Parlamento - Pronunciamentos

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Centenário de Bobbio

Câmara dos Deputados – Detaq
Congresso Nacional – Sessão
Número: 284.3.53.O
Data: 15/10/2009

Deputado Alceni Guerra - Concedo a palavra ao seputado José Genoino. S.Exa. dispõe de até 20 minutos.

Deputado José Genoino - Sr. presidente Alceni Guerra, Sras. e Srs. Deputados, esta sessão de quinta-feira nos possibilita fazer algumas reflexões com mais tempo, para que os telespectadores e os ouvintes dos meios de comunicação da Câmara tomem conhecimento do debate mais substantivo sobre os dilemas que procuramos refletir e analisar.

Faço questão, neste debate de hoje, de, em primeiro lugar, homenagear o grande filósofo italiano Norberto Bobbio, cujo centenário se comemora precisamente no dia 18 de outubro. Foi um grande intelectual.

Entre os vários intelectuais do século XX, Bobbio situa-se como aqueles gigantes da lucidez, da coragem política e da previsão sobre os dilemas do século XX que Hobsbawm chama de breve século XX, marcado, principalmente, por 2 grandes acontecimentos que dominaram a história do século XX: a 1ª Guerra Mundial e a 2ª Guerra Mundial, bem como as consequências da 2ª Guerra Mundial, que foram, ao mesmo tempo, a causa e a consequência: o nazismo e o fascismo.

A obra de Norberto Bobbio está marcada por este contexto histórico dos dilemas dos extremos e das contradições do século XX. É por isso que, ao lado do intelectual e acadêmico, ele foi, também, um militante político, que procurou, na sua obra, refletindo os dilemas do século XX, trazer o debate sobre a relação da democracia com as transformações sociais. Este dilema foi manifestado na sua obra Socialismo e Democracia, ou Democracia e Socialismo, que coloca, de um lado, uma crítica ao modelo autoritário do socialismo estatal do partido único e, de outro, uma crítica profunda ao modelo capitalista da exploração e da negação dos direitos.

Esta obra de Bobbio, a partir da releitura de um grande italiano que marcou o século XX, Antonio Gramsci, preso durante o fascismo, deu uma contribuição teórica fundamental para o debate da interpretação do marxismo nas condições da luta política do período crucial em que a Europa viveu entre o fascismo e o nazismo.

Esse resgate, essa releitura relaciona de maneira profunda — costumo dizer que é como a relação entre a carne e o sangue — a democracia com o socialismo, a democracia com os direitos sociais, a democracia com o processo de constituição de cidadania.

Norberto Bobbio escreveu, em sua própria obra, sobre as várias gerações dos direitos humanos. Nós sabemos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Revolução Francesa, a Declaração Universal dos Direitos Humanos pós-Segunda Guerra Mundial, as declarações e atualizações ficaram conhecidas — e Bobbio teorizou sobre isso — como a nova geração dos direitos humanos, uma atualização, uma adequação, uma evolução no conceito de direitos humanos, trazendo-o para os direitos civis, para os direitos políticos, para os direitos sociais, para os direitos individuais.

O que marca essa idéia de democracia com socialismo é exatamente a obra de Norberto Bobbio, uma das últimas, Direita e Esquerda, em que ele atualiza o conceito de direita e esquerda para, após a queda do Muro, após o fim da União Soviética, fundamentar a diferença entre elas. E, entre várias considerações, ele aborda uma questão central: a postura, a atitude dos militantes, dos grupos políticos, dos partidos em relação ao tema da igualdade social.

A igualdade social, igualdade humana, combinada com a liberdade é algo muito importante. Há uma obra, um livro pequeno do Gramsci sobre liberdade e igualdade, em que ele aborda esses 2 elementos numa definição equilibrada tanto na crítica ao capitalismo como na crítica ao socialismo autoritário.

Este livro Direita e Esquerda é muito atual. Já no final da sua vida, aos 90 anos, Norberto Bobbio faz uma reflexão profunda contestando aqueles que diziam que não havia mais diferença entre esquerda e direita e procurando trazer o debate da Revolução Francesa.

A discussão da obra de Bobbio é rica, é vasta, é polêmica, principalmente, porque ele desenvolveu seu pensamento agudo e, ao mesmo tempo, claro sobre o tema da política e da democracia.

Aí temos uma obra rica, como o livro O Futuro da Democracia; uma Defesa das Regras do Jogo, que é sobre a filosofia do direito, fundamentando as mudanças do direito, das normas e dos procedimentos com a idéia da política. A política procura se fundamentar na obra do Bobbio com aquilo que é a razão, o centro e a essência da democracia. Não existe democracia sem política. Por isso, todas as ditaduras negam a política, porque transformam a disputa na eliminação, na eliminação do outro.

Quando Bobbio discute a democracia, ele tem, Sr. Presidente, Deputado Alceni Guerra, uma frase. A obra de Bobbio se caracteriza também pela clareza. Como dizia San Tiago Dantas, a tarefa da inteligência humana é tirar o valor das coisas da obscuridade para a luz. Ele usa uma frase muito clara, que até defini no meu parecer contra o terceiro mandato: a democracia é a certeza das regras e a incerteza dos resultados. Uma outra frase lapidar para diferenciar a democracia das ditaduras: na democracia se conta cabeças, na ditadura se corta cabeças.

São frases claras e simples que mostram a profundidade e a clareza, como podia chamar, da obra do filósofo da democracia do século XX. O filósofo da política, o filósofo que traz o debate dos dilemas da democracia, daquilo que ficou fundamentado na sua obra como um sistema dos valores da democracia como meio e como fim, do papel dos procedimentos, do papel das regras do jogo — não se mudam as regras durante o jogo — , do papel da disputa política, que não pode ser no conceito de inimigo, mas sim no conceito de projeto, de adversários. Ele busca na obra rica, fundamentando a democracia como um sistema, uma sistemática de valores, de procedimentos, tendo como finalidade a construção de uma sociedade livre, de uma sociedade de igualdade, de uma sociedade plural, de uma sociedade de seres humanos autônomos.

Aí a discussão sobre o sujeito, em que o sujeito é aquele que tem autonomia. Não é a cidadania pela metade, é a cidadania das prerrogativas de querer, de cobrar, de lutar. Essa obra também foi um paladino da posição contra a violência, o fundamentalismo, o sectarismo, buscando colocar a política na clareza da disputa de idéias e projetos.

De O Futuro da Democracia, obra clássica de Norberto Bobbio, nós podemos refletir também sobre o futuro da democracia, nos tempos de hoje. Se tivemos no século XX 2 grandes acontecimentos, 2 grandes guerras mundiais e a relação nazismo e fascismo, tivemos no início do século XXI, com a crise do socialismo autoritário, a Queda do Muro, agora a crise do mundo, dos valores e do sistema neoliberal. Isto é, a busca de alternativas, de saídas está colocada no debate sobre o futuro da democracia.

Esse debate tem atualidade muito grande, que outro — vou chamar assim — gigante do pensamento político, do pensamento socialista do século XX, Eric Hobsbawm, num grande fórum internacional, que contou com a presença de várias personalidades, em Alexandria, chama a atenção para essa idéia da política como constituição de cidadania e de valores, quando diz:

O objetivo de uma economia não é o ganho, mas sim o bem-estar de toda a população. O crescimento econômico não é um fim, mas um meio para dar vida a sociedades boas, humanas e justas. Não importa como chamamos os regimes que buscam essa finalidade. Importa unicamente como e com quais prioridades saberemos combinar as potencialidades do setor público e do setor privado nas nossas economias mistas. Essa é a prioridade política mais importante do século XXI.

Essa reflexão que está no artigo do autor de O Breve Século XX, se combinarmos esses grandes intelectuais, como Hannah Arendt, com outros importantes, seja num perfil à esquerda, seja num perfil à direita, como Raymond Aron, Isaiah Berlin, Ortega y Gasset, Jean Paul Sartre, Albert Camus, é um conjunto de pensadores que refletiram nas suas obras os dilemas que o século XX viveu.

Estamos entrando no século XXI com grandes dilemas e desafios, e, evidentemente, buscamos alternativas. Por isso nos referenciamos nessa obra importante de Norberto Bobbio, e estamos comemorando o centenário de seu nascimento exatamente em outubro de 2009.

Nessa obra lembro brilhante artigo de um dos brasileiros especialista na obra tanto de Norberto Bobbio quanto de Hannah Arendt,Celso Lafer, que publicou artigo sobre o significado da obra de Bobbio no pensamento político, no pensamento da democracia, no pensamento em defesa da paz, da tolerância política, da construção da democracia como regime de incertezas.

Muitas vezes, aqueles que querem o regime da certeza acabam resvalando para processos autoritários e maniqueísta. Alguém já dizia que o maniqueísmo é, na verdade, a negação da lucidez, porque se tem apenas 2 lados, e 1 lado tem que eliminar o outro.

Sr. Presidente, quero chamar à reflexão dessa rica e vasta obra de Bobbio, neste centenário de seu nascimento, com desafios colocados para a política e a democracia no mundo de hoje. Nesse desafio, tanto me afasto da visão autoritária socialista, porque me coloco como militante socialista de visão democrática — o socialismo democrático, a luta por igualdade social, pela instituição de direitos — , e essa idéia também me afasta e me leva a fazer uma crítica ao modelo neoliberal, que transforma o mercado em democracia, a mercadoria em ideologia e as pessoas em coisas.

Nesse processo que estamos vivendo temos que resgatar essa obra. A política está vivendo um processo de esvaziamento, porque começa a surgir, seja pela via do mercado, seja pela via da técnica, seja pela via da sentença judicial, um processo de substituição da política, a substituição da política por uma razão técnica, por uma razão judicial, por uma sentença ou então por uma lei em que o mercado dita as normas de como construir as relações e os procedimentos democráticos.

Se a obra de Bobbio nasceu num período em que se dizia que o poder nasce da ponta do fuzil, e ele foi um crítico do confronto e da violência que consagrava o poder nascendo da ponta do fuzil — também o poder — , e isso foi um ensinamento, construímos uma experiência em vários ciclos de que a política nasce do voto, de que todo poder emana do povo.

A política se baseia nas democracias representativa e participativa. Quando hoje vem uma visão autoritária de negar a política, de substituí-la pela técnica, pela sentença judicial, pela criminalização, essa é a negação da razão de ser do poder, porque todo poder só emana do povo, e só é legítimo porque emana do povo.

Não é uma receita, um juiz, um procurador, um delegado de polícia que emana o poder. Eles têm função de Estado. O poder emana do voto. O Parlamento emana do povo com suas vicissitudes, grandezas, dilemas e erros, mas ele emana do povo. A contradição, o contraditório, a negociação nasce desse conflito em que a política democrática não nega o outro.

Essa lição Bobbio deixa muito presente nessa obra, que é eterna, ao conceber a democracia como a expressão da soberania popular, que se relaciona com outro princípio: a tutela de direitos.

Há duas universalidades na conceituação democrática: o princípio da soberania popular e a prerrogativa de direitos. As demais questões podem ser resolvidas pela técnica, por outros meios, mas soberania popular e prerrogativa de direitos só se resolvem pela democracia.

Esse é o sentido do debate filosófico e teórico que devemos fazer, inclusive na relação entre direito e democracia, entre direito e política.

As grandes transformações no Direito Constitucional vieram após grandes revoluções. O Código Civil francês nasceu depois da Revolução Francesa, o Direito Americano nasceu depois da Revolução Americana. As grandes revoluções produziram grandes transformações no plano do Direito.

É comum, Deputado Alceni Guerra, Constituinte como eu. Aquela Constituinte e aquela Constituição tão polêmica, na época tão criticada, tão confusa, produziu uma Constituição Cidadã. Hoje se tenta eternizar e petrificar de maneira totalizante a Constituição de 1988, para as pessoas esquecerem que ela foi feita politicamente, por homens e mulheres eleitos, com manifestações aqui no plenário, com pessoas de paletó e gravata, com pessoas de sandália havaiana, com choques e confrontos.

A riqueza da política é exatamente produzir esse processo de criação de alternativas ricas. Elas são variáveis, mas têm uma finalidade: exatamente construir na sociedade humana direitos, construir possibilidades de dignidade humana, de direito à felicidade.

Nesse sentido, minha reflexão sobre a obra centenária de Bobbio, sobre seu otimismo nos piores momentos que viveu, desde o enfrentamento do fascismo até os dilemas da luta contra a guerra, os dilemas da Guerra Fria, os dilemas que o Partido Comunista italiano viveu na Itália, uma espécie de bloqueio para os comunistas italianos chegarem ao poder, na época da Guerra Fria, aquele debate sobre a crise do fim da União Soviética e dos países do Leste Europeu, não diminuiu sua esperança, sua lucidez no sentido de pensar a democracia como meio e fim para que a humanidade construa o direito à felicidade e os direitos como prerrogativas de realização das melhores possibilidades das pessoas e do gênero humano.

Pois não, Deputado Alceni Guerra.

Deputado Alceni Guerra - Deputado José Genoíno, V.Exa. é sempre uma agradável surpresa em qualquer tribuna que use em qualquer lugar do Brasil. Eu o julgava um viciado em Antonio Gramsci e fui surpreendido por uma belíssima interpretação da obra de Norberto Bobbio, de quem me confesso fã, seu leitor antigo, leitor de muito tempo.

V.Exa. fez aqui uma magistral explanação sobre a importância desse italiano — eu também sou italiano — , e quero lhe dizer que saio daqui admirado pelo discurso e pela postura de V.Exa. Aliás, quero convidá-lo a fazer outro discurso sobre o terceiro dos grandes filósofos políticos italianos do século passado: Gramsci, em primeiro lugar, Bobbio, em seguida. Estarei aqui para ouvi-lo falar de Giovanni Sartori, o dia em que V.Exa. assim o decidir. Parabéns pelo seu discurso, deputado José Genoíno.

Deputado José Genoino - Muito obrigado. É uma grande contribuição, até porque o conceito de engenharia constitucional de Sartori é um importante elemento na fundamentação democrática. Eu agradeço a V.Exa., deputado Alceni Guerra, pelo aparte e o incorporo ao meu pronunciamento.

Quero, sr. presidente, até em homenagem a esse especialista em Bobbio e Hannah Arendt, o Prof. Celso Lafer, solicitar a transcrição do brilhante artigo Celebrando Bobbio no seu centenário e também do resumo de uma palestra proferida em Alexandria pelo grande teórico e historiador inglês Eric Hobsbawm.

Acho que temos que resgatar esses grandes pensadores, para olhar o futuro. É importante vermos o século XX como retrovisor e pensar o século XXI como parabrisa, na medida em que ideais, sonhos, utopias continuam presentes para construirmos melhores possibilidades para uma sociedade justa, humana, democrática e impregnada de valores do socialismo democrático e libertário.

Muito obrigado, sr. presidente.

Deputado Edinho Bez - Esta Presidência parabeniza o deputado José Genoíno pelo seu pronunciamento valorizando a democracia. Eu costumo dizer que ainda estamos amadurecendo o processo democrático no Brasil.

Parabéns pelo pronunciamento.

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