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LEGISLATIVO
Câmara dos Deputados - Detaq
Sessão: 088.3.53.O
Orador: José Genoino
Data: 30/04/2009
Hora: 16:24
Deputado Lira Maia - Continuando o Grande Expediente, concedo a palavra ao ilustre deputado José Genoíno, do PT de São Paulo.
Deputado José Genoino - Sr. presidente, Sras. e Srs. deputados, vou enfocar o mesmo tema abordado pelo meu companheiro de bancada, deputado Magela, a reforma política, a partir de duas preliminares.
A primeira diz respeito à crise de paradigmas, com a falência do modelo neoliberal, que evidenciou para as instituições do Estado a necessidade de reformular, redefini-los. O modelo neoliberal, hegemonizado ao longo dos últimos 20 anos, com a crise econômica, apresenta, nesse contexto, a necessidade de ser substituído por outro paradigma jurídico da ordem do Estado.
A segunda preliminar diz respeito à crise da política, na medida em que o espetáculo e o escândalo a transformam em algo desgastante e deslegitimado aos olhos da população. Temos 2 caminhos: ou radicalizamos o escândalo e o espetáculo, e às vezes há políticos que fazem deles uma grife, ou definimos a saída, a alternativa, o caminho — como se diz em saúde, o caminho da saúde e não da doença.
Temos que definir normas, regras, procedimentos, porque só uma reforma política democrática vai resgatar as tarefas nobres da política.
Com essas duas preliminares, quero abordar a fonte legitimadora do poder político, que se legitima pelo princípio de que todo poder emana do povo e somente pode ser exercido pelos seus representantes ou diretamente e se dá exatamente pelo sistema de voto.
Quando se busca substituir o poder político por outras instâncias de poder — vou tratar desse assunto aqui —, contraria-se esse princípio fundante da democracia. Não é por acaso que em muitas ditaduras o primeiro ato foi exatamente substituir o direito do povo ao voto direto, secreto e universal.
Nossa Constituição estabelece a representação do povo por meio de seus delegados eleitos ou da ação direta. Temos que resgatar esse princípio. Ao resgatá-lo, temos que cuidar de defender a democracia do esvaziamento dela mesma como alternativa para construir o futuro.
O esvaziamento da democracia acaba fazendo uma ligação indireta com os regimes autoritários, que se baseiam no princípio da negação da democracia, de discuti-la como experiência política da humanidade que, através dela, constrói as melhores alternativas de mudanças econômicas e sociais e de transformações estruturais.
Portanto, temos que radicalizar e aperfeiçoar a democracia e reformular as instituições democráticas. Para quê?
Esse esvaziamento do poder político — Parlamento, Poder Executivo, porque são eleitos periodicamente — não deve ser substituído pela tutela da técnica e da judicialização. Esse é o problema que enfrentamos hoje, na medida em que a judicialização da sentença, através de instrumentos que inclusive consagramos no texto constitucional, como controle da constitucionalidade e a própria mudança da Constituição.
A judicialização da política não é apenas a intromissão de um Poder no Legislativo ou no Executivo.
É a usurpação de uma função própria de quem é eleito pelo voto da população pela representação.
Então, é necessário, Sr. presidente, resgatar a legitimidade das urnas, porque a política pensa o futuro, o programa, a estratégia. A Justiça e a técnica pensam o que está determinado.
Setores da esquerda se equivocam quando acham que através da judicialização da técnica se pode transformar a sociedade. Esse é um grande equívoco. Não se transforma porque se parte de uma situação constituída. A política pensa o futuro.
Não é por acaso que Kant, um dos grandes filósofos que começaram a pensar a política, dizia que a Justiça trabalha com a razão e o poder político trabalha com a vontade. A política é soma de vontades, transformações, projetos, pressão, confronto. A técnica e a Justiça são o retrovisor e não o para-brisa. A política trabalha como para-brisa. Vejam as mudanças da história da humanidade, e do País, se não foram feitas por grandes embates políticos.
Portanto, o enfraquecimento da política no sentido de que o poder emana do povo, o enfraquecimento dos partidos e do Congresso Nacional, a tutela dos Executivos Municipal, Estadual e Federal, por um processo de usurpação de poder e de limitação das suas funções contrariam o princípio democrático.
É necessário que possa resgatar a política pelos meios de sua reformulação, uma reforma política. Aí o deputado Magela tem toda a razão. A reforma política é um elemento central do nosso projeto estratégico para enfrentar a crise de paradigma do modelo neoliberal do Estado e, ao mesmo tempo, a crise do esvaziamento das instituições políticas.
Lembro aos colegas que existe um trabalho do grande professor Otaviani em que fala do príncipe eletrônico. Ele se relaciona com O Príncipe, de Maquiavel, o pai da política; depois trabalha com o Moderno Príncipe, de Gramsci, que é o partido; e fala que hoje existe o príncipe eletrônico, a mídia, que tenta substituir política.
Ao tentar substituir a política, a mercadoria vira ideologia. O mercado é a expressão da política e o consumo é a realização da cidadania.
É o rebaixamento da política, porque a política é a existência de sujeitos coletivos organizados, com vontades, enfrentamentos e negociações. Por isso que esta é, por excelência, a casa da política e da democracia, porque é proporcional e estabelece o confronto e a negociação permanentemente.
Por outro lado, há um processo de esvaziamento da política por certas carreiras do Executivo. Luto para que se estabeleça uma reformulação, por exemplo, no uso de medida provisória. É fundamental sua existência, mas é necessário que haja limitações materiais e de tramitação, porque é muito cômodo para uma carreira de Estado — polícia, alta burocracia — resolver um problema não na negociação, no debate, mas por meio de medida provisória, que entra em vigor imediatamente. É fácil!
Essa deformação temos que enfrentar, porque a burocracia organizada corretamente, como burocracia de Estado, pela meritocracia, acaba assumindo o protagonismo. É mais ou menos esta idéia: nós representamos a verdade e o bem. Nós é que sabemos o que a sociedade quer. Políticos, política é o mal necessário da democracia. Eleição? Voto? Todos são suspeitos, até que provem que não são.
Este é o pensamento, autoritário, que está nas entranhas da alta burocracia e da concepção de judicialização da política: nós é que sabemos qual é a verdade. Não é a que nasce das ruas, do confronto, da greve, das passeatas. Não há processo mais rico na sociedade do que o eleitoral, com todos os problemas. Por isso temos que enfrentar, ao lado da reforma política, do sistema eleitoral, do sistema partidário, a discussão da relação entre os três Poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário — , porque a concentração de poderes que vai para a Justiça acaba levando a um atrofiamento das instituições democráticas.
Isso acontece também com determinados instrumentos legais, dentro do Poder Executivo. Vejam bem como é paradoxal: a própria burocracia do Executivo, que não existe sem a eleição periódica do presidente da República, se considera superior, porque tem o saber, a técnica de quem é eleito, inclusive nesta Casa. Temos que colocar o dedo na ferida e fazer uma reforma administrativa. Mas há as carreiras que se colocam acima de quem é a razão de ser do Parlamento, a existência de deputados.
Este é um debate político de muita importância, e junto com ele nós temos que discutir o papel da Justiça Eleitoral. No Brasil, a Justiça Eleitoral é normativa, administrativa e punitiva, mas não é um ramo permanente do Poder Judiciário.
Há problemas criados nos Estados. Eu acho que a democracia precisa dispor de medidas punitivas para os ilícitos, mas isso não pode gerar um processo de tutela, pela judicialização ou pela técnica, das instâncias do poder político.
Não existe poder político sem o voto. Nas ditaduras existe, mas nas democracias não existe poder político sem o princípio de que o poder nasce do povo, que o exerce diretamente ou por meio de seus representantes. A constituição de sujeitos da política é uma expressão de vontade, de escolha, é a liberdade dos indivíduos e da coletividade para construir caminhos. A política é que possibilita isso.
Os grandes momentos que vivemos na época da campanha das Diretas, que, é bom lembrar, comemora agora 25 anos, os grandes momentos da Constituinte, as 3 frustrações que este País viveu — morte de Tancredo Neves, derrota da campanha por eleições diretas e fracasso do Plano Cruzado — para onde nos levaram? Para cá, Congresso Constituinte. Aqueles que acham que podem substituir o poder político pela Justiça vão assistir constantemente a confrontos, personalismos e atores políticos no Poder Judiciário, que aí já não é mais Poder Judiciário, porque a Justiça perde o sentido de falar na sentença e começa a virar agente político de vontades. E quem perde, como é que fica? Faz uma audiência pública. E quem perdeu numa sentença, numa decisão? Será que o Poder Judiciário aguenta a pressão, o confronto? A política aguenta, para mediar, para promover o consenso, para enfrentar, para derrotar. Por isso a democracia baseia-se no princípio da maioria e minoria, porque ela trabalha com o conflito e com o consenso periodicamente.
Pois não, deputado Magela.
Deputado Geraldo Magela - Deputado José Genoino, quero parabenizá-lo. Como é de hábito, V.Exa. faz, de forma brilhante, uma profunda reflexão sobre a relação entre os Poderes e suas consequências para a democracia. E é concordando que quero alertá-lo, valendo-me do sentido do pronunciamento que eu fiz.
Nós, no Congresso Nacional — e faço uma autocrítica —, estamos permitindo que outros Poderes avancem sobre as nossas prerrogativas. Darei apenas um exemplo: nós já poderíamos ter deliberado aqui sobre fidelidade partidária, mas não o fizemos. No Congresso Nacional já há um consenso de que a regra decidida pela Justiça não nos serve, mas não conseguimos avançar neste plenário e decidir o que nos serve, do ponto de vista dos partidos, dos políticos, da política e da sociedade. Imagine que nós avancemos, por exemplo, no tema das medidas provisórias. Em alguns casos, o governo não pode ficar à mercê da lentidão, da inércia do Congresso Nacional, então excede na edição de medidas provisórias. Excede porque não pode esperar que o Congresso cumpra, de forma célere, o seu papel. Temos um Regimento ultrapassado, seguimos uma metodologia de trabalho totalmente absurda. Acho um absurdo, por exemplo, votarmos até meia-noite, até 1h da manhã, se poderíamos começar as votações às 10h da manhã e avançar nelas o dia inteiro, sem avançar pela madrugada. Constatamos situações absurdas como essa, mas somos incompetentes para revertê-las. Não tenho como discordar de uma frase sequer que V.Exa. trouxe à tribuna, mas faço a autocrítica: parte dessa responsabilidade é nossa.
Deputado José Genoino - V.Exa. tem toda razão. Incorporo ao meu pronunciamento o seu aparte. E chamo a atenção para o fato de que uma reforma política deve resgatar a política no seu sentido nobre, porque ela está no cerne do princípio democrático de que todo poder emana do povo. É exatamente esse princípio, deputado Magela, que exigirá de nós uma reforma, por exemplo, com financiamento público de campanha, com princípio da fidelidade partidária, com votação em lista ou outro sistema eleitoral.
Hoje não temos no Brasil um bicameralismo. Não há Casa revisora. Ora a Câmara é a Casa revisora, ora o é o Senado. No presidencialismo isso gera uma confusão, porque às vezes acaba sendo Casa revisora, como no caso da emenda dos vereadores, o Judiciário. A Câmara aprovou uma emenda, o Senado desmembrou-a, a matéria voltou para cá, não foi promulgada, resultado: ação no Supremo. E nós também temos responsabilidade nisso: quando os agentes políticos submetem suas contendas ao Judiciário. Devemos fazer essa autocrítica. Já era assim quando estávamos na oposição, hoje virou regra. Se alguém perde uma votação, vai ao Supremo; se perde uma disputa, vai ao Supremo; se perde uma eleição, vai à Justiça Eleitoral.
V.Exa. tem toda razão: uma reforma política deve dar alternativa à política, deve enobrecê-la, engrandecê-la, dar-lhe um sentido: a política como construção de sujeitos. Exatamente a titularidade dos sujeitos é a razão de ser do Estado democrático. Por isso os direitos e garantias individuais são razões fundantes do Estado Democrático de Direito. É com essa visão que temos de enfrentar a crise da política, e não explorando a doença com o escândalo e com espetáculo. Isso só produzirá o ceticismo, o esvaziamento, a apatia. Vamos solucionar a crise política adotando medidas corretas, que busquem definir o caminho da licitude: isto é lícito, aquilo não é. E o que não é licito tem de ser punido. A política não pode se transformar num objeto que só se manifesta através do espetáculo do escândalo.
V.Exa. tem razão quando chama atenção para a responsabilidade desta Casa. Entendo que, se não tivermos força e maioria para aprovar uma reforma política ainda que pontual este ano e para valer só em 2010, devemos aprovar — vou apresentar essa emenda, já solicitando apoio de V.Exa. e da minha bancada — o restabelecimento, para 2011, de uma revisão constitucional, de 6 meses, com o objetivo central focado nos artigos da reforma político-eleitoral do sistema partidário e da participação popular. Nesses 6 meses, por votação unicameral e maioria absoluta, votaríamos a reforma política. O grande problema hoje, deputado Magela, V.Exa. tem razão, é essa maioria de três quintos. No bicameralismo, com esse sistema de pingue-pongue, não enfrentaremos os temas polêmicos de uma reforma política. Enquanto isso a política vai sendo deslegitimada, e, ao ser deslegitimada, o poder político vai sendo ocupado pela técnica, pela judicialização e pelas carreiras de Estado, que são necessárias, numa visão republicana do Estado, mas desde que esteja bem claro o que é a essência da representação política: o Poder Legislativo e o Poder Executivo.
Pois não, deputado Nilson Mourão.
Deputado Nilson Mourão - Ilustre deputado José Genoíno, em primeiro lugar agradeço a V.Exa. a oportunidade deste aparte. Sobre o seu pronunciamento eu quero tecer um breve comentário. V.Exa. lembrou o Prof. Octavio Ianni, que foi meu professor na PUC de São Paulo, quando lá eu fazia mestrado. Muito arguto, muito profundo o raciocínio de Octavio Ianni, recuperado por V.Exa. no contexto do seu discurso. No momento atual, o "príncipe eletrônico", isto é, a mídia — jornais, televisão sobretudo, rádios — diz e normatiza a sociedade. Não foi eleita pelo povo, não recebeu mandato popular, mas pauta a sociedade, define critérios, define padrões e, em algumas situações, impõe a sua vontade. Mais do que nunca, é necessário na composição da democracia que haja um regramento claro para a ação dos meios de comunicação social. Parabéns, ilustre deputado José Genoíno.
Deputado José Genoino - Agradeço, deputado Nilson Mourão.
Sr. presidente, nós esperamos bastante, e esta é uma tarde com plenário esvaziado, então imagino que V.Exa. vá ser generoso no tempo.
Eu gostaria de conceder um aparte ao meu companheiro do Pará deputado Zé Geraldo.
Deputado Zé Geraldo - Deputado José Genoino, eu estava aqui ameaçando fazer um aparte, mas, envolvido pelo seu pronunciamento, acabei optando por ouvir mais. V.Exa. provoca um debate de alto nível, muito acima da compreensão de grande parte do nosso povo. V.Exa. sabe que conta com a admiração da nossa bancada para continuar aprofundando esses temas. Trata-se na verdade de uma preocupação com a consolidação da democracia neste País. O que mais me chamou a atenção foi o que V.Exa. disse a respeito da política e da técnica — do Judiciário, da lei —, lembrando que a política é a emoção, a iniciativa, o fazer, enquanto a técnica, a Justiça, age a partir daquilo que está estabelecido. Eu estava agora há pouco participando de uma atividade de umas 3 horas exercendo exatamente essa prática a que V.Exa. se referiu: juntando as 2 coisas, partindo do que estava escrito numa lei e fazendo uma interpretação, para dar encaminhamento a uma conjuntura amazônica atual. É realmente fantástico o debate que V.Exa. propõe dessa tribuna. Precisamos ter mais oportunidades como essa, principalmente o nosso Partido dos Trabalhadores, cuja militância tanto exige o aprofundamento desses temas.
Fala-se muito na democracia, mas, na prática, aprofundar o tema da democracia, saber o que é essa democracia, é mais complicado do que simplesmente falar sobre ela. Então, parabéns, e agradeço a V.Exa. pela possibilidade de aparteá-lo
Deputado José Genoino - Vou concluir, Sr. presidente, agradecendo ao nobre deputado pelo aparte e o incorporo ao meu pronunciamento.
Vamos tirar a política e a democracia desse círculo vicioso, do esvaziamento, seja pelo desgaste, seja pela técnica da judicialização da política. Vamos construir instituições políticas que possam dignificar o princípio de que todo poder emana do povo e só pode ser exercido pelos seus representantes ou diretamente, para que a representação múltipla dos ordenamentos políticos possa se concretizar como ação nas esferas do poder representativo.
Que possamos entender a representação como poder exercido por mandatos, dentro da nossa pluralidade, e, evidentemente, restabelecer a democracia deliberativa e a própria especificidade do Parlamento, e garantir a importância da sociedade civil na relação com o mandato e com as instituições parlamentares. E tudo isso dentro da idéia de concretizar direitos fundamentais.
Por isso agradeço a V.Exa. pelo tempo que me concedido. Quero dizer que vou militar por essa questão. Na quarta-feira, faremos uma Comissão Geral para debater o tema da reforma política.
Vamos trazer o tema para o debate. Não adianta ficarmos nos consternando ou ficarmos tristes com os espetáculos, com os escândalos. Vamos para o caminho da solução, do resgate à democracia. Não foi por acaso que muitos lutaram pela democracia neste País. E nós temos que fortalecê-la e não enfraquecê-la.
Era o que tinha a dizer.