Versão para impressão
| Indicar para amigo 
artigo
O deputado Roberto Campos, embora afirme o contrário, costuma esfregar sal grosso nas feridas intelectuais da esquerda. Mesmo que o faça com ironia e o sarcasmo que lhes são costumeiros, isto chega a ser um mérito num país carente de debate político, principalmente quando o destino político do Estado se encontra numa encruzilhada diante das incertezas que povoam este final de século. Incertezas que, aliás, não são devidamente reconhecidas por Roberto Campos, já que em seus artigos costuma professar verdades inscritas nos rochedos do pensamento liberal. Encontra-se aí uma certa transgressão da doutrina porque o liberalismo rima com relativismo.
Em seu artigo, “Mais perplexidades” (O Globo, 21-1-96), Campos atribui à boa qualidade dos espíritos a tentação de elevar a condição humana e corrigir as injustiças. Tanto na epígrafe como no artigo não deixa de insinuar que os “bons espíritos” são os maiores produtores do mal. Como alternativa sugere o racionalismo, freqüentemente matemático, como elixir para todos os males do mundo. Esquece-se que o racionalismo não é neutro, que ele se apresenta com as vestes da ideologia e que em nome da razão já se cometeram muitas barbaridades. Nós partimos da idéia weberiana de que a política é uma vocação e que está implicada com uma causa a defender. Elevar a condição humana e corrigir injustiças são causas de quem aposta no processo civilizatório e de quem acredita que condição humana é passível, ao menos, de alguma perfectibilidade.
É certo que as feridas e os erros da esquerda precisam sangrar para que as insuficiências e incompreensões possam ser superadas. Mas se é preciso responsabilizar alguém pela tragédia social no Brasil e pela inoperância do Estado, o sal deve ser esfregado nas feridas da direita e dos liberais que, invariavelmente, a ela se aliaram. Querer culpar a esquerda por esta situação é um despropósito. Aliás, aqui também é pertinente recorrer à autoridade intelectual de Weber quando diz que se “existem crimes políticos”, um deles consiste no procedimento de sempre imputar a culpa aos outros.
Roberto Campos tem razão quando registra que os liberais não vêem o Estado como um mero símbolo de opressão. A sua afirmação é corroborada pelo fato de que na Europa, os liberais foram co-partícipes (junto com a social-democracia) da construção do Estado de bem-estar. Stuart Mill e outros teóricos do liberalismo advogaram uma função social ao Estado. Mas o nosso deputado erra quando reduz o Estado a uma simples “sede de poder de coerção”. O Estado, de fato, é o poder de coerção institucionalizado, mas não é só isto. Ele é também o lugar do consenso. O próprio John Locke, o pai do liberalismo político, via o Estado como o lugar do consenso como produto do consenso. Com isto concorda também o marxista Antônio Gramsci que vê no Estado não apenas o momento negativo e coercitivo, mas também o momento positivo, ético e educativo. Neste ponto, paradoxalmente, Roberto Campos parece estar mais próximo de Marx do que nós, da esquerda democrática. O Estado não se reduz a uma instância de gestão administrativa, mas é, acima de tudo, o depositário do sentido social do processo civilizatório que as livres escolhas individuais conferem à sociedade.
Concordamos ainda com Roberto Campos quando afirma que é preciso fazer uma terraplanagem no estado brasileiro. Além de ser o asilo dos interesses corporativos e dos privilégios, o Estado é a chocadeira do acúmulo do grande capital privado e o instrumento de fabricação da exclusão social. A polarização estatismo versus neoliberalismo, é verdade, se presta a simplificações e esconde interesses, muitas vezes pouco claros. Portanto, a tarefa que se impõe é a de discutir o conteúdo concreto do Estado que queremos.
Aparentemente, se estabeleceu um acordo entre Roberto Campos e nós em torno da idéia de que não tomamos nem o Estado e nem o mercado como a razão. Para nós, o referencial racional é o movimento histórico de instituição de direitos dos cidadãos em busca de mais liberdade, de mais justiça, de mais igualdade, sem cairmos na presunção de que esses valores-guias possam ser realizados de forma absoluta. Concordamos também que o mercado é o lugar das livres transações entre os indivíduos e por isso representa uma condição importante da liberdade.
Mas é preciso perceber que nele não ocorre uma igualdade de oportunidades, como pensam muitos liberais. Os indivíduos partem de condições de possibilidades extremamente desiguais. Ao contrário do plebiscito político, que é capaz de gerar determinados consensos, o “plebiscito mercantil” produz resultados radicalmente fragmentários e contraditórios. Se quisermos ser racionais, não basta discutir que tipo de Estado queremos. É preciso conferir racionalidade também ao mercado através de uma ação retificadora do Estado, mediante regras que garantam a liberdade de mercado, os direitos dos consumidores, os contratos e a coibição de abusos como, por exemplo, a ação dos monopólios privados.
O Globo, 6 de fevereiro de 1996
06 de Fevereiro de 1996