Opinião

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NOTAS POLÍTICAS

Aspectos políticos sobre a questão do aborto

É consenso entre nós que a legislação brasileira que trata do aborto é anacrônica, ultrapassada e impede uma política que enfrente a questão como um problema de saúde da mulher, de defesa da vida da mulher.

Mesmo as iniciativas de âmbito estadual ou municipal – como, por exemplo, as que estão sendo feitas pela Prefeitura de São Paulo, que estabelecem condições para o exercício do direito ao aborto para os casos previstos no Código Penal -, embora sejam muito importantes, são incapazes de fazer frente a esse grande problema, devido à legislação proibitiva maior. Mas, depois dos dados (graves) aqui colocados por um secretário de Saúde e da unanimidade de opinião dos diversos palestrantes, cabe perguntar: por que essa legislação ainda existe?

Na minha opinião, o atual Congresso não vai mudar esta legislação. Na Constituinte, realizada por nós nesse final de século XX, a questão ficou à margem, não foi proibida, mas também não foi legalizada. E aí, nós temos que colocar o dedo na ferida. É a concepção de sociedade, a concepção ideológica de valores de uma sociedade moldada, edificada e montada sob a égide da seguinte razão: a felicidade humana e a plenitude das realizações humanas estão limitadas, seja pelos conceitos morais, religiosos e éticos, seja pelo caráter tutelar que o Estado possui, como se ele fosse o grande pai, apto a ditar o que as pessoas devem fazer e o que não devem fazer.

A questão central é, exatamente, a de uma sociedade que se auto-regule, de uma sociedade autônoma e livre, que possa quebrar o nó no que diz respeito ao aborto. Chamo a atenção de vocês! A gaiola de ouro ou a gaiola de papelão na qual está metida a mulher é o produto dos preconceitos de uma ideologia machista e patriarcal, fundamental para manter essa sociedade assentada em valores reacionários e conservadores. Porque, se não fosse isso, essa legislação cairia, pois é inócua, é hipócrita, é farisaica e está acobertando algo que os dados (sobre o aborto) mostram claramente. Embora pareça óbvia e evidente a necessidade de remover essa legislação, ela não cai justamente porque existe algo maior que contribui para moldar esta sociedade, que é a ideologia dominante.

Sobre esse algo maior, a ideologia machista que está presente e perpassa toda a problemática do aborto, nem vou falar detidamente aqui. Quero me concentrar na necessidade de se ter uma posição democrática nessa discussão. Costuma-se colocar um sinal de igualdade entre a defesa de uma legislação que garanta o direito ao aborto e a posição a favor do aborto, que são coisas distintas. O que queremos debater, nesse momento, é a legislação do aborto, não o mérito de fazer ou não.

Uma questão em torno da qual se devia estabelecer um consenso na sociedade, com todas as religiões e doutrinas, é a seguinte: o conceito de vida humana, ou melhor, a determinação do momento em que o feto adquire vida humana, é polêmica e acompanha a humanidade em toda a sua evolução. Outras comunidades humanas, filósofos e, inclusive, grandes teólogos da Igreja tinham posições diversas sobre este problema. Então, é preciso admitir, no mínimo, que este é um problema polêmico, que dividiu e divide a humanidade. Em conseqüência, jamais se pode impor, a não ser autoritariamente, uma legislação que contenha uma única e exclusiva concepção. Uma sociedade radicalmente livre e plural como queremos construir exige uma legislação que incorpore concepções diversas e plurais.

A posição que coloco, e que depois vou aprofundar, é que o direito de interromper a gravidez é um direito fundamental da mulher. Não é uma concessão, é um problema seu, que não pode ser submetido a nenhuma legislação de Estado, proibindo ou estabelecendo condições. O papel do Estado deve ser o de oferecer informações e meios materiais gratuitos para que as mulheres, ao tomarem a decisão de abortar por livre e espontânea vontade, possam ter acesso a eles. Isso é o que uma sociedade democrática deve estabelecer, a pluralidade em relação a uma questão que é polêmica.

Além disso, acho que o problema de legalização do aborto envolve uma outra dimensão democrática, que diz respeito à livre opção. Você não pode estabelecer uma única opção para toda a sociedade, pois aí ela deixa de ser opção e passa a ser imposição. Nós devemos, inclusive, defender que se estabeleça o dissenso na sociedade, abrindo um debate que inclua os aspectos médicos, éticos, filosóficos da questão e assim possibilitar que as pessoas escolham conscientemente. Você resolve uma preliminar e abre a discussão. No Brasil, essa preliminar não foi resolvida e aqueles que são contra o aborto sequer admitem outras posições, colocam a não-legalização e pronto. Mas caem numa contradição mortal, pois se acreditassem que seus argumentos são efetivamente fortes e justos, estabelecido o direito ao aborto, não haveria maior dificuldade em convencer a maioria da sociedade sobre a incorreção de as mulheres exercerem esse direito.

Se é uma questão que mexe com a consciência e com a religião, como dizem alguns, jamais se pode colocá-la na esfera do Estado, jamais se pode colocá-la na esfera de uma Delegacia de Polícia, de um Código Penal.

Se é uma questão de consciência e de religião, que seja então tratada na esfera própria da religião, onde ela possui grandeza, exatamente na consciência do indivíduo onde ele tem liberdade para fazer escolhas.

A outra contradição dos que se afirmam contrários à legalização do aborto é a não-solução de um problema que está posto na sociedade. Há uma questão que é complicada para os penalizadores do aborto hoje: de acordo com o Código Penal, o aborto é admitido em certas circunstâncias. Portanto, os defensores da idéia de que o aborto é crime devem reconhecer que a atual legislação deixa no mínimo arranhada sua concepção de vida humana, pois aí, nos casos previstos no Código Penal, também se coloca a necessidade de se fazer uma opção entre o feto e a vida concreta da mulher.
Se os que são contra a legalização do aborto radicalizassem as suas posições, e há alguns que o fazem, teriam que não só não concordar com essas exceções, nas quais de acordo com o Código Penal deve se fazer opção pela vida da mulher, mas também explicar à sociedade por que o tratamento dado à vida humana da mulher tem diferenciação em relação ao feto.

No meu entender, a questão da interrupção da gravidez é um problema de consciência, da individualidade da mulher, além evidentemente de ser um problema de saúde pública.
Antes de mais nada, é preciso quebrar a relação que a sociedade estabelece com a mulher, na qual ela é fundamental para moldar o conceito de família tradicional e possessivo, é uma peça na reprodução da ideologia e do modo de vida dominante: na contenção da agressividade, na normatização da sexualidade, na condição de objeto e ser inferior.

Em segundo lugar, para o estabelecimento de uma relação em sociedade entre indivíduos livres, é preciso que a felicidade humana e o prazer não tenham uma finalidade meramente utilitarista.
É preciso quebrar justamente com aquilo que os valores arcaicos disseminaram na sociedade: a idéia de que a felicidade humana, o prazer e a relação sexual estão indissoluvelmente ligados à reprodução.

Ao fazer esta ligação direta e exclusiva, é como se o ser humano, ao se relacionar sexualmente por prazer e sem o objetivo de reproduzir, estivesse pecando, estivesse maculando algum valor, tendo que pagar por isso uma posição de penitência. Assim, para a sociedade e para os indivíduos, a relação sexual passa a ter um sentido pecaminoso e punitivo, adquirindo o caráter de uma relação hipócrita e farisaica.

Não associo a questão da legalização do aborto exclusivamente a aspectos de ordem econômica e social, pois acho que tanto para uma mulher que está numa gaiola de ouro como para a que está numa favela, o problema em relação à plena liberdade de decidir sobre seu próprio corpo é dela, porque diz respeito a um valor intrínseco: a sua liberdade.

É claro que as aberrações e a hipocrisia são óbvias na legislação que encobre as clínicas clandestinas que cobram preços exorbitantes e deixa na amargura milhões de mulheres pobres. Assim, quem pode fazer tudo bem, quem não pode, no caso a maioria, vive esta situação de calamidade pública. Mas isso, do ponto de vista que estamos tratando, é apenas a exacerbação de uma ideologia farisaica, patriarcalesca e superada que tenta impor um padrão de comportamento único e conservador para toda a sociedade. É com isso que nós temos que romper!

A legalização do aborto é uma peça fundamental para a construção de uma sociedade em que as mulheres sejam livres. Falo na condição de socialista, que, inclusive, não pode se omitir de criticar a maioria dos países que se dizem socialistas e que não enfrentam esse e outros problemas relativos ao prazer e à felicidade com uma concepção nova e aberta. Não podemos nos contentar com um socialismo que resolva apenas o problema material das pessoas; queremos uma sociedade que resolva também o problema da subjetividade, da felicidade, da liberdade e da democracia. Do contrário, não estaremos forjando indivíduos emancipados, e estará aberto o caminho para a tragédia, como essa a que assistimos há poucos dias em Pequim, quando barbaridades foram cometidas por uma burocracia totalitária em nome do socialismo.

Por isso é fundamental fazer uma crítica radical a toda sociedade edificada na discriminação, na idéia de que a mulher é um ser inferior. Se não fizermos essa crítica, a própria mulher pode tornar-se peça de manutenção dessa sociedade discriminatória. E a proibição do aborto é essencial para a preservação de uma sociedade desse tipo.

A legalização do aborto, portanto, está intimamente relacionada à luta pela plena emancipação da mulher, para torná-la sujeito do processo histórico, livre de toda opressão, incluindo e destacando aquela decorrente da ideologia machista e patriarcal.

Quero, assim, expressar a vocês a minha participação, o meu compromisso nessa luta, que não é um compromisso qualquer de um deputado que está aqui circunstancialmente, é o compromisso de um deputado que está aqui porque tem essa causa como sua, articulada com uma determinada concepção de vida e de sociedade. Foi lamentável que, durante a Constituinte, um acontecimento como esse não tenha ocorrido, pois se tivesse havido um debate nacional sobre a questão poderíamos ter contribuído para mudar a mente de muita gente.

Entro, por fim, numa questão extremamente polêmica: eu levo tão a sério o problema do aborto como dimensão essencial da individualidade das pessoas, que não creio que seja correto decidir sobre esse direito a partir de uma posição de maioria. Por essa razão, eu não sou em princípio favorável à realização de um plebiscito, porque nesse caso a tomada de posição por parte da maioria pode implicar em desrespeito aos direitos da minoria, quer dizer, pode implicar em opressão dos direitos de uma eventual minoria.

E, se nós queremos uma sociedade plural, não se pode fazer de uma questão como essa, que envolve conceitos éticos, religiosos, que envolve a intimidade, a individualidade e a liberdade da mulher, um plebiscito no qual esteja em jogo o cerceamento de um direito. Nesse sentido, é preciso que a sociedade discuta essa questão, sem impor uma única visão, sem impor às mulheres um determinado comportamento, seja através de plebiscito ou de outra forma.

A obrigação da sociedade é assegurar condições materiais e espirituais para que as mulheres façam suas escolhas de acordo com sua consciência. Evidentemente, uma opção nesse rumo tem uma enorme radicalidade, não só do ponto de vista social e econômico, mas também do ponto de vista ideológico. Friso bem essa palavra ideológico, porque estamos mexendo com um edifício secular, com uma história de discriminação, de preconceitos, de truculência, de autoritarismo. Sim, de truculência e autoritarismo, pois as coisas se articulam, e justamente nos períodos mais sombrios da história da humanidade a prática do aborto foi tratada, ordinariamente, de modo mais cruel.

Temos que abrir esse debate para a sociedade, porque está em jogo não apenas o presente, mas a sociedade no futuro que queremos construir. – José Genoino Neto (Discurso pronunciado e revisado pelo autor).

(Do texto: “Mandato Popular”, impresso da Câmara dos Deputados, Brasília – 1990)

09 de Janeiro de 1990

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