensar uma política de uma nova previdência. Ela pode ser para uma nova geração, não tem problema. O importante é mostrar a todos que no longo prazo vamos ter uma previdência sustentável, que não seja tão deficitária, que dê tranqüilidade àqueles que pagaram.


Valor: A Comissão da Previdência termina o trabalho em agosto?


Lula: Termina e aí vamos ver o resultado, se transformamos isso em projeto de lei, se debatemos mais.


Valor: Por que tanto debate?


Lula: Porque já acompanhei esse assunto como dirigente sindical e deputado. Toda vez que se tenta fazer uma reforma de forma atabalhoada, com o Executivo pensando a reforma e mandando para o Congresso, ela não acontece. Não quero que seja uma proposta de reforma do governo. Quero que seja uma proposta compreendida pela sociedade. Se a sociedade compreender, poderemos ter uma reforma na Previdência que será debatida no Congresso, mas será votada, porque será fruto de um consenso.


Valor: Ainda no seu mandato?


Lula: Espero que seja. Da mesma forma que eu espero seja votada a reforma trabalhista.


Valor: O senhor não abandonou a reforma trabalhista?


Lula: Não abandonei. O problema é que fizemos o fórum (do trabalho) e constituímos a política de reforma da estrutura sindical brasileira. Ela foi aprovada na comissão, nós mandamos ao Congresso. Lá, o debate voltou praticamente à estaca zero porque cada deputado se sente um entendedor do assunto, o que é normal, porque cada um representa um segmento da sociedade. Em relação à reforma trabalhista, tenho dito aos dirigentes sindicais que a gente precisa parar de ter medo, precisamos é construí-la de forma que ela não penalize o Estado, o setor produtivo e os trabalhadores. Temos que pensar que, com os avanços tecnológicos e a reestruturação produtiva que aconteceu no mundo, não precisamos continuar com a mesma legislação de 1943. É preciso que se adentre o mundo do trabalho hoje, veja qual é a realidade porque, com a inovação tecnológica, estamos cada vez mais tendo empresas com menos trabalhadores e mais sofisticadas. É importante que a gente represente os que estão trabalhando, mas é importante representar também os que estão na economia informal e que querem entrar para o mercado formal. É preciso criar condições.


Valor: Quais?


Lula: Um passo extraordinário foi a aprovação da Lei Geral da Micro e Pequena Empresa. Com esta lei, que entra em vigor em 1º de julho, o empresário não vai mais pagar 20% sobre folha, mas, em média, algo como 11%. Uma parte do problema já está sendo resolvida sem fazer a reforma trabalhista. Mas quero convencer os dirigentes sindicais de que esse debate é saudável e necessário para o país. Também tem a reforma tributária...


Valor: O sr. não acha impossível fazer reforma tributária quando o governo é o primeiro a dizer que não pode perder receita?


Lula: O governo não só pode perder receita como, até agora, já abriu mão de R$ 30 bilhões em políticas de desoneração. A redução de tributos pode diminuir temporariamente a receita, mas vai aumentar a arrecadação porque aumenta a base de contribuição. Nós diminuímos a taxação de 32 produtos de construção civil e a arrecadação não caiu. Convencer o pessoal da Receita e do Tesouro é sempre mais difícil. Obviamente, não podemos perder receita por perder receita. Quando chegarmos ao tributo certo, vamos ter menos sonegação, menos evasão, e poderemos dotar o país de uma política muito mais competitiva.


Valor: Para reduzir a carga tributária, não seria necessário primeiro reduzir os gastos do governo?


Lula: Nós precisamos só gastar aquilo que se pode gastar. No PAC, fizemos uma coisa extremamente corajosa. Eu me reuni com os líderes de todos os partidos aqui e disse o seguinte: "Procurem se, em algum momento da História do Brasil alguém assumiu o compromisso de repor a inflação e dar 1,5% de aumento de salário aos funcionários. Se as pessoas entendem que é pouco e não passa, haverá momentos que os trabalhadores não receberão nem a inflação, como já aconteceu durante muito tempo. Se você deixar tudo incerto, dependendo do governo e da greve, num momento você dá 10% e noutro, nada. Aí fica com um grupo de funcionários com os salários totalmente distorcidos. Há setores que há 12 anos não recebiam reajuste.


Valor: Quais?


Lula: Por exemplo, o pessoal que trabalha na Presidência da República, camareira, guarda, ajudante de ordens. Há doze anos não tinham reajuste. É possível alguém viver 12 anos sem reajuste? Ninguém suporta. Fizemos o mesmo em relação ao salário mínimo. Deixamos claro que o salário mínimo vai ter uma política de longo prazo e que não precisa, todo ano, ficar aquele clima nervoso disputando para ver quem é mais autêntico, quem quer dar mais aumento. A única possibilidade de consolidarmos o país como um país sério é determinarmos as regras, todo mundo saber o que vai acontecer e todo mundo jogar aquele jogo. É por isso que lançamos o PAC. Desde o governo Geisel este país não tinha um investimento vigoroso como esse que estamos fazendo.


Valor: E a parte do saneamento básico no PAC?


Lula: Esta é a parte mais difícil.


Valor: Por quê?


Lula: Como o governo não liberou dinheiro para saneamento durante muitos anos, as prefeituras não faziam projetos. Sem projeto, não adianta disponibilizar dinheiro porque não tem nem licitação. Nós, agora, estamos financiando projetos para prefeituras. Na próxima semana, começo a fazer acordos com os governadores do Rio, São Paulo e Minas. Depois, vou para três Estados do Nordeste. Chamamos os governadores e os prefeitos das cidades que serão beneficiadas. Determinamos que vamos atacar primeiro as regiões metropolitanas. Haverá um forte investimento no Complexo do Alemão e em Manguinhos, em saneamento básico e urbanização de favelas. Vamos recuperar as regiões em torno da Represa Billings e de Guarapiranga, áreas de proteção de manancial que estão ocupadas de forma desordenada. Estamos chamando os prefeitos e os governadores para assumir um termo de compromisso, de quando a obra vai começar, quando vai ser feita a licitação. O conselho-gestor vai ter que trabalhar junto com o conselho-gestor do Estado, para acompanharmos de perto a execução das obras. Nosso desafio é garantir que não falte dinheiro. Se fizermos isso, estaremos deixando uma nova safra de gestores que poderão fazer com que o próximo governo tenha muito mais facilidade de executar as coisas do que eu e outros presidentes.


Valor: O senhor não vai anunciar os programas de saneamento para SP, RJ e MG amanhã?


Lula: Suspendi porque tem um ajuste a fazer. Precisamos convencer os governadores de que os Estados que têm maior capacidade de endividamento, que têm empresas sadias, como a Sabesp em São Paulo, em vez de colocarmos mais dinheiro do orçamento geral da União, a gente financia mais (com dinheiro da CEF e do BNDES). O dinheiro do orçamento distribui-se aos Estados com menos capacidade de endividamento.


Valor: Quem está sem capacidade de endividamento?


Lula: No Rio, a Cedae não tem nenhuma possibilidade de tomar empréstimo. Estamos trabalhando com o governador Sérgio Cabral e a direção da Cedae para saber qual é a possibilidade de recuperar a companhia para que ela possa ter capacidade de tomar financiamento.


Valor: O sr. disse que o governo abriu mão de R$ 30 bilhões em desonerações setoriais. O equivalente a uma CPMF. Essa desoneração decorre da decisão do governo de fazer política industrial, em vez de algo mais universal, como reduzir a CPMF ou desonerar a folha?


Lula: Depois de desonerar R$ 30 bilhões, o governo não tem condições de abrir mão de R$ 35 bilhões da CPMF agora. Qualquer um que sentar naquela cadeira ali não vai querer abrir mão da CPMF. Quando fizermos a reforma tributária e ela entrar em vigor, vamos ter resolvido o problema da CPMF e da desoneração. O Estado tem que ter política industrial, precisamos detectar quais os setores em que precisamos investir mais.


Valor: Por exemplo?


Lula: A indústria do aço. Há 20 anos não inauguramos um alto-forno no país e ficamos só olhando a China crescer. Tenho conversado com os empresários para que a gente volte a fazer siderúrgica. Não é possível que o Brasil seja apenas exportador de minério. Segundo a Vale, nós vendemos no mercado interno apenas 10% do nosso minério. O governo tem que ter uma política para incentivar a criação de siderúrgicas. O Brasil será imbatível no setor de papel e celulose. Temos que criar políticas específicas para esse setor. Temos preocupação com o setor têxtil, há milhares de pequenas empresas que queremos que sobrevivam. E não será ajudando a financiar a improdutividade. Temos que ter política de financiamento, de capital de giro, combinada com inovação tecnológica. Não podemos deixar que o setor de calçados acabe porque é impossível competir com a China.



Financiamento público vai baratear campanha eleitoral


Valor: O senhor acha que o Brasil pode produzir tudo, num mundo globalizado, ou temos que sobreviver naquilo que sabemos e podemos fazer melhor?


Lula: Temos que competir em tudo. Posso até perder a competição, mas tenho que disputar. No setor de calçados o Brasil compete, no setor de móveis o Brasil compete, no têxtil pode competir. Agora, para competir temos que ter regras claras. Por isso, aumentamos a tarifa de importação para 35%, que é o máximo permitido pela OMC, e se não resolver vamos ter que pensar em outras coisas para ajudar. Obviamente, o governo não vai ficar colocando dinheiro para a empresa continuar do mesmo jeito. Ou ela compatibiliza esse financiamento com a inovação tecnológica, ou, aí sim, você comete o erro de investir em coisas obsoletas.


Valor: Um dos grandes problemas do setor têxtil foi a competição chinesa. O Brasil considerou a China uma economia de mercado e naquele momento houve uma promessa dos chineses de fazer investimentos aqui e até agora não tivemos nada. O governo não se precipitou ao considerar a China uma economia de mercado?


Lula: Eu tomei uma decisão pessoal. Vi muita gente que era contra, mas tomei uma decisão porque não posso ter um gigante como a China trabalhando pelas bordas, pela lateral. O jeito de termos a China sendo mesmo uma economia de mercado é levá-la para a OMC, para que tenha que cumprir as mesmas regras que nós cumprimos. Imagine a China e a Índia soltas no mundo, com 2 bilhões de habitantes, ninguém segura! Não adianta eu ficar xingando os produtos chineses ou ficar reclamando da China. Tenho que trazer a China para a legalidade comercial do mundo. E onde é que é isso? É na OMC. Depois, discutimos investimentos chineses no Brasil, desde que eles não vissem os investimentos aqui apenas como uma estrutura para tirar as matérias-primas que eles precisassem. Ou seja, para produzir aqui dentro. E, aí, há problemas. Eu tenho problemas com 44 milhões de pessoas pobres, Imaginem a China com 1 bilhão! Em algum momento vamos firmar grandes projetos com a China.


Valor: O senhor desistiu da desoneração da folha de pagamentos?


Lula: Não. Tudo isso tem que ser negociado. Vamos ter que negociar na política tributária.


Valor: Não vai demorar muito?



Lula: Não tem importância se as coisas demoram um ano a mais, um ano a menos. Importa é que elas saiam. Num país com as necessidades do Brasil, a gente não pode pensar no curto prazo. Nada pode ser feito de curto prazo, a não ser solucionar a fome do povo.


Valor: As condições objetivas de hoje são suficientes para o crescimento sustentado ou as reformas mencionadas são imprescindíveis?


Lula: São importantes, mas não são imprescindíveis. Há uma margem, e é só ver a rentabilidade das empresas brasileiras para perceber que há uma margem de ganho extraordinária. As empresas brasileiras de grande porte têm competitividade internacional e disputam. Qual é o problema nosso? Quando tomamos a decisão de criar o G-20, eu vinha de Davos, em janeiro de 2003, e comentava com o Celso Amorim (ministro das Relações Exteriores) que a gente precisava mudar a lógica comercial do mundo. A lógica era todos os países pobres e emergentes de olho gordo nas economias americana e européia. Não havíamos maturado o potencial de troca entre nós. Já esgotamos o nosso potencial no Mercosul, na América do Sul, na África, no Oriente Médio, com a China, com a Índia? A minha tese é que, se a gente quiser vender mais, precisa viajar mais. Os empresários brasileiros precisam entrar no avião e sair pelo mundo vendendo seu produto. Fazendo propaganda. O continente africano daqui uns 30 anos deverá estar com 1,3 bilhão de habitantes. Se 30% desses forem consumidores médios, imaginem o potencial que o Brasil tem para entrar nesse mercado. Precisamos começar a viajar agora, a plantar a raiz. Isso explica um pouco o sucesso da balança comercial. É só você analisar as minhas viagens, e você percebe o que é que foi acontecendo. Quando eu dizia que queria um ministro de Indústria e Comércio mascate é porque vender significa cativar, conquistar pessoas.


Valor: Mas às vezes não depende só de conversa...


Lula: Obviamente que não é só de conversa. Se o produto não for de qualidade, se ele for mais caro, não vai vender.


Valor: O Brasil tinha toda uma idéia de integração continental com obras de infra-estrutura. Energia era básico nessa estratégia. O que estamos vendo é a Argentina com problemas de abastecimento de gás, o Chile com problemas com o gás da Bolívia também. Estamos procurando fornecedores alternativos porque não temos certeza desse abastecimento. Essa estratégia de integrar pela infra-estrutura, diante do comportamento da Bolívia e da Venezuela, desapareceu?


Lula: Não. Vai exigir apenas uma conversa a mais. Uma reunião a mais. Continuo com a minha cabeça voltada para a integração da América do Sul. O potencial de construção de hidrelétricas na América do Sul equivale a 564 mil megawatts e isso equivale a aproximadamente 1 trilhão e 400 bilhões de barris de petróleo, com a vantagem de ser uma energia limpa, renovável. O que é preciso lembrar é que há 10, 20 anos os países da América do Sul não conversavam entre si. A Bolívia tinha o Brasil como o imperialista do continente. Todo mundo que é o maior paga o preço da responsabilidade. É preciso construir uma relação de confiança entre os Estados, não entre pessoas. Estabelecer políticas que possam mostrar que o Brasil, por ser a maior economia, tem que ser mais generoso com os outros.


Valor: Mas o gás da Bolívia não é um elemento decisivo?


Lula: O gás é um elemento decisivo para os países que não têm possibilidade de ter outra matriz energética. É imprescindível quando o preço do gás é mais barato que outro tipo de energia e deixa de ser quando o preço se torna caro. Um país do tamanho do Brasil, que quer crescer de forma sustentável durante muitos anos, que quer conquistar um espaço na economia mundial como país rico, não pode ficar dependente de uma única fonte fornecedora de energia. O gás é interessante economicamente, não há nenhum problema de fornecimento do contrato que temos com a Bolívia, dos 30 milhões de BTUs, mas eu quero é me certificar, primeiro, que a Petrobras está investindo na prospecção para ver se encontra gás e estamos procurando outros parceiros para termos opções e não ficarmos no sufoco. O Brasil não pode ficar no sufoco dependendo de ninguém. É assim que trabalhamos. E vamos continuar comprando gás da Bolívia.


Valor: Há uma crise no sistema político brasileiro. Tanto é assim que o próprio Congresso tenta articular uma reforma. Em que medida essa crise afeta a administração ou interfere na execução de programas do governo?


Lula: Não é por isso que é preciso fazer uma reforma política. Precisa para o bem da sociedade brasileira, dos partidos políticos e do próprio Congresso Nacional. O Congresso tem colaborado com o governo. Vou dar um exemplo: as medidas do PAC que mandamos foram aprovadas em tempo recorde. Quero a reforma política e acho que ela tem que ser feita pelo Congresso. Não sairá nem do Poder Executivo nem da universidade.


Valor: E vai sair?


Lula: Vai. O que é importante é que a gente não pense em reforma política apenas em época de crise. O que é importante é que a gente tenha na reforma política uma profissão de fé, de que ela será benéfica para todo mundo. Para as pessoas conhecerem melhor o perfil ideológico de cada partido político, que você possa votar em lista, mas ao mesmo tempo em pessoas individualmente, que você tenha o financiamento público de campanha. É uma ilusão quando alguém pensa que o financiamento público vai onerar os cofres públicos. Vai é baratear.


Valor: Por quê?


Lula: Porque você determina as regras do jogo, da quantia em dinheiro para cada partido político disputar as eleições, e aí pode ficar certo de que, numa disputa interna, cada um vai controlar a sua parte ali porque não vai querer que um tenha tudo e o outro não tenha nada. Será uma coisa moralizadora.


Valor: Se o financiamento público não vai onerar os cofres públicos, o sistema atual onera?


Lula: Vai ficar muito mais visível para a sociedade. Hoje, o controle de uma campanha é muito complicado. A minha tese é que o Congresso precisa compreender a necessidade de fazer a reforma política para o bem do próprio Congresso. Muitas vezes a gente reclama do Congresso, fala, fala, mas eu peço a Deus que ele continue funcionando 24 horas por dia porque o Brasil, sem ele, é menos democrático.


Valor: O MST ampliou sua plataforma. Não basta mais só a reforma agrária. Vai combater também a política econômica, que acredita favorecer o agronegócio. O governo deu um nó tático no MST e o movimento perdeu sua bandeira?


Lula: Esse não é um problema dos sem-terra. Esse é um problema de todo movimento social. Quando você tem um governo que atende às reivindicações... Vou contar uma história de 15 anos atrás. Quando foi implantado o real, eu já não era mais dirigente sindical, era presidente do PT, e sempre tive uma relação extraordinária com os dirigentes sindicais. Em vários debates eu dizia para os trabalhadores: vocês precisam adentrar ao mundo da política e diminuir o mundo econômico porque, sem inflação, a bandeira diminui muito. Qual é o discurso que tem o dirigente sindical na porta de fábrica?


Valor: O senhor acha que ficaram sem bandeira?


Lula: Deus queira que ele sempre tenha uma bandeira porque movimento sem bandeira fica pior. Então, o que aconteceu? Quando a gente ia para a porta de fábrica reivindicar reajuste de 80%, 90%, 120% e conseguia 60% já era uma vitória. Hoje, se a inflação está em 3% e você tem 4% de reajuste, teve 1% de aumento real, o que é uma conquista extraordinária em qualquer país do mundo. O movimento sindical tem que ser mais criativo. Por isso, o movimento sindical está vindo mais ao Congresso discutir Orçamento. Tem que fazer pauta de reivindicação para o presidente da República, para o Congresso, para os governadores, para os prefeitos, porque quando um dirigente sindical conquista um aumento de salário, ele vai se preocupar com o preço de ônibus. Senão, o preço do ônibus vai comer o salário que ele conquistou. Então, tem que abrir a cabeça dos dirigentes sindicais, que hoje são muito mais bem preparados do que no meu tempo. Aquela meninada toda tem curso universitário, estuda inovação tecnológica, reestruturação produtiva como ninguém.


Valor: A elite sindical que a gente vê hoje, sem nenhum preconceito, não é a questão de usar ternos sofisticados ou carros com motoristas, mas essa elite sindical hoje não está atrapalhando a reforma trabalhista, não se tornou muito pelega, defendendo os próprios interesses? Ela não enriqueceu?


Lula: Como presidente não posso falar o que eu falava como dirigente sindical. Mas eu vou dizer uma coisa: no meu sindicato eu instituí, em 1978, que ninguém poderia ter mais que dois mandatos. Em São Bernardo alguém não será diretor do sindicato se não for eleito na sua seção da fábrica. Ele pode estar há cinco anos fora, mas, se ele quiser ser eleito, tem que ser votado na seção dele. Se não for votado, acabou a carreira sindical. Eu gostaria que fosse assim em todo o movimento sindical. Em 78 eu convoquei uma assembléia e decidi: não tem mais que dois mandatos. É um para aprender, outro para executar e outro para cair fora e cuidar da vida. Não é assim que todo mundo pensa. Às vezes fico triste porque há dirigente que já estava quando eu entrei. Eu já saí, virei presidente da República, já perdi três eleições e ele continua lá. É um problema da categoria que vai ter que mudar.


Valor: Presidente, estamos aqui há uma hora e o senhor não falou sobre taxa de câmbio. Essa é uma questão que não o preocupa?


Lula: É muito difícil determinar qual o câmbio bom. Para quem exporta, R$ 4 seria ótimo. Para quem importa, se fosse R$ 1 seria ótimo. O dado concreto é que vamos manter o câmbio flutuante e ele flutua, vai para baixo e para cima. Obviamente, precisamos estar preocupados com o câmbio, mas não vamos fazer nenhuma loucura. Vamos tentar fazer os acertos necessários e que forem possíveis para mantê-lo nesse nível ou um pouquinho a mais. Por isso compramos muitos dólares.


Valor: Hoje as reservas cambiais estão em quanto?


Lula: US$ 140 bilhões (ontem, o Banco Central informou que estavam em US$ 143,3 bilhões na terça-feira).


Valor: Vai chegar a US$ 200 bilhões?


Lula: Vamos chegar lá.


Valor: Até o fim do ano?


Lula: Vocês sabem que eu fico orgulhoso. Em 2004, quando fui à Índia, eles haviam atingido US$ 100 bilhões de reservas. Eu saí de lá com inveja e discuti com o Palocci: "No dia em que o Brasil tiver US$ 100 bilhões de reservas, vamos estar bem pomposos mesmo". Já estamos com US$ 140 bilhões e vamos chegar a US$ 200 bilhões.


Valor: E mesmo essa acumulação não segura a taxa...


Lula: De vez em quando chamo a atenção dos economistas para eles não fazerem avaliações equivocadas. Não existe apenas uma razão. No dia em que o presidente do Banco Central americano ameaçou aumentar zero não sei o que os juros, o câmbio no Brasil subiu. Por quê? Porque hoje, na verdade, o real está se valorizando, mas o problema é que o dólar está se desvalorizando em relação a todas as moedas. E se nosso querido governo americano não cuidar do déficit público deles, vamos ter esse problema. Nós vamos tratar de todas as medidas necessárias para, de um lado, ajustarmos os setores mais prejudicados, vamos continuar comprando dólar e vamos aumentar as nossas importações. Não tem milagre. O mercado é que vai se ajustar.


Valor: A Polícia Federal tem sido questionada por vazamentos de investigações...


Lula: Não por mim. Eu não tenho questionado. Acho que é uma polícia extremamente eficaz e necessária ao país. Como acho que o Ministério Público, do qual muitas vezes as pessoas se queixam, também é importante. O que tenho dito é que toda vez que uma instituição ou uma pessoa é alçada a um posto de muito poder, aumenta a responsabilidade. Quanto mais poder eu tiver, mais seriedade tenho que ter. Não posso confundir investigação com devassa, onde antes de ser concluída a pessoa já foi submetida à execração pelos meios de comunicação. Ora, se são execradas pela mídia é porque alguém vazou. A única coisa que exijo é seriedade.


Valor: Faltou seriedade no caso do seu irmão Vavá?

Lula: Eu não discuto o caso do meu irmão. Até porque eu, como presidente, trato meu irmão como os 190 milhões de habitantes. É uma cultura que eu tenho. Meu irmão frei Chico era do Partido Comunista Brasileiro e eu estava fundando o PT. Nós divergíamos muito, mas eu dizia: "Chico, você entrou na minha casa, você é meu irmão e não o político. Saiu para fora você faça o que você quiser". O tratamento a ser dado a todos é o da seriedade. Se tiver erro, tem que ser investigado. Se tiver que punir, que puna. Agora, tem muitos casos em que a gente vê as pessoas serem devassadas e, depois, não acontece nada porque não tem prova. A vida particular das pessoas é inviolável. Isso está na Constituição. Portanto, é preciso tomar cuidado.

Fonte: Jornal O Valor (21 de junho de 2007) 

21 de Junho de 2007

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