Opinião

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Cuidado com a pressa do Judiciário

Em sóbria entrevista quando já presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes expressou a dificuldade de encontrar uma solução para o excesso de medidas provisórias sem comprometer a capacidade do chefe do Executivo de atender à urgência dos programas ministeriais. Compensando as razões do governo para desejar decisões rápidas, o ministro ponderou que 'muitas vezes temos a tendência de criticar a atividade política e dizer que ela é muito lenta. É lenta porque é complexa. É difícil produzir o consenso e o fato de ser lenta não significa que seja errada'.

Sem dúvida. O tempo da política é muito diferente do tempo da economia e da administração e a suposta morosidade legislativa representa um obstáculo aos possíveis danos de decisões emocionadas. Os trâmites de uma proposta de legislação propiciam as oportunidades para aperfeiçoar a proposta, esclarecer dúvidas, sanar equívocos e, quando é o caso, constituir a maioria que vai aprová-la.
Foi com surpresa que li, a seguir, o ministro utilizar esse mesmo argumento da lentidão do Congresso para justificar a interferência do Judiciário em área de competência parlamentar. Na mesma matéria, afirma ele que 'quando o Congresso demorar a agir ou ficar inerte, o STF irá atuar' (Valor, idem). Como? O tempo próprio do Congresso não justifica exagerado número de medidas provisórias, por parte do Poder Executivo, mas serve para dar ao Poder Judiciário legitimidade para atropelá-lo? Se há lógica no raciocínio, me escapou.

A atribuída inércia do Legislativo nunca foi fundamento constitucional ou doutrinário para qualquer violação da divisão entre os três poderes. O Legislativo esgota as razões da existência, assim como da não-existência, de leis específicas e qualquer ação supletiva não autorizada implica em indébita amputação do Parlamento. As razões das leis que existem se encontram no caput que as introduz e são três os conjuntos de razões que explicam as leis que não existem.

Em primeiro lugar, não existem leis para assuntos que não alcançaram a agenda pública. Não quer dizer que os problemas por elas tratados não existam, mas somente que não entraram em pauta, inclusive, em alguns casos, porque ainda não existiam soluções para eles. Exemplo mais recente está ainda em curso no tema das pesquisas com células-tronco. Há cerca de dez anos o tema não entraria em pauta porque não existia como possível solução para problemas milenares.

A segunda ordem de razões para o silêncio legislativo pode ser a ausência de maioria capaz de decidir o que fazer de uma proposta que está, todavia, em pauta. O exemplo conspícuo aqui seria a legislação sobre divórcio, cruzada do falecido e bravo senador Nelson Carneiro. O assunto levou anos zanzando pelos corredores do Senado e da Câmara dos Deputados até que, finalmente, se construiu a necessária maioria para aprovar a lei. Quando ocorreu, as objeções da Igreja Católica já haviam sido superadas na percepção do grande público e poucos membros das diversas denominações religiosas se sentiram ofendidos em suas convicções transcendentais. A matéria era terrena e foi enfim terrenamente decidida.

O terceiro conjunto de razões se refere a assunto altamente explosivo, pois toca em matéria sobre a qual existe majoritário consenso contra. Assuntos como 'reforma agrária', por exemplo, passaram praticamente os cem anos republicanos sem alcançar sequer a condição de item controverso. Simplesmente gigantesca maioria formada por membros de quase todos os partidos não queria nem ouvir falar em legislação sobre o assunto entrando em pauta, ainda que fosse para derrotá-la fragorosamente.

Foram apresentados mais de 200 projetos, antes de 1964, e só no período final é que, com a confusão política então estabelecida, a matéria foi posta em votação. Tanto pertencia ao universo da não-decisão, por acordo tácito entre todos os partidos relevantes, que uma coalizão PSD/UDN derrotou a proposta do PTB, uma coalizão PTB/PSD derrotou a da UDN e, oh!, uma coalizão PTB/UDN derrotou a do PSD. Ficou tudo como dantes no quartel de Abrantes.

Até mesmo tópicos constitucionais podem ficar décadas esquecidos por acordo informal entre os partidos. E nem sempre por cumplicidade perversa. De um modo geral os partidos se comportam de forma amadurecida e compreendem que não adianta agitar bandeiras ainda excessivamente verdes na sociedade. Um exemplo contemporâneo está no artigo constitucional sobre os direitos sociais contemplando a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas. Tal participação não significa automaticamente distribuição de parcela dos lucros, mas pode tomar a forma de decisões sobre a partilha entre consumo e investimento.

Ou constituição de um fundo complementar de aposentadoria.
Nenhuma das decisões abalaria os fundamentos do sistema e, na verdade, algumas das propostas já são políticas em curso em países nórdicos. Não é por preguiça, inércia ou falta de óleo no carburador que o assunto não é abordado no Parlamento. Trata-se, por enquanto, de um não-assunto. Tente o Poder Judiciário alegar inação do Congresso e legislar sobre a matéria para ver o que é ter editoriais contra a sua autoridade institucional, além, não tenho dúvida, de alguns sensacionais escândalos públicos envolvendo insignes membros do egrégio poder.

A alegação de lerdeza do Congresso para justificar implantação judiciária de quesitos constitucionais suscita, ademais, sério problema de soberania. Se o STF se autocredita Poder Legislativo, por que não poderia parcela do povo, origem de todo poder, se creditar um naco do Executivo? Não é outra coisa que faz o MST ao pretender cumprir o artigo constitucional que atribui função social à propriedade. Salvo má lembrança, não creio que o Congresso já tenha deliberado sobre a matéria, definindo o que seja função social da propriedade, e o Poder Judiciário não tem sido hospitaleiro a essa interpretação constitucionalista do MST.

Pessoalmente, creio que já está praticamente terminada a reforma agrária capitalista iniciada pelos governos militares. O problema agrário, e urbano, remanescente, é o de políticas distributivas, em larga medida, antes que maçiçamente redistributivas. Aconteceu em todos os países depois da transformação capitalista industrial de cada um, assim como está acontecendo na China contemporânea, em seqüência à real privatização da propriedade agrícola.

Mas não é esse o ponto. Politicamente relevante é saber até onde o Judiciário entende que pode definir os limites temporais da chamada modorra do Legislativo e interferir judicialmente. Mais ainda: em tudo aquilo que a Constituição é silenciosa deve o Judiciário legislar, mesmo se solicitado por partido político? Não se trata de questão simplória a que se deva dizer sim ou não, sem mais. O Poder Judiciário, em seu ativismo, está respondendo a uma pressa que não é necessariamente só dele. Existe uma urgência social que o progresso recente, inegável, exceto para a oposição, só faz alimentar.

É curial: quanto mais os países progridem, mais as respectivas sociedades desejam aumentar a velocidade do progresso. O Legislativo está sendo convocado a ajustar seus ritos e trâmites, sem perder a cautela democrática, às carências do país. Mas se eventual lentidão parlamentar preocupa, a pressa do Judiciário não é de forma alguma a mezinha adequada.
 
Wanderley Guilherme dos Santos

Artigo publicado no jornal Valor Econômico, edição de 02/05/2008. 

06 de Maio de 2008

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