Opinião

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ARTIGO

Um socialismo revigorado

Em artigo publicado nesta seção no último dia 23, o professor Leôncio Martins Rodrigues faz uma apreciação do socialismo da qual se depreendem dois pressupostos: 1º) no plano teórico, o socialismo será sempre o que o cientismo da ortodoxia marxista disse que seria; 2°) no plano prático, o socialismo não poderá edificar senão o que o Leste europeu apresentou, ou seja, economia estatizada e sistema político engessado. Diante disso, o autor conclui que a única via seria a social-democracia. Como socialista e líder na Câmara dos Deputados de um partido de esquerda que rejeita tanto a alternativa totalitária quanto a social-democrata, não posso e não devo ficar calado.

Por que deveríamos aceitar os parâmetros da ortodoxia como limite para a imaginação crítica socialista? Crítico do capitalismo, o projeto socialista tem de acompanhar a história de mudanças do próprio capitalismo. Baseado em leis que julgara ter descoberto, com os olhos postos na luta de classes que se desenrolava então, Marx fez prognósticos que não se verificaram. Admitir isso e outros equívocos não nos obriga, porém, a renunciar à luta pelo socialismo, pois o marxismo não esgota a tradição teórica do socialismo. Ademais, há uma diferença fundamental entre a adesão ao marxismo como uma doutrina ou uma ideologia – atitude que reputo inadequada porque exige de antemão tomada de partido – e ao emprego de certas idéias de Marx como um instrumento analítico, entre outros. O fato de os dirigentes do Leste terem reivindicado as idéias de Marx para desenvolver e sustentar uma concepção de socialismo que não aceitamos é, por si só, um indicador de que estas idéias não podem ser inteiramente separadas da prática do chamado socialismo real. Agora, trata-se, não de “neuroticamente” negar os fatos, mas de negar que a experiência de construção do socialismo na Rússia e, depois, nos outros países do chamado Leste europeu, na China e em Cuba tenha esgotado as possibilidades práticas e teóricas de se buscar o fim da exploração, assegurando a democracia e pluralismo político.

Se o próprio professor Leôncio registra que noutros tempos “as bandeiras democráticas e socialistas freqüentemente estiveram unidas”, não vejo por que vaticinar que “de agora em diante estarão separadas”. Se o professor Leôncio entende, como eu, que a história não tem um sentido e um sujeito prefigurados, sendo, portanto, um projeto aberto a ser conduzido pelos homens, não vejo por que encarcerá-la no ideário limitado da social-democracia.

Trata-se precisamente de fazer um duplo movimento: recuperar a tradição democrática das lutas dos trabalhadores contra a exploração e por novos direitos – projeto que o PT tem levado adiante, inclusive porque nasceu na luta contra uma ditadura – e propor novas formas de estruturação e gestão do patrimônio público e privado. Ambos os movimentos implicam transformações profundas nas estruturas políticas, sociais e econômicas. Se na luta pela democracia devemos abandonar o devaneio do “assalto ao poder”, não podemos abrir mão do projeto de transformar o Estado e construir instituições novas, aptas à representação dos direitos dos trabalhadores e de toda sociedade, estejam eles previstos ou não na ordem atual.

Uma nova ordem social e econômica supõe que a propriedade pública dos meios de produção terá de ser parcial e não se confundirá com o estatismo. Compatível com a existência do mercado regulado e complementado com propostas como o gerenciamento compartilhado entre trabalhadores e consumidores, o setor público aparecerá como empresário apenas em empreendimentos que, pela sua magnitude e relevância estratégica, levariam precisamente a distorções se abandonados em mãos privadas. Políticas públicas destinadas a tirar os trabalhadores da miséria incidirão também sobre a propriedade privada, que será submetida a limitações claras e terá seu caráter social garantido pela sua combinação com outras formas de propriedade e por uma política fiscal tão mais eficiente quanto mais democrático tenha sido o processo de sua adoção.

Resignado com a idéia de que o único projeto político viável para a esquerda é “a substituição dos membros das elites anteriores por novas elites no interior de uma mesma estrutura social e econômica”, o professor Leôncio parece não perceber que julga as intenções dos socialistas segundo os parâmetros do caráter limitado de sua própria análise. De que outra maneira interpretar a afirmação presumida de que “a denúncia socialista da dominação burguesa estava orientada mais para a substituição dos proprietários privados pelos burocratas e tecnocratas estatais do que para a libertação dos oprimidos”?

Um dos caminhos para a esquerda hoje é revigorar o socialismo. Isso requer disposição política lastreada em conhecimento, critério e imaginação. Conhecimento, porque o socialismo tem de ser, sempre, a crítica do capitalismo com conhecimento de causa. Critério, porque um projeto esclarecido tem de ser mais do que uma ideologia, deve apresentar-se ao juízo alheio exibindo seus pressupostos. Imaginação, porque um projeto digno desse nome está na obrigação de falar do que nunca existiu.

José Genoino Neto

Matéria publicada no jornal Folha de São Paulo em 10.05.91.

10 de Maio de 1991

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