Opinião

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ARTIGO

Reforma do Estado e democracia

O atual período político, que se iniciou com a posse do presidente Fernando Henrique e que se encerra com as eleições, deixou várias tarefas inconclusas ou por começar. Uma delas diz respeito à reforma do Estado, questão que certamente comporá a pauta política do novo período que se abre com a posse do novo presidente no início de 1999. Pela relevância do tema, quero propor a discussão de uma nova concepção de Estado lembrando que o tradicional Estado patrimonialista que tivemos no passado era estatal nos meios e privatista nos fins. A instrumentalização do Estado em benefícios de fins privados e particulares é um traço muito forte que faz parte ainda hoje da nossa tradição política. O Estado brasileiro não é plenamente universalizado nas suas finalidades e isto o caracteriza como um aparato institucional apartado da sociedade. O cidadão pouco se vê representado nas instituições políticas, pouco recorre ao poder público para impetrar suas demandas e quase não é assistido por ele em termos de políticas públicas e de serviços eficazes e universais.

Do ponto de vista geral, o que se observa hoje é que existe uma relação tensa entre os imperativos da observância das regras constitucionais e dos princípios legitimadores do poder com as necessidades da eficácia e da agilidade dos processos decisórios. Freqüentemente, essa tensão resvala para um desequilíbrio em favor das necessidades tangenciando até mesmo uma ruptura com os limites legais. Em vários países, busca-se um modelo concentrador do poder no Executivo com um correspondente esvaziamento do Parlamento e recorrentes manipulações do Judiciário. Alguns analistas sugerem que esses Estados estão caminhando para uma espécie de democracia não-liberal, onde as condições da competitividade partidária e eleitoral são limitadas e onde o jogo político entre Poderes e a própria noção de poder político limitado ficam aplastados em nome de uma discrição cada vez maior do Executivo.

No caso brasileiro, as tendências centralistas se manifestam de forma grave na relação entre os Poderes. A relação essencial que ocorre hoje entre o Executivo e o Legislativo é mediada pelas medidas provisórias, que representam uma renúncia de prerrogativas pelo Parlamento e o instrumento principal da ação discricionária do presidente. Imbricados com esse problema geral existem outros temas que compõem aquilo que poderíamos chamar de rol dos temas da reforma política e institucional. Sinteticamente, destaco a necessidade de uma lei eleitoral permanente, o sistema eleitoral e partidário, a representação dos estados na Câmara Federal, a reforma do Judiciário, a reforma do Congresso, a revisão do princípio da imunidade parlamentar etc.

O Estado atual está em crise também enquanto garantidor de direitos e fornecedor de serviços. Neste ponto quero demarcar minha posição com dois extremos. Não concordo coma visão autárquica, paternalista e corporativista do Estado e tão pouco com o ideário vigente do Estado mínimo que pretende remeter as principais questões e demandas da sociedade para soluções de mercado. A recusa da tese da preeminência do mercado não nos pode induzir à assimilação do estatismo autárquico e do intervencionismo estatal. Além de uma série de vícios e privilégios burocráticos e corporativos que esse esquema proporciona, é preciso levar em conta que tanto na esfera social quanto na econômica, o dinamismo de agentes privados pode implicar superávits de eficiência e qualidade. É certo que o mercado gera distorções e desequilíbrios. Justamente por isso, um Estado forte, regulador, fiscalizador, disciplinador e indutor deve funcionar como a instância pública comum capaz de retificar desequilíbrios e constituir os interesses públicos gerais da sociedade. Claro que o próprio poder público pode estabelecer parcerias com a iniciativa privada, vantajosas para as duas partes. Isto, por exemplo, diz respeito ao modelo de privatização relacionado à área dos serviços públicos. Um modelo de privatizações adequado deveria garantir ao mesmo tempo os interesses da iniciativa privada, que faz investimentos com a expectativa de lucros futuros, e os interesses da sociedade, que devem ser salvaguardados em lei pela função reguladora, fiscalizadora e indutora do Estado. A sociedade, por meio dos seus fóruns organizativos, também deveria ter seu espaço garantido nas instâncias ou agências mediadoras da relação público/privado.

O processo de privatização das empresas prestadoras de serviços não pode desembocar na constituição de monopólios privados. O problema central, portanto, não é se privatiza ou não privatiza. É óbvio que na medida em que o poder público não tem recursos para aumentar a oferta de serviços e melhorar sua qualidade, a forma de fazê-lo é recorrer à iniciativa privada. Sem a privatização de várias áreas, o país corria o risco de perder terreno na modernização de infra-estrutura, na agilidade e na eficácia do processo produtivo. Isto tudo se traduz em perda de competitividade internacional num mundo de economia globalizada. A questão central é assim o modelo de privatização. Do meu ponto de vista, o modelo de privatização deve atender fundamentalmente dois requisitos: a garantia da universalização dos serviços e os direitos dos cidadãos enquanto consumidores, e a qualidade dos serviços visando conferir competitividade ao processo econômico do País. O modelo de privatizações adotado pelo governo, se julgado por esses critérios, deixa muito a desejar.

Um novo modelo de parceria entre público e privado capaz de garantir a eficácia dos serviços e sua universalização só é possível com uma nova institucionalidade. É verdade que as agências reguladoras como a Anatel, a Aneel e ANP sinalizam essa nova institucionalidade, mas as funções dessas agências ficaram muito aquém das necessidades determinadas por aquilo que seria um modelo mais adequado de privatização. As agências, por exemplo, não incorporam a noção do controle público não estatal exercido pelos representantes dos consumidores na prestação de serviços. Outro problema grave é que o Congresso se auto-excluiu da função reguladora e fiscalizadora ao transferir todo o poder decisório às agências. Com isso, os interesses do consumidor, a rigor, ficam alijados de defesa e representação.

A reforma do Estado que está em curso parece que não se preocupa em incorporar a necessidade de afirmar uma institucionalidade forte nas suas funções reguladoras e fiscalizadoras. Tome-se como referência os tribunais de contas: eles existem para não funcionar. O próprio sistema de controles e contrapesos dos três Poderes sequer funciona de forma adequada e autônoma, tal como a teoria republicana o pressupõe. Olhe-se para outras instituições como a Receita Federal, a Polícia Federal, o Banco Central, o Cade e se verá a mesma precariedade na regulação e na fiscalização e uma promiscuidade de interesses com a iniciativa privada. Não raro, muitas dessas instituições recrutam pessoas que têm ligações imediatas com os interesses de grupos privados. Começa a ganhar ares de verdade a piada que diz que o caminho mais rápido para alguém se tornar banqueiro consiste em se tornar diretor do Banco Central. É por esses caminhos pouco transparentes que as instituições públicas são transformadas em territórios extensivos de interesses privados. É por isso que afirmo que a burocracia brasileira nunca foi uma burocracia republicana no sentido de que ela não confere a preeminência aos interesses públicos, mas se situa numa zona cinzenta por onde trafegam os interesses privados. Todas essas características legitimam a idéia de que o Estado brasileiro é um Estado que está a serviço das elites, de que se trata de um Estado excludente de direitos e cidadania.

Outro grave problema de enfoque da reforma administrativa do Estado é que ela está sendo concebida pelo lado fiscal, pelo lado do corte de despesas e não pela dimensão das finalidades do poder público. Os benefícios fiscais que a reforma administrativa produz são pífios. Se o governo tivesse a intenção de encarar com seriedade e responsabilidade o problema fiscal, deveria ter optado por uma reforma fiscal e tributária profunda.

Há um último aspecto da reforma do Estado que não pode deixar de ser mencionado. Diz respeito à dimensão do Estado enquanto garantidor de cidadania e direitos. Este é, provavelmente, o problema mais relevante do próprio funcionamento do Estado democrático hoje. Se até ontem o conflito ideológico determinado pela bipolarização da Guerra Fria incidia no conteúdo das políticas democráticas, hoje são os desequilíbrios sociais internos que afetam o significado da democracia. Com o fim da polarização ideológica, o mundo vive outro tipo de clivagem: nas relações entre Estados, temos, de um lado, os Estados desenvolvidos e aptos a competir e agregar vantagens na economia global; de outro, temos Estados em desenvolvimento, incapazes de competir e destinados a uma posição subalterna em relação aos Estados desenvolvidos. Do ponto de vista das relações sociais e econômicas internas a cada Estado se verifica um tipo de clivagem semelhante: de um lado estão os setores incluídos, que dispõem de chances de vida, de alternativas e têm acesso ao consumo; de outro, estão os setores excluídos que são deixados à margem da estrada do progresso.

O sonho de que a democracia pudesse garantir o bem-estar social sofre hoje uma série de pontos de interrogação. Muitas das facetas mais negativas da vida humana tais como a degradação, a violência e o tráfico, que são perceptíveis hoje em todas as grandes cidades, são conseqüência de um modelo social e econômico que perdeu a referência no bem-estar dos cidadãos para fixá-la na maximização do lucro e da competitividade. Neste final de século e de milênio, o principal desafio do pensamento democrático-republicano consiste em repensar o próprio significado da idéia de república democrática. Pode-se dizer até mesmo que o significado da idéia de república entendido como a preeminência do bem público sobre os vários interesses privados foi se tornando cada vez mais ausente no processo de afirmação das repúblicas modernas. Mas se quisermos ainda nos declarar herdeiros do que há de melhor na tradição greco-romana, precisamos resgatar o Estado como principal agente civilizador. Se quisermos conferir ainda algum sentido à palavra respublica os interesses privados têm de ceder algum espaço para as virtudes cívicas configuradas nos valores da justiça e da eqüidade.

Página Central, setembro de 1998

01 de Setembro de 1998

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