Opinião

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ARTIGO

O Estado delinqüencial

O massacre dos sem-terra no sul do Pará representa a explicação em forma de tragédia de um longo processo de degradação do Estado e de sua transformação em instância institucionalizada de promoção do crime contra os cidadãos. O Estado brasileiro é um grande mal, não apenas porque não é capaz de oferecer serviços eficientes e promover a justiça distributiva para impedir a degradação social. Ele tornou-se um grande mal porque está patrocinando a morte de pessoas, seja pela sua criminosa omissão ou seja pela sua participação ativa na promoção da violência como ocorreu no Pará, em Corumbiara, na Candelária, em Vigário Geral e como ocorre diariamente nos grandes centros urbanos onde a polícia pratica a violência contra cidadãos inocentes e se envolve com o crime organizado.

Mas a perversidade do Estado deliqüencial se manifesta de forma muito mais violenta e muito menos clara nas incontáveis omissões, que além de negar os direitos mínimos de cidadania a milhões de pessoas, vem provocando a morte de muitas outras. A ação criminosa do Estado pode ser detectada na omissão do Banco Central que provocou o rombo de bilhões de reais no sistema financeiro. Agora o poder público tem de tapar os buracos com recursos que poderiam evitar mortes e a degradação social. A ação criminosa do Estado se manifesta na ausência de fiscalização na saúde pública, permitindo a utilização de sangue contaminado que põe em risco a vida de muita gente ou na omissão diante de casos como o da hemodiálise em Caruaru. O estado criminoso age quando deixa apodrecer ou desviar milhões de toneladas de grãos nos depósitos do governo enquanto a fome dizima milhares de brasileiros.

O Estado deliqüencial pode ser visto na degradação das estradas, das escolas, na ausência do tratamento dos problemas de enchentes nas grandes cidades. Em suma, a longa lista de descasos, de omissões e tragédias tornou-se inumerável. Foi preciso que ocorresse uma tragédia como a dos sem-terra para que a dramaticidade da crise social no Brasil se mostrasse aos olhos da sociedade e dos governantes com as cores do sangue, com o terrível espetáculo de corpos amontoados lembrando um cenário de guerra. A verdade é que a sucessão de tragédias e a gravidade da crise social atestam o colapso do Estado e o fracasso das reformas do governo. O Estado se tornou o centro de um grande complô de omissão contra os cidadãos. Este é o ângulo que o governo deveria tomar para propor uma reforma do Estado. O conteúdo das reformas administrativa e previdenciária do governo, ao invés de solucionar a crise de funcionamento do Estado, podem agravá-la, porque não tomam como ângulo de abordagem as finalidades do Estado, mas apenas a solução técnica do problema fiscal.

A crise do Estado tem um caráter muito mais abrangente do que aquilo que está suposto na proposta de reforma do governo. Ocorre que o Estado carece da institucionalização de um padrão democrático de funcionamento. Este padrão deveria se expressar num conjunto de normas e leis eficientes, que o Legislativo vem se mostrando incapaz de equacionar. Deveria se expressar numa ação rígida e eficaz dos órgãos fiscalizadores e de controle do governo, paralisados pela omissão e pelo desaparelhamento técnico e de pessoal qualificado. Deveria se manifestar na ação competente do Judiciário onde, além da ineficiência, impera a máxima de punição para “os de baixo” e impunidade para “os de cima”. O Estado faliu nas suas funções legislativa, normativa, fiscalizadora, administrativa e na aplicação da Justiça.

É mentirosa, por exemplo, a idéia que o governo procura vender de que a solução de todos os problemas depende da viabilização das reformas constitucionais. A questão da reforma agrária, a rigor, não depende de nenhuma reforma constitucional, mas da vontade política de fazê-la. O governo tem de sair da embriaguez do real e da obsessão pelas reformas constitucionais para começar a governar. Até agora o governo não governou: o Plano Real foi implantado ainda na gestão passada. Esta gestão limita-se a administrá-lo e, inclusive, colocando-o em risco na medida em que não consegue resolver ou resolve mal problemas que são subjacentes à estabilização. As reformas constitucionais não são obra de governo, mas uma tarefa que cabe ao Congresso Nacional resolver.

Toda a sociedade, de fato, tem uma parcela de responsabilidade pela sucessão de tragédias que abatem e envergonham o País. Mas os políticos, o grupo do que faço parte, têm uma responsabilidade muito maior porque cabe a eles apresentar soluções. Responsabilidade maior ainda cabe às maiorias governantes, pois elas têm os instrumentos de poder nas mãos que são poderosas armas que podem evitar tragédias ou permitir que elas aconteçam. Infelizmente, as más decisões e as omissões vêm pesando mais do que aquilo que poderia caracterizar um bom governo. A vergonha a que todos estamos submetidos deveria, ao menos, proporcionar o início de uma virada na tragédia secular do nosso povo.

O Globo, 30 de abril de 1996

30 de Abril de 1996

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