Opinião

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ARTIGO

Fernando Henrique, Weber e a ética

Ao proferir uma aula inaugural na Universidade Sarah, em Brasília, o presidente Fernando Henrique Cardoso teceu considerações sobre a relação entre ética e política que vêm causando polêmica na imprensa. De fato, tal como as declarações apareceram nos jornais, não só suscitam dúvidas sobre as interpretações do presidente como lançam suspeitas de que ele tenta se valer de formulações teóricas para justificar atos de seu governo. Ele tem razão ao sustentar a tese de que os comportamentos e os objetivos dos agentes políticos e dos agentes do conhecimento obedecem lógicas diferentes. Os primeiros perseguem resultados, procedimento que não se coloca necessariamente em oposição à verdade. Os segundos perseguem a verdade, busca que não se opõe a resultados.

Fernando Henrique adota como referência teórica o famoso texto de Max Weber, “Ciência e política, duas vocações”, para sustentar as formulações de que o “homem de Estado não pode dizer tudo o que sabe” e que “ele é obrigado a não dizer”. Ou seja, é obrigado a omitir-se. A ambigüidade, assim, seria constitutiva da ética na política. Weber, como se sabe, estabelece uma distinção entre duas éticas: a da convicção e a da responsabilidade. A ética da convicção é congênita ao procedimento religioso, aos homens de fé ou à busca do conhecimento. A sua essência consiste na proclamação de princípios, de verdades. Há, evidentemente, pessoas e grupos políticos que a adotam na política. Weber sinaliza que a sua utilização na política normalmente implica uma profunda contradição entre objetivos e meios e a adoção da máxima de que os fins justificam os meios.

A ética da responsabilidade seria mais adequada à ação política. Ela comporta algumas premissas. Não se trata de uma ética fechada ou receituária. Não prescreve como o agente político deve se comportar. Pelo fato de a ação política implicar a busca de resultados, cuja certeza e correção não estão dadas de antemão, ela só pode ser balizada por uma ética aberta, a ética da responsabilidade. Se não é uma receita normativa, no que consiste esta ética? Antes de tudo, consiste em que a responsabilidade da ação recai sobre o próprio agente. Ele, e não os outros e nem as circunstâncias, deve arcar com todas as conseqüências de suas ações. Se é isto, depois, a ética da responsabilidade consiste também em conferir ao agente, exclusivamente, a decisão de até onde ele pode ir ou quando deve parar. Em nenhum momento ela ensina que o “homem de Estado não pode dizer tudo o que sabe” e nem recomenda que “ele é obrigado a não dizer”. Estas são decisões que cabem ao homem de Estado, desde que assuma todas as conseqüências das mesmas. A interpretação que o presidente Fernando Henrique fez da ética da responsabilidade, na aula magna, não corresponde exatamente ao texto de Weber.

O jogo da ambigüidade ou da simulação era um tipo de comportamento que Maquiavel recomendava ao Príncipe. Não que Maquiavel fosse anti-ético e pregasse como único fim o poder pelo poder. Pelo contrário, o Príncipe deveria saber manipular qualidades e defeitos não só para manter o poder, mas também para produzir o bem para os súditos, alcançar o bom governo. Se é verdade que a ação do Príncipe não podia ser julgada pela moral do homem comum – e daí a razão de Estado – o fato é que o advento da democracia colocou outras exigências para os políticos, para os homens de Estado. A principal delas, talvez, seja a transparência. Na democracia não há mais o Estado do príncipe; há o governo do povo. O governo tem de ser visível aos olhos da opinião pública e deve dizer não só por que age, mas como age. O governo democrático só se mantém legítimo na medida em que honrar o contrato de confiança e de representação com e do povo. O jogo da dissimulação aqui está limitado pela exigência de transparência e pelo fato de que o poder deve ser exercido dentro dos limites do Estado de direito.

A ética da responsabilidade também não anula a condição fundamental da política, que é a de agir segundo uma causa. A existência da causa política, enfatiza Weber, é constitutiva da vocação política, da condição para que o agente “viva para a política”. Se o “homem de Estado” está impedido de “proclamar” a verdade, como ensina Fernando Henrique, ele deve, no entanto, proclamar a sua causa. Convicção e responsabilidade podem e devem, assim, se combinar. Caso contrário, a política cairá no mais puro realismo oportunista e não constituirá nenhuma base de confiança entre os seres humanos. Precisamente porque os resultados da ação política são imprevisíveis, a proclamação da promessa, que se expressa no programa, é a forma que os homens encontram para reduzir tanto a inconfiabilidade no futuro quanto a inconfiabilidade entre si mesmos. Aliás, Hannah Arendt lança a luz sobre esta questão ao mostrar que a única forma que alguém tem para revelar-se, mostrar quem é, é por meio do verbo, da palavra. Pode ser acaso, mas talvez seja sintomático, que Fernando Henrique tenha feito um elogio ao “não-dizer” logo após ter consolidado uma base de apoio tão heterogênea, que terá muita dificuldade de dizer o que quer.

José Genoino
Aldo Fornazieri – Professor da ESP-SP

O Globo, 11 de maio de 1998

11 de Maio de 1998

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