Opinião

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ENTREVISTA

A questão é não ter medo da liberdade - Entrevista com Célio Borja

No dia 15 de julho, Célio de Oliveira Borja, carioca, jurista, ex-presidente da Câmara, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e da Justiça, completou 80 anos, sem saudades da vida pública. Hoje, prefere a companhia da família e da biblioteca de 32 mil livros que forram as paredes de uma casa em Teresópolis, do apartamento onde mora, em Copacabana, e do escritório, dois andares abaixo, onde, diariamente, começa bem cedo a trabalhar, elaborando pareceres jurídicos. Foi lá que recebeu O GLOBO para esta entrevista, em que criticou a conduta de juízes e políticos, e o excesso de regulamentação na vida dos cidadãos, inclusive no processo eleitoral que acaba de começar.

O GLOBO: O habeas corpus concedido ao banqueiro Daniel Dantas reforça a sensação de que a polícia prende e a Justiça solta? Como o senhor vê esse debate?

CÉLIO BORJA: Uma das grandes transformações da Justiça no país adveio de um decreto do regente do Reino do Brasil, que não permitia a prisão a não ser por decreto judicial. Obrigava o juiz a fundamentar a ordem de prisão. Ninguém pode ser preso sem saber as razões. E, no caso desse habeas corpus, penso eu, o que levou o presidente do STF a concedê-lo foi a lembrança de que isso é fundamental num regime democrático.

Houve abuso?

BORJA: Evidentemente. Os advogados de defesa se queixaram de não ter tido acesso ao inquérito policial. É uma violência. A Constituição diz que o advogado é essencial à Justiça. Estão esquecendo disso. Estamos virando um Estado policial. Há excesso de regulamentação da vida privada. É preciso estabelecer um limite do poder do legislador, ter sintonia muito fina entre o que pertence a cada um e aquilo que, sendo do domínio individual, no entanto, tem uma repercussão social ruinosa.

Um exemplo?

BORJA: A questão da bebida e do volante. A repercussão social disso é tamanha, que justifica a proibição.

Em que áreas o senhor vê excesso de regulamentação?

BORJA: No processo eleitoral. Um jovem que inicia a carreira política nesse regime não vai a lugar algum. Os meios dos quais se pode valer, os mais modestos, estão impedidos. Querem impedir o uso do celular na campanha. Mandar uma mensagem política pelo celular, como ocorreu na Espanha e está ocorrendo nos EUA. Qual é o problema da comunicação entre cidadãos? É cercear a liberdade pessoal. A questão é não ter medo da liberdade.

Os exageros podem ser uma resposta ao sentimento de impunidade?

BORJA: Há um clamor indiscutível contra o abastardamento da vida pública e da vida administrativa no Brasil. Sendo que a vida administrativa ainda é muito menos afetada por esse abastardamento moral do que a vida política. A vida política tornou-se invivível. Assusta a falta de compostura. Perdeu-se a noção do decoro. Eu dirigiria um apelo a deputados e senadores, para que atentem para o fato de que o povo está olhando. Não espera ação penal para dizer quem é e quem não é corrupto. Julga pelo que vê e ouve.

O que pensa sobre o movimento para impedir candidatos com ficha criminal?

BORJA:
O caminho é esse que está sendo discutido no Senado, modificar a Lei de Inelegibilidades.

Ela é que diz que só se pode barrar a candidatura se houver sentença transitada em julgado. O que é inconstitucional é não cumprir a lei. Salvo se ela for declarada inconstitucional.Enquanto for lei e não se puder argüir contra ela um argumento sólido, deve ser obedecida pelos juízes.

Esse movimento não seria também uma resposta ao clamor popular?

BORJA: O clamor popular sempre se dirige ao Legislativo. Nunca ao Judiciário. Juiz não dá entrevista, não se deixa influenciar por clamor popular. Noto que a idéia de que o juiz é imparcial e isento fica muito comprometida pelo fato de o clamor público ser fundamento para a ação judicial. O juiz não pode virar Pilatos.

Isso está acontecendo?

BORJA: Sim. E é pena, porque se perde a confiança na Justiça. É muito bom clamar. Mas é péssimo se sentir injustiçado. O juiz não pode ter medo de opinião de ninguém. Tem de fundamentar a sentença, recorrendo não só à prova, mas, na interpretação do Direito, ao argumento de autoridade; ele vai aos livros. É uma pena, porque hoje os juízes não gostam mais dos livros.

Concorda com o ex-ministro Saulo Ramos, que disse que preferem ver televisão?

BORJA: Não (risos). Mas há pouca leitura. Os juízes não estão lendo para dar sentença. Por mais ilustrados que sejam. Tenho 32 mil livros, e é com eles que trabalho. Não invento. A impressão, quando vejo os acórdãos e as sentenças, é que os juízes puseram de parte a ciência do Direito. E vivem mais de uma certa intuição do justo. O justo não é uma sensação.O justo se demonstra. Não é essa vontade de se abrir à opinião popular. Isso conduz a uma insegurança brutal.

O questionamento da arbitrariedade de prisões de crimes de colarinho branco não reforça a sensação de que a Justiça é para alguns e não para todos?

BORJA: Reforça, claro. Mas a prisão de Daniel Dantas foi um show. A culpa não é só da Justiça.A culpa é da polícia, porque chama a mídia. Quando eu era ministro da Justiça, proibi.

A morosidade da Justiça não conduz também a esse clamor popular? Que respostas o Judiciário pode dar?

BORJA: A investigação policial deve desaguar na ação penal.Há um rito estabelecido na lei para que qualquer um de nós responda em juízo por qualquer tipo de delito que cometa. O processo penal é a garantia da liberdade de todos nós.

A corrupção está entranhada no dia-a-dia. Como sair disso?

BORJA: Tornar pública a intransigência com o crime na administração. Isso só uma grande liderança pode fazer.

Faltam homens com esse perfil?

BORJA: Faltam grandes lideranças morais na administração. Quando o chefe passa a mão na cabeça de quem prevaricou está dando sinal verde. “Não sabe”, “não é com ele”? É com ele, sim. Se sou o chefe da administração, tudo é comigo. Esse é o tormento do homem público. É muito pouco ombro para muita carga.

Líderes políticos, inclusive o presidente, usam o argumento da presunção de inocência para não punir.

BORJA: Juridicamente, as duas instâncias, judicial e administrativa, são separadas. Um funcionário pode ser demitido do serviço púbico por processo administrativo e absolvido criminalmente na Justiça. Isso é uma forma de tirar o corpo fora. Mas vamos jogar nos braços do povo parte dessa responsabilidade, que é a de perdoar, ser leniente com os que se comportam dessa maneira, e são reeleitos.

Vê possibilidade de avanço para a reforma política?

BORJA: Nenhuma. É preciso homens de Estado, e nós não temos. Temos políticos, gente que dá jeitinho nas coisas. Estão pensando, por exemplo, em financiamento público de campanha. Isso não é reforma. É uma providência de ordem ética, mais nada.

O que seria essencial para uma reforma política?

BORJA: É preciso que o homem de Estado, não o politiquinho, se sintonize com seu tempo, mas não se subordine àquilo que parece ser a tendência, porque às vezes as tendências são suicidas. O homem de Estado antevê os tempos futuros. Não planta couves, planta carvalhos. E estamos aqui com plantadores de couves.

Por que essa é uma área em que o Brasil não evolui?

BORJA:
Estamos numa fase em que nossa introspecção não chegou ao fim. O grande problema é saber o que somos e o que queremos. Não individualmente, mas como povo. Não sabemos. O Brasil ainda é um arquipélago. A TV ajudou brutalmente o Brasil a se encontrar consigo mesmo. Mas esse processo ainda não chegou àquele ponto em que as pessoas tomam consciência não apenas de si mesmas, mas da sociedade, da nação. Esse processo está em marcha acelerada, amadurecendo rapidamente.

O senhor vê exemplos desse amadurecimento?

BORJA: Cinto de segurança; o apoio à Lei Seca. São sinais animadores de que estamos adquirindo essa consciência. Vamos chegar lá. Nesse momento, será possível uma verdadeira reforma política. Que não exclui nada. Pode-se discutir, e civilizadamente. Não é preciso demonizar quem tem opinião diferente, como já aconteceu.

Há uma crise na democracia representativa?

BORJA: Há. Advém da supressão do eleitor como protagonista do processo político. Os partidos substituíram os eleitores. E são, na verdade, associações de profissionais. Deveriam ser associações de cidadãos. Foi assim que foram concebidos.

Qual a saída?

BORJA: É restabelecer a função do eleitor como protagonista do processo político. Por exemplo, acabar com o voto no partido. Eleitor vota no candidato e assume a responsabilidade daquele que escolher.

O senhor é contra o voto em lista?

BORJA:
Absolutamente. É a forma de fechar esse processo de exclusão do cidadão da vida política.

Mas o Congresso está indo por esse caminho.

BORJA: Está. O fortalecimento dessas associações de profissionais, desses sindicatos, em detrimento do cidadão, excluído do processo. Os donos do partido fazem os candidatos, e tenho que me limitar a escolher numa lista. Sou favorável até ao candidato independente, sem patrocínio de partido.

Não enfraquece os partidos?

BORJA: E qual é o mal? Enquanto associações políticas de cidadãos,  devem ser respeitados. Como associação de profissionais da política, não. E a única maneira de transformá-los é com o voto direto do eleitor no candidato, em que ele assume a responsabilidade.

Qual sua expectativa para as eleições aqui no Rio?

BORJA: Nenhuma. O Rio não teve, nesses últimos 30 anos, grandes administradores. Teve políticos importantes. E, ultimamente, tem sido infelicitado pela ascensão dos maquiadores políticos. Eu, aos 80 anos, acordo toda santa manhã para trabalhar, dois expedientes. Prefeito, governador, presidente, eles não podem ser diferentes. Não é para se exibir, não. Trabalhar mesmo. Ir para seu gabinete, despachar, decidir. Ir à rua. Isso é administrar, distribuir tarefas. Cobrar. E, à noite, ele volta para casa, janta, vê um pouco de TV e dorme. Como qualquer trabalhador. Como esse sujeito, que ganha para trabalhar, como todos nós,  não trabalha? Faz figuração?

Como é fazer 80 anos, depois de ter ocupado postos importantes na vida pública? Como vê o passado e o futuro?

BORJA: O futuro não vejo. Aos 80 anos, você está batendo com o nariz na parede. No passado, penso muito pouco. Penso nas lembranças familiares, as boas e as trágicas. Perdi uma filha que tinha 50 anos. Lembro dos meus pais, irmãos, da família enorme, do Rio Grande do Norte.

Meu pai veio para o Rio. Minha mãe era carioca. Devo a ele minha formação. A ela, a ternura, o bom gosto. Sou casado há 56 anos. Tive 5 filhos, 10 netos, uma bisneta nascida e um bisneto nascendo. É disso que lembro. Não posso dizer sequer que tenho saudade de qualquer desses postos. Acho que não tive alegrias, só preocupações. A grande alegria da minha vida são os livros.

Fonte: Fernanda Godoy e Lydia Medeiros - O Globo

16 de Julho de 2008

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