Opinião

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Reflexões sobre o preconceito e os intelectuais no Brasil

Andréa Caldas


Mais uma vez, o PSDB faz uso das páginas dos jornais para estabelecer sua contenda ideológica com as armas do preconceito.

Em notícia veiculada pela Folha de São Paulo, no dia 24 de novembro de 2007, Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República, sociólogo e dirigente do PSDB, estabeleceu as bases de sua disputa política como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ex-metalúrgico e dirigente do PT:

“Nosso partido tem gente acadêmica, não temos vergonha disso. Tem gente que sabe falar mais de uma língua, e também sabemos falar muito bem nossa língua. Muitos brasileiros ainda não puderam saber falar bem a nossa língua e muito menos as outras. (...) Queremos brasileiros melhor educados (sic), e não brasileiros liderados por gente que despreza a educação, a começar pela própria.”

O argumento, exaustivamente utilizado, da falta de formação universitária do presidente Lula e seus eventuais equívocos no uso da linguagem padrão merece algumas ponderações e análises que ultrapassem a barreira do senso comum e da estandartização dos preconceitos, que freqüentemente sedimentam a batalha ideológica de muitos de seus oponentes.

Ultrapassar a barreira do “pré-conceito” é, segundo nos adverte Agnes Heller (2004), superar a cristalização das primeiras noções, avançar para além da naturalização do imediato e, portanto, indagar sobre a historicidade das idéias.

Nesta direção, examinando a história da formação social brasileira, iremos encontrar a sociedade colonial dividida fundamentalmente entre a imensa maioria de escravos e a minoria dominante constituída pelos latifundiários escravocratas.

Neste contexto, nascem os primeiros intelectuais brasileiros, vinculados à administração colonial, à burocracia e à Igreja, que na época era, conforme profícua análise de Carlos Nelson Coutinho (2000, p.22), um “aparelho ideológico direto do estado colonialista”. Desta forma, nesta atmosfera social, ganha força o “intimismo à sombra do poder” como traço fundamental da gênese da atividade intelectual brasileira.

Ainda, segundo COUTINHO (2000, p.23-24),

a cooptação assumia frequentemente o caráter de favor pessoal.Ligando-se a um poderoso, a um proprietário influente, o intelectual era agraciado com empregos, prebendas, etc. É verdade que essa situação de subordinação pessoal às classes dominantes era disfarçada pelo status relativamente elevado atribuído à condição de intelectual. A posse da cultura era um meio de distinção para os homens livres não proprietários. (...) E esse status, ao mesmo tempo em que servia de disfarce para a posição dependente do intelectual, acentuava o caráter ornamental da cultura dominante da época.

Se a formação histórica do Brasil se desenvolveu e avançou em muitos aspectos, é necessário admitir que sua preferencial opção pelas “reformas pelo alto” manteve inalterados muitos aspectos de uma mentalidade arcaica, de um passado que teima em não passar, articulado aos variados processos de modernização conservadora.

Entre estes resquícios do colonialismo, em pleno século XXI, encontramos o cultivo do status do intelectual, que pretende afirmar-se como independente e autônomo frente aos grupos sociais e seus interesses, consolidando uma torre de marfim que o distinguiria do conjunto da população.

Mais surpreendente, entretanto, é quando este status de suposta neutralidade é evocado por conhecidos dirigentes partidários, que pretendem substituir a disputa de projetos ideológicos pela oposição entre ilustrados e ignorantes, onde o título acadêmico blinda as opções políticas.

Este artifício da despolitização e sua substituição pela meritocracia já havia sido intentado pelos apologetas do regime militar, que se apresentavam como técnicos, no exercício do arbítrio do poder. É, portanto, assustador que este discurso do mérito intelectual seja novamente utilizado como forma de escamotear as diferenças de projetos e escolhas políticas.

Faz-se necessário, assim, examinarmos com mais vagar as mensagens subliminares do ideário ideológico que pretende estabelecer a pseudo-cisão entre os que “falam corretamente a língua portuguesa” e os que não a dominam.

 

O que se afirma quando se defende o “falar corretamente”

Conforme já mencionado, na história brasileira os homens livres não proprietários que puderam ascender socialmente foram aqueles que obtiveram acesso ao conhecimento intelectual, privilégio de uma ínfima minoria, em nossa sociedade marcadamente excludente.

De lá para cá, ainda que o desenvolvimento histórico e as lutas sociais tenham feito avançar a escolarização básica, sabemos que a titulação acadêmica e o domínio do saber sistematizado são ainda, hierarquizados.

Os indicadores de aprendizagem gerados pelo SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, criado em 1990), para “os concluintes do ensino fundamental mostram um quadro de pouca efetividade dos sistemas educacionais brasileiros. Em Língua Portuguesa, cerca de 10% dos estudantes atingiram um patamar adequado”. (MEC, 2003, p.6)

Trata-se, portanto, de privilégio reservado a alguns, mais facilmente acessado por aqueles que provêm de classes culturalmente favorecidas, fato este não ignorado pelo partido de FHC, implementador dos sistemas de avaliação da educação básica e superior, no Brasil, a partir dos anos 90.

Ademais, os dados gerados por este sistema de avaliação no ensino fundamental demonstram que “no período de 1995 a 1997, a média da proficiência em Língua Portuguesa caiu em torno de 6 pontos; de 1997 a 1999 a queda foi ainda mais significativa – quase 20 pontos.” (MEC, 2003, p.24)

Ou seja, a administração tucana, que deu prosseguimento à avaliação do “conhecimento e habilidades adquiridas pelos alunos”, não foi tão pródiga em gerar medidas de elevação da qualidade da educação oferecida no Brasil.

 

O que se esconde quando se defende o “falar corretamente”

Na defesa da gramática e da sintaxe, do cultivo do saber acadêmico, apologizado pelo PSDB, há sem dúvida um destinatário explícito e exclusivo.

Isto porque, não se tem notícia de que os quadros deste partido ou seus simpatizantes acampados na grande imprensa tenham envergado o mesmo esforço para arrolar eventuais equívocos lingüísticos cometidos por empresários, financistas e assemelhados.

Desta forma, reproduz-se aqui a mesma formatação colonial que engendrou o voto censitário, para a qual o proprietário não precisa provar mais nada: sua mera condição de dono do capital lhe assegura o status de cidadania plena e mando absoluto.

Quem precisa provar seu mérito, seu direito a exercer a cidadania política, são, nesta concepção, os não-proprietários, os trabalhadores. Segundo a meritocracia, filha adotiva do sistema capitalista, quem pode ser cidadão é quem tem mérito, e, no caso da ideologia tucana, mérito acadêmico e titulação.

 

O que está em jogo: para além das disputas de sintaxe

Há sem dúvida, no entremeio do cultivo ornamental da cultura, da apologia do estilo literário, uma luta concreta entre projetos políticos, que busca ser ocultada nas disputas de sintaxe.

Existe, por certo, de parte de muitos, um forte incômodo com a presença de um operário no poder, que a tradição histórica brasileira sempre reservou aos proprietários ou seus apadrinhados letrados, brancos e de classe média.

Que se concorde ou se discorde com os rumos apontados pelo atual governo; o que não se pode admitir é que o debate das idéias seja substituído pelo preconceito e a desqualificação.

Defender a universalização da cultura e, para tanto, lutar por medidas políticas efetivas para o desenvolvimento do sistema educacional brasileiro é diferente de defender o privilégio dos ilustrados e proprietários.

Faz-se, portanto, mister que a polêmica da forma lingüística se subordine à necessária discussão do conteúdo político e social, através da qual possam ser evidenciadas as relações e intenções contidas nos diferentes discursos e projetos. Discussão esta que a fala preconceituosa de FHC tem por objetivo principal ocultar.

 

Andréa Caldas é professora do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. Doutora em Educação.

 

HELLER, A. O Cotidiano e a História. 7ª. ed. SP: Paz e Terra, 2004.

COUTINHO, C. N. Cultura e Sociedade no Brasil. 2ª. Ed. RJ: DP&A, 2000.

MEC. Qualidade da Educação: Uma Nova Leitura do Desempenho dos Estudantes da 8ª. Série do Ensino Fundamental. Brasília, dez, 2003.

 

 

 

30 de Novembro de 2007

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