Opinião

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NOTAS POLÍTICAS

Direitos humanos

Sr. presidente, sras. e srs. deputados, em diversas cidades do país está sendo lembrada a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, que faz duzentos anos de existência. E há dez anos a luta pela anistia, em nosso País, conquistou uma vitória, embora relativa, acabando com o exílio e a prisão de muitos brasileiros que enfrentaram a ditadura militar.

O ponto alto das comemorações dos dez anos da anistia e dos duzentos anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão é a programação apoiada pela Prefeitura de São Paulo, uma administração democrática e popular da companheira Luiza Erundina, que, juntamente com outras entidades da sociedade civil, promoveu um seminário intitulado “Cidade, Cidadão e Cidadania”.
Ontem, no Parque Anhembi, foi prestada uma homenagem aos estudantes que tombaram em Pequim, em nome da democracia, do socialismo e da liberdade. Hoje, foi reerguida a Tribuna Teotônio Vilela, destruída pela administração reacionária do sr. Jânio Quadros. E, ao reerguê-la, também prestou-se homenagem a todas as vítimas do autoritarismo militar desde 1964.

Queremos deixar bem claro que o sentido de lembrar a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e os dez anos de anistia não é apenas o de voltar ao passado, como pensam os direitistas truculentos deste país; nem, muito menos, o desejo de vingança pessoal ou de revanchismo, segundo a ótica dos opressores. Queremos construir um presente e um futuro de liberdade e de democracia. Por isso, pretendemos lembrar os direitos humanos no Brasil e, principalmente, olhar para a frente, porque esta nação tem uma trajetória em que a violação desses direitos é uma constante. Há também muitas questões relacionadas à violação dos direitos humanos, por ocasião da ditadura militar, que precisam ser levantadas, dada a sua atualidade.

Não confiaremos nesta democracia enquanto existir um político desaparecido neste país. Não confiaremos nesta democracia enquanto não houver uma dura penalização da tortura, porque é um crime de lesa-humanidade. Não confiaremos nesta democracia, enquanto não extinguirmos os instrumentos de repressão policial-militar, imbuídos e organizados pela ótica de uma sociedade fechada, monolítica e caracterizada pela dominação impositiva.
Queremos uma sociedade plural, com liberdade e democracia, onde exista dissenso e divergência. Trata-se principalmente, sr. presidente, de levantar a temática dos direitos humanos como uma questão universal, tão importante no país capitalista como no socialista, porque não podemos imaginar socialismo sem atendimento aos direitos humanos como valor universal.

Na nossa concepção de socialismo humanista, a liberdade está como o sangue para a carne, dá-lhe vida e forma com ela uma totalidade. A importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a universalidade da Revolução Francesa contemplam-se com os dez anos de anistia e com toda a pauta de reivindicações do movimento brasileiro pela democracia.

A criminalidade é a expressão da livre iniciativa em matéria de violência, é a relação do aparelho de Estado com a violência, porque este não a enfrenta com visão democrática e acaba sendo conivente e omisso.

Gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que, durante muito tempo, a historiografia conservadora e liberal insistiu no suposto caráter pacífico e conciliador do povo brasileiro, omitindo as atrocidades que permearam os diversos momentos históricos do país. Nossa imagem mais popular é a de uma sociedade alegre, que vive de carnaval, futebol e samba. Somos, é verdade, uma sociedade que incorpora a diversidade na formação étnica de seu povo, mas, ao se levantarem esses valores, busca-se justificar a dominação essencialmente autoritária e conservadora, porque a opressão política existente no país, desde o período colonial, tem sido excludente e discriminatória, criando uma multidão de marginalizados sem qualquer participação política.

Por isso, temos experimentado não só uma ideologia política conservadora, autoritária e impositiva na relação do Estado com a sociedade, mas também a truculência na repressão policial e militar. Além disso, essas questões não têm sido enfrentadas com visão democrática nem mesmo nos momentos de abertura política.

A chamada transição no Brasil – para citar nossa última experiência – tem sido, em relação a países como a Argentina, o Uruguai e a Espanha, mais conservadora e autoritária. Não é por acaso que só agora teremos eleições presidenciais. Ademais, todo o arsenal jurídico e político da época da ditadura não só permaneceu intocado, como também foi reciclado para atender às novas necessidades de caráter repressivo do Estado brasileiro.

Nesse contexto, emerge, com nitidez, a imagem de um povo que já não tem o hábito de cultivar a solidariedade, a fraternidade e a liberdade. O que se vê é uma crescente violência fragmentada, adquirindo proporções de calamidade, uma verdadeira guerra silenciosa e subterrânea. A própria consciência democrática, formada de valores que traduzem a essência da humanidade, está sendo rebaixada.

As elites brasileiras atuam de duas maneiras: estabelecendo uma dominação excludente e conservadora induzindo a população ao apoliticismo, para vender, ao seu modo, um produto, como está acontecendo na atual campanha presidencial. O fenômeno Collor de Mello é a síntese da razão autoritária e conservadora imposta a um povo que não pode ser sujeito, que é tratado como papel descartável, ou mero objeto de manipulação das elites dominantes.

No nível institucional, existe a violência do Estado: os conflitos sociais são ainda tratados como caso de polícia. O Estado brasileiro, que sempre se revezou entre o autoritarismo declarado e o paternalismo populista, exprime uma violência orgânica que se reproduz através de instituições arcaicas, corrompidas ou reacionárias. O sistema judiciário, as Forças Armadas e o aparelho policial-militar são exemplos eloqüentes que ainda não passaram pela drenagem da consciência democrática profunda.

A atuação policial é arbitrária e atinge, sobretudo, as classes populares. A corrupção e a impunidade vicejam abertamente nos órgãos policiais, e o sistema penitenciário, por sua vez, funciona de um modo desumano e deficiente. Os efeitos disso estão aí: ondas de crimes sem solução, incluindo assassinatos de camponeses e operários, crimes de “colarinho branco”, execuções de presos comuns em delegacias, incompetência, torturas e mortes. É uma aberração que só se explica pela cumplicidade das autoridades que atuam dentro de um sistema esclerosado, desprovido de mecanismos jurídicos compatíveis.

Na organização do Estado brasileiro, a própria Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 não avançou na concepção democrática, porque garantiu a tutela militar. Criou-se o estado de defesa, legitimando-se a intervenção do aparelho de força do Estado na vida interna do país. Todas as garantias individuais e políticas podem ser suspensas durante a vigência do estado de defesa, por decisão do Conselho de Defesa Nacional, também sob tutela militar.

Estamos, portanto, nessa situação esdrúxula: temos certas liberdades democráticas parciais, como mandado de injunção, direito de greve, habeas data, liberdade de expressão e outras conquistas, mas que não alteram o sentido antidemocrático do Estado brasileiro.

No tocante às liberdades e direitos individuais coletivos, empurra-se com a barriga. A lei, quando é boa para o pobre, tem de ser esquecida; só pode ser lembrada quando é a espada da tutela da opressão.

Vivemos um tempo marcado pelo efêmero. O desenvolvimento das técnicas de comunicação faz com que a mídia fique saturada de informações. Isso é salutar, na medida em que permite um melhor conhecimento da realidade. Mas no Brasil, país sem identidade cultural consolidada e sem tradição democrática, as informações acabam transformando-se em mais de um produto de consumo ligeiro. Passando o impacto inicial, os dramas caem na vala do esquecimento, sem que a sociedade obtenha solução para eles. Nada é debatido com a profundidade necessária. As tragédias tornam-se trivialidades, com sinistras conseqüências, e são logo substituídas por outras.

O assassinato de Chico Mendes, o naufrágio do Bateau Mouche, a chacina dos sete presos na cadeia pública de Rondonópolis, a invasão da Siderúrgica de Volta Redonda, que resultou na morte de trabalhadores em greve, são apenas alguns dos episódios que alcançaram repercussão nacional e internacional recentemente. Entretanto, ninguém foi punido por tais atentados contra o mais importante dos direitos humanos que é a vida. Ninguém mais fala nisso.

A imprensa reflete a indignação da sociedade, mas não insiste com veemência na busca de justiça. A sociedade, por sua vez, cansa logo, fica desiludida, apática, e se recolhe a um silêncio que a torna conivente com a impunidade.

Quem se lembra de Serra Pelada, o inferno dourado onde milhares de homens viveram como escravos? Muitos morreram, anônimos, abandonados.

Quem se lembra do caso Baumgarten?

Quem se lembra do Pixote?

O quadro da violência no Brasil é um dos piores do mundo. De 1986 até hoje foram assassinadas quase setecentas pessoas no campo, todas por causa de conflitos fundiários. Os dados são do Ministério da Agricultura. Nenhum latifundiário, seringalista ou jagunço foi condenado por esses crimes, cujas vítimas eram, na maioria, camponeses. Quase todos os dias, trabalhadores sem-terra são espancados ou baleados pela Polícia Militar, por fazendeiros ou seus capangas. A criminalidade urbana está se disseminando, com seqüestros, assaltos a banco, latrocínios e chacinas cometidos por grupos para-policiais. No Grande Rio, ocorreram duas mil e trezentas mortes violentas só no primeiro semestre deste ano, o que equivale a um assassinato a cada duas horas. Essa é a guerra silenciosa que vivemos nesse país.

Os índios continuam sendo escorraçados de suas terras, ou mortos por garimpeiros e fazendeiros; os negros continuam discriminados; as mulheres ainda não têm direito ao aborto, mas continuam abortando clandestinamente, com o risco para a própria saúde, oprimidas pelo machismo predominante; a tortura continua sendo praticada nas prisões; a subnutrição, a fome, a mortalidade infantil estão aumentando nas cidades e no campo; os menores abandonados, os velhos e os doentes mentais nos sanatórios não têm recebido qualquer atenção. Nesse cenário tenebroso, há quem acredite na pena de morte como solução para diminuir a criminalidade. Ora, basta olharmos para os países que aplicam esta penalidade, como os Estados Unidos, África do Sul, China e outros, e notaremos que eles não se caracterizam pela queda do índice de violência criminal. A pena de morte é a negação da vida, inadmissível em qualquer circunstância e passível de erros judiciais irreparáveis, sobretudo num país desorganizado como este.

A violência política originada nas instituições e a violência criminal provocada por distorções sócio-econômicas são duas faces da mesma moeda, da opressão social, mantida com a repressão instalada no aparelho judiciário e policial, a serviço das elites dirigentes.

Temos dito e vamos reafirmar aqui que uma das características da formação e do desenvolvimento do capitalismo no Brasil é exatamente a de incorporar nas suas relações internas alto teor de violência, de truculência, de discriminação, de dura exploração contra os de baixa renda. E no tratamento das relações patronais ou das relações do Estado, o que marca esse capitalismo é o seu sentido essencialmente autoritário e conservador.

O prolongamento dessa estrutura está criando um outro tipo de violência, a violência moral, manifestada no individualismo, na falta de ética, no desrespeito às normas elementares de convivência, na vontade de levar vantagem em tudo. Há um desespero latente que se exprime em cada gesto violento, seja da polícia, do criminoso, do jagunço ou do homem que não tem cidadania. Falar de direitos humanos numa estrutura desumana e antidemocrática como a nossa é tarefa permanente e exige esforço coletivo. Urge que a sociedade brasileira desenvolva sua consciência a respeito dessa gravíssima situação, para que mude a visão ingênua e conformista sobre os problemas que nos afligem. Esta visão é que tem levado as pessoas a acreditarem na demagogia primária de Fernando Collor de Mello. As elites não querem discutir o massacre dos direitos humanos no Brasil, estão se unindo para manter esta pseudodemocracia, favorecendo seus interesses gananciosos.

Através do questionamento e da denúncia das manobras das elites, conquistaremos uma democracia real, com plenos direitos políticos e garantias efetivas dos direitos individuais e coletivos. Só assim acabaremos com os históricos ciclos de golpes militares e populismos que têm aviltado a dignidade do povo brasileiro e gerado a cultura da violência.

Para construirmos uma sociedade verdadeiramente democrática, temos de ter uma compreensão da importância da cidadania e elevar a aspiração desse povo em relação aos direitos do cidadão; precisamos, cada vez mais, de uma sociedade civil autônoma, democrática. Não queremos paternalismo, com a cidadania tutelada, com o Estado militarizado. Queremos realizar exatamente esse aspecto importante da democracia através de uma sociedade civil forte, organizada, plena, de consciência fundamentada não apenas formalmente nos direitos humanos, mas na sua prática, com uma consciência democrática plural, com a divergência e com o dissenso.

(Do texto: “Mandato Popular”, impresso da Câmara dos Deputados, Brasília – 1990)

Pronunciamento feito dia 29-8-89 pelo Deputado Federal José Genoino Neto – PT – SP.

29 de Agosto de 1990

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