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Ficha limpa (Projeto de Lei) e a relação com a legislação da ditadura militar
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ
Sessão: 060.4.53.O Hora: 15:18 Fase: GE
Orador: JOSÉ GENOÍNO Data: 31/03/2010
Deputado Edigar Mão Branca - Concedo a palavra ao Deputado José Genoíno, do PT de São Paulo. S.Exa. dispõe de até 25 minutos.
Deputado José Genoino - Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, acho oportuno, no dia de hoje, falarmos sobre uma questão essencial da democracia, o princípio de que o poder emana do povo e só pode ser exercido, diretamente, pelo povo ou, indiretamente, por meio de representação.
Esse princípio é fundamental porque, há 46 anos, através do golpe militar, um presidente legitimamente eleito foi deposto, e abriu-se um processo de cassação de mandatos, de censura, visando impedir o princípio geral e universal da democracia, que era o direito do povo brasileiro de votar para presidente, governador e prefeito das capitais e cidades consideradas áreas de segurança nacional. Até mesmo a eleição para o Congresso Nacional dava-se diante do bipartidarismo criado pela própria ditadura militar.
A experiência democrática brasileira é muito rica, e nós ainda estamos consolidando e construindo as instituições democráticas no nosso País. Houve momentos importantes nessa caminhada, como a campanha pelas Diretas — pelo direito de eleger o Presidente da República — , a campanha da Constituinte, a campanha que visava resolver os escândalos e as denúncias de corrupção, com base na Constituição, e acompanhamos desde a primeira eleição presidencial, de 1989, até hoje o fortalecimento do processo eleitoral e democrático brasileiro.
Essa é uma questão central, que queremos frisar nesta lembrança dos 46 anos da ditadura militar, lembrança que nos leva a resgatar a importância da democracia e do seu aperfeiçoamento: a importância do direito ao voto; a importância de o eleitor ser o juiz das escolhas; a importância da política para solucionar os impasses, os conflitos e as contradições da sociedade; a importância da democracia como caminho para solucionar as crises, os conflitos e as contradições numa dialética de dissenso e consenso.
Esta Casa viveu os grandes momentos dessa luta democrática, que lembramos hoje, nos 46 anos do golpe militar de 64.
Por isso, Sr. Presidente, mesmo diante dos momentos difíceis, dos impasses e das manifestações que buscam enfraquecer o Parlamento, deslegitimá-lo, e substituir a ação política por outras instâncias do Estado, devemos reafirmar que, sem a política, não há democracia. A crise da democracia é solucionada pela política, assim como a crise da política é solucionada com o aperfeiçoamento e radicalização da democracia.
Deputado Mauro Benevides - V.Exa. me permite um aparte?
Deputado José Genoino - Pois não.
Deputado Mauro Benevides - Deputado José Genoíno, V.Exa. faz a rememoração de fatos políticos que decorreram daquele 31 de março de 1964. É indiscutível que esta Casa tenha sido palco de grandes acontecimentos que a história registra. Tantos anos depois, identificamos aqui e ali o ímpeto daqueles que souberam se opor àquilo que significou, a partir daquele momento, a restrição às liberdades públicas e aos direitos individuais. Eu me permito recordar — e V.Exa. bem o sabe — de que naquela ocasião presidia eu a Assembleia Legislativa do Ceará e ali se acentuara a mesma pressão para que nós nos afastássemos dos parâmetros que a própria democracia nos asseguraria. Foram momentos realmente dramáticos que nós, aos poucos, conseguimos superar, porque houve homens bravos, como Martins Rodrigues — recordo o nome de Martins Rodrigues com imensa saudade neste instante — , que foi um dos que se contrapuseram ao movimento a ponto de ser surpreendentemente atingido pelo Ato Institucional nº 1, em função de sua participação, é o que se alega, numa passeata de universitários da UnB, que naquele momento reivindicava a normalização político-institucional. Vivenciávamos, lá no Ceará, onde V.Exa. também estava, todos esses fatos, até que alcançamos, como V.Exa. destacou, grandes momentos, um dos quais foi a elaboração da Carta de 5 de outubro de 1988. V.Exa. sabe que, naquele momento, nós já havíamos recebido dos segmentos mais conscientizados da opinião pública brasileira demonstrações positivas de que a democratização do País teria que ocorrer como imperativo inelutável daquele período. Havia necessidade de se terminar aquele período minoso que se arrastou durante tanto tempo.
Foi exatamente com a promulgação da Carta, em 5 de outubro de 1988, da qual V.Exa. é signatário e eu tive o privilégio de ser o segundo nome, antecedido apenas pelo grande Ulysses Guimarães, foi efetivamente com a Carta de 5 de outubro que se restaurou na sua plenitude o Estado de Direito no País. Portanto, são relembranças que V.Exa. faz neste momento apenas para oferecer à história um depoimento que significa a recordação daqueles fatos lastimáveis. Naturalmente os outros que vierem, que emergiram em função da vontade popular expressada, por exemplo, em uma concentração de um milhão de pessoas no Vale do Anhagabaú em São Paulo, um grande instante em que eclodiu a impaciência popular para buscar a normalização da democracia. Cumprimento V.Exa. por esse início de recordação de um fato passado, sobretudo da glorificação daqueles que envidaram esforços para tornar realidade a democracia em nosso País. Meus cumprimentos a V.Exa.
Deputado José Genoino - Muito obrigado, Deputado Mauro Benevides. Incorporo seu aparte ao meu pronunciamento. V.Exa. destacou que este processo teve um momento chave de abertura no processo democrático brasileiro, a Assembleia Nacional Constituinte, que produziu uma Constituição democrática, cidadã, uma Constituição que é um documento político fundamental para o nosso País. É sobre esse ponto que quero entrar em uma discussão que esta Casa fará proximamente, Deputado Mauro Benevides.
Vamos fazer um debate sobre um projeto de lei que fere o princípio fundamental da Constituição de 88, que estabelece nos direitos e garantias fundamentais os princípios da presunção da inocência e o de que culpado só com sentença transitada em julgado. Foi exatamente no período da ditadura militar que veio para o Congresso Nacional através da junta militar a Emenda Constitucional nº 1 e a Lei Complementar nº5, que criava a possibilidade de cassar direitos políticos ou, em outras palavras, previa a inelegibilidade com cassação de direitos políticos por vida pregressa, sem sentença transitada em julgado.
Vamos discutir esse projeto na próxima semana. Tenho me manifestado radicalmente contra ele. Primeiro, porque fere um princípio fundamental do direito constitucional, a presunção de inocência e culpa só com sentença transitada em julgado. Isso está no art. 5º da Constituição.
Segundo, porque é uma lei excepcional para cassar direitos políticos. Não se cassa direitos políticos com uma lei excepcional. E quem fez esse tipo de lei excepcional foi a Lei Complementar nº 5. Porque alei complementar de 1990 consagra os casos de inelegibilidade, que não é de cassação de direitos políticos.
O projeto que foi negociado na Comissão tem minha oposição e minha crítica, porque ele fere o princípio fundamental de que o poder emana do povo.
Os escolhidos serão decididos pelo povo. Não é uma Corte que vai escolher quem o povo vai escolher; não é um colegiado que vai dizer quem deve ser candidato ou não; é o princípio constitucional. Não é candidato quem tem sentença transitada em julgado. Porque nós vamos abrir a possibilidade de qualquer colegiado do Poder Judiciário negar o direito a uma candidatura. Quando se trata de direitos políticos, isso é uma violência que nos lembra o período de exceção da ditadura militar.
Chamo a atenção dos colegas: Lei Complementar nº 5, art. 150, que se chegou nesta Casa e foi duramente combatida, que, na época, contou com Josaphat Marinho, Ulysses Guimarães, Odacir Klein, Airton Soares, Freitas Nobre e vários Parlamentares da Oposição que criticavam a Lei Complementar nº 5 que permitia a cassação dos direitos políticos sem sentença transitada em julgado.
Emenda Constitucional nº 1, Lei Complementar nº 5, da Junta Militar. Esse projeto que foi enviado ao Congresso Nacional para ser discutido, chamado ora de ficha limpa, ora de ficha suja, é uma lei excepcional. Ela tem um viés autoritário, porque ela fere princípios fundamentais. O princípio fundamental da presunção da inocência e da sentença transitada em julgado está na Declaração Universal dos Direitos do Cidadão da ONU, está em todas as declarações de direitos políticos e civis assinadas pelo Brasil, está na Constituição brasileira de 1988.
É exatamente esse ponto central que nos leva a fazer essa crítica a uma iniciativa de leis que, mesmo tendo respaldo de mais de 1 milhão de assinaturas, tem um viés que, no meu modo de entender, transfere para as instâncias do Poder Judiciário do Ministério Público a primazia de exercer o controle da política.
Quem exerce o controle da política é a cidadania através do voto e da pressão direta. Quem exerce a legitimidade da política é aquele princípio que o poder emana do povo e só pode ser exercido diretamente por ele ou por sua representação.
Essa visão de considerar que o Congresso está desgastado, de que disputar eleição é algo feio, a eleição está maculada, todos que disputam eleição e são eleitos são presumivelmente culpados e não há a presunção da inocência, mas há a presunção da culpa, fere a tradição democrática dos direitos políticos da cidadania.
E eu estou mostrando como isso tem uma tradição autoritária no Direito Constitucional brasileiro. Eu tenho aqui, inclusive, comigo uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que, ao apreciar essa questão, considerou, com o brilhante voto do Ministro Celso de Mello, como inconstitucional qualquer medida legal, por lei ou por ato normativo do TSE, cassar direitos políticos, porque a pena de cassar os direitos políticos sem sentença transitada em julgado é definitiva. Substituir por um colegiado — que ninguém sabe se são de 2 ou de 3 juízes, porque o projeto bota: segunda instância ou colegiado. O que é colegiado? Duas pessoas é um colegiado — dá margem ao arbítrio.
E essa visão esconde uma outra consequência arbitrária e elitista. O povo tem que ter os escolhidos pelo povo e deverão ser escolhidos antes. A peneira não é o povo que faz. A peneira é feita por um conjunto de ONGs, de entidades, da opinião pública, que é diferente do povo. Estou me referindo ao princípio universal do direito do povo, onde emana o poder. Tem-se o juízo preliminar daqueles que o povo vai escolher.
Esse projeto, se for aprovado, fere o art. 5º da Constituição, porque não há mais a presunção da inocência, nem sentença transitada em julgado. Mesmo que as entidades que enviaram esse projeto aqui sejam entidades democráticas, com tradição democrática, esse projeto tem um viés autoritário. Um viés, inclusive, que radicaliza a disputa entre aqueles que são limpos e aqueles que são sujos. Gera, inclusive, na relação entre os políticos, aqueles que apoiam, porque vai ser caminho eleitoral para a sua eleição: eu vou ser a favor porque isso ajuda a me eleger.
É exatamente essa banalização de um direito fundamental que coloca em risco um princípio tão sagrado dos direitos fundamentais. Não é por acaso que ele está em todas as declarações de direitos humanos, de direitos civis, de direitos do mundo, da OEA, da ONU, do começo dessa história, que foi a Revolução Francesa de 1789, está na Constituição brasileira de 1988, porque antes era Emenda Constitucional nº1. E Emenda Constitucional nº 1 permitia negar direitos políticos pela vida pregressa, sem sentença transitada em julgado.
Vejam bem, quando se nega o direito ao voto, quando se mitiga o direito de voto, quando se desprestigia o direito de voto, quando se tenta conduzir o povo que não sabe votar a uma tutela, é uma visão autoritária, intolerante, que não aperfeiçoa a democracia. Se é para fazer uma reforma política, vamos fazer; se é para corrigir os erros e os defeitos do Congresso Nacional, vamos fazer; se é para discutir os partidos políticos, vamos fazer. Agora, aprovar uma lei excepcional para cassar direitos políticos, esta Casa não pode votar esse projeto, nem a sua versão original e nem o substitutivo da Comissão.
Pois não, Deputado Alceni Guerra.
Deputado Alceni Guerra - Deputado José Genoíno, V.Exa. faz uma incursão à Constituição e às leis com muito mais conhecimento e muito mais habilidade do que esse pobre médico pediatra. Mas vou me permitir acrescentar ao seu raciocínio um indicador médico.
Acovardar-se perante 1 milhão e 300 mil assinaturas vindas de uma instituição, para a maior parte de nós terráqueos, acima do bem e do mal, a Igreja Católica e tantas igrejas que colaboraram nessa coleta de assinatura, tem um nome. Acovardar-se significa puxar para si o diagnóstico que Freud foi o primeiro a explicitar, em 1870, covardia moral. Abrir mão de um princípio sagrado, como a presunção da inocência, para agradar qualquer organização, qualquer instituição... E geralmente nós políticos temos a covardia moral perante a mídia.
É a mídia que nos acovarda. É a mídia que acovarda o Parlamento e o homem público. Freud já classificava isso como covardia normal. Acovardar-se perante princípios fundamentais do direito, como a presunção da inocência, significa, sim, covardia moral. É preciso assumir o rótulo. Quem julga que, acima de seus estudos, de seu conhecimento e das suas convicções políticas, como essa da presunção da inocência, está o ato de agradar a qualquer organização ou instituição é um covarde moral. Deputado José Genoíno, falo isso com muita tranquilidade. Denunciei um promotor por tráfico de drogas quando era Prefeito da minha cidade. Ele foi afastado, processado e condenado a 4 anos de cadeia. Antes de sair, deu-me a graça de deixar meia dúzia de processos. Ganho todos. Vou ganhando. Recentemente, ganhei mais um no Supremo.
Não me preocupa o julgamento de Corte Colegiada ou de juiz. Isso não me preocupa. Quem tem a convicção da sua inocência não se preocupa. Porém, em relação ao ato de entregar-se a uma pressão, como está sendo feito com o Ficha Limpa, há um nome médico-científico que significa covardia moral. Obrigado, Deputado José Genoíno.
Deputado José Genoino - Agradeço o aparte de V.Exa. e incorporo ao meu pronunciamento. V.Exa. tem razão. Quando se fazem concessões a princípios fundamentais da democracia, sabemos onde começa e não sabemos onde termina.
Estou lendo um livro, Deputado Alceni Guerra, de Bauman, um polonês que analisa a modernidade. O livro é Modernidade e Holocausto, nele o autor analisa que o Holocausto nasceu das entranhas da era moderna, e não de imediato no campo de concentração. Nasceu com uma visão de discriminação aos judeus. Nascia da discriminação em relação a quem era diferente.
Nascia da intolerância em relação à diversidade e à pluralidade. Nascia diante de uma visão de que o Estado — representado pela alta burocracia, seja do Poder Judiciário, seja das instituições que denunciam, seja do Executivo — expressa a vontade suprema daquilo que Carl Schmitt chamava de decisões em momento de exceção. Sabemos onde isso terminou. Até nos perguntamos como a Europa moderna pratica tanta bestialidade. Ficamos assustados.
Não sabem como vem esse processo de acovardamento político e moral, como disse V.Exa. Esse é um processo em que uma instituição quer intimidar esta Casa, através de um constrangimento, e os Deputados vão se sentir constrangidos em votar esse projeto.
Eu já estou deixando claro que vou votar contra. Se me questionarem, digo que não votarei, porque esse constrangimento nega o princípio de que a soberania popular nasce do povo.
A democracia se assenta em 2 vigas mestras: a soberania popular e a consagração de direitos. Quando nega a soberania e violenta direitos, a democracia começa a se enfraquecer. Às vezes, é nas pequenas coisas que ela começa a se enfraquecer e se deslegitimar, porque há certas instituições do Estado que querem substituir a política.
Esse negócio de pedir voto, subir em banquinho, fazer comício, gastar dinheiro com papel, fazer campanha, isso é uma atividade ruim. Hoje quem disputa eleição perante setores da sociedade é colocado como se estivesse fazendo uma coisa feia, errada e culposa.
Agora aqueles que fazem um concurso, têm inamovibilidade, estabilidade e aposentadoria completa, vivem nos seus gabinetes com ar-condicionado, não precisam prestar contas à sociedade, esses são juízes daquilo que o País deve fazer. Nós, Alceni Guerra, aprendemos na rua, no confronto, sendo Prefeito, Vereador, Deputado, indo para a rua prestar contas, recebendo a crítica e o aplauso. É esse processo que legitima a democracia.
Cria-se uma peneira com esse projeto de lei, o qual é uma peneira para escolher os escolhidos. O povo vai escolher, pero no mucho, não pode escolher muito, tem que escolher aqueles que nós vamos escolher — é uma visão elitista e autoritária.
Esse projeto provoca um constrangimento político e moral para esta Casa. Como os Deputados vão votar? Eu vou votar contra, vou aparecer na lista dessa ou daquela instituição religiosa, desse ou daquele sindicato como se eu tivesse a ficha pregressa, limpa ou suja.
Veja bem a que nós estamos reduzindo o princípio universal do voto. Este princípio universal que em 1964 foi para a lata do lixo pelas Baionetas. Quando cassaram o Presidente eleito, não podíamos votar para Presidente, para Governador nem para Prefeito de capitais.
Parece que nos esquecemos dessa história. Não é por acaso que eu preciso subir nesta tribuna e lembrar que a primeira lei que criou cassação de direitos políticos com base na vida pregressa não foi nem do Castelo Branco, não foi pela Constituição de 1967, foi pela Emenda nº 1, de 1969.
Esta Casa, que foi essencial no confronto e no conflito democrático, não pode praticar, Deputado Alceni Guerra, isso que V.Exa. brilhantemente definiu, o acovardamento político e moral. A legitimidade está aqui, podemos gostar ou não de quem está aqui, podemos divergir ou não de quem está aqui, mas quem está aqui não fez concurso de provas e títulos, fez o maior concurso da história que é o voto popular na urna e se expôs para chegar aqui e ser diplomado. Esse é o concurso da democracia, mas esse é o mais importante. É isso que quero resgatar.
Vou dizer isso na terça-feira, vou colocar isso na quarta-feira, porque já aprendi e faço questão de discutir essa questão com os nossos colegas, a viver na política os 2 lados da moeda: a ilusão e o consenso, que às vezes é poético, mas há também o lado da derrota, que é sanguínea. A política tem o lado poético e o sanguíneo, reúne os dois.
Estou calejado para não me acovardar diante de uma pressão e um constrangimento que esta Casa vai viver. Espero que ela derrote este projeto na terça ou na quarta-feira.
Muito obrigado, Sr. Presidente e colegas que me apartearam.
Deputado Edigar Mão Branca - Parabéns, Deputado Genoíno.