Opinião

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Aborto

À mulher, todos os ônus

Antônio Cruz/Agência Brasil
Manifestantes defendem aborto e lembram das mulheres que ficaram com seqüelas ou morreram por causa de abortos clandestinos

Os assuntos só conhecem repercussão quando lançados nas primeiras páginas dos jornais impressos, nos cabeçalhos dos sites, nos noticiários das rádios ou nos telejornais das vinte horas.

Não basta a colocação geográfica das notícias, contudo. Precisam ser repetidas de maneira exaustiva por dias e meses. Aí são assimiladas e passam a conviver com o cotidiano das pessoas.

Permitem, neste caso, conversas informais e, por vezes, indagações científicas em estabelecimentos de pesquisa acadêmica. Rara esta hipótese. O costumeiro é o pronto esquecimento. Viu, leu, esqueceu.

A sociedade contemporânea se caracteriza pela superficialidade e pela escassa vontade de se entender episódios sociais. O individualismo suplantou qualquer espaço para o altruísmo.

Salve-se quem puder. Este o mote da atualidade. O outro não importa. As tragédias humanas circunscrevem-se apenas aos marcados pelos episódios pessoais. A repercussão é mínima ou nenhuma.

Nesta semana, truncada por um feriado, em muitos municípios, uma notícia, como corisco, entrou nos noticiários e desapareceu instantaneamente.

Vinha de Mato Grosso do Sul. Continha a exuberância das operações policiais, no atual cenário do país. Uma clínica de procriação humana fora fechada em Campo Grande.

A verdadeira finalidade do centro médico consistia em práticas abortivas. Até aqui o cumprimento estrito da legislação penal. Nada a acrescentar. Dramática outra informação.

Milhares de prontuários médicos sofreram apreensão. As figurantes dos registros deverão ser indiciadas, em inquéritos policiais, longos e com coleta vexatória de provas.

A lei é cumprida. Os sofrimento das milhares de mulheres, já marcadas pela violência da prática a que se submeteram, se ampliará. Agora, as suas vidas serão devassadas. A intimidade violada.

Contrapõem-se no episódio valores essênciais. A preservação dos nascituros - o direito à vida - e a dignidade da mulher. Sua integridade moral. Atributos inalienáveis de todas as pessoas.

Apesar dos avanços indiscutíveis nos últimos cinqüenta anos, em determinados posicionamentos sociais, ainda persiste visão medieval da figura da mulher. Deve sofrer todos os ônus da relação entre sexos. Cabe-lhe suportar todas as vicissitudes da trajetória humana. Ao homem plena liberdade, à mulher as imposições dos ônus dos sentimentos realizados.

Compreendem-se todas as posições relativas à concepção e à vida dos nascituros. Louváveis. O tratamento, todavia, dispensado à mulher contém traços de barbarismo.

A ela todos os encargos. Os advindos da natureza e os elaborados pelo formalismo legal em muitos séculos. Muitos séculos. Foi a partir do ano 380 que a mulher perdeu a responsabilidade sobre seu corpo.

Muitas sociedades encararam o tema com resolução. Hoje mais de dois terços dos países ocidentais devolveram à mulher a decisão sobre os atributos agasalhados pelo seu ventre.

Nada fácil o tema. Inúmeras as contrariedades. Muitas de natureza moral. Legítimas e válidas. Outras de natureza religiosa. Profundas e coerentes. Outras de natureza médica, como a contida no juramento de Hipócrates.

A controvérsia sobre a vida intra-uterina é sufocante. Todos possuem espaços de razão. Não se pode, porém, omitir um elemento fundamental: a postergada dignidade da mulher, apesar das aparências em contrário.

Há dois anos Portugal enfrentou o assunto e uma nova lei foi elaborada pela Assembléia da República. Deveria merecer exame e debate pela nossa sociedade.

Ainda porque Portugal e Brasil ligam-se pela cultura e pelas suas formas de convívio social. Mais perto o Uruguai tratou do assunto. Projeto de lei foi vetado pelo presidente da República Oriental.

Por aqui, silêncio. Apenas o aparelho policial presente, no cumprimento da lei em vigor e sem qualquer traço de respeito à dignidade da pessoa da mulher, quando sua intimidade é violada.

É preciso ler notícias esparsas. Compreender o sofrimento do outro. No caso, a parceira na milenar travessia.

***

Boa notícia: O juiz de Direito Aluísio Pereira dos Santos determinou o arquivamento do inquérito. Pela prescrição, sete mil e setecentas mulheres viram-se livres de forte pesadelo. Há bons juízes em Campo Grande.

Cláudio Lembo é advogado e professor universitário. Foi vice-governador do Estado de São Paulo de 2003 a março de 2006, quando assumiu como governador.

Fonte: Terra

27 de Novembro de 2008

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