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Câmara dos Deputados - Detaq
Congresso nacional - Sessão
Número: 135.4.53.O
Data: 10/06/2010
Deputado José Genoino - Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, tenho defendido desta tribuna a importância da reforma política e das instituições e tenho defendido que nós deveríamos aprovar uma emenda constitucional prevendo uma reforma política em 2011, a ser realizada por um Congresso Nacional Revisor, respeitando o quorum de três quintos e a sessão do bicameralismo.
Tenho defendido isso, Sr. Presidente, porque entendo que uma reforma política democrática deve resgatar o papel da política e fortalecer a democracia e todos os seus procedimentos, regras e funcionalidades.
Hoje, volto a esta tribuna para discutir o fenômeno que chamo de judicialização das eleições.
Iniciando de fato meu pronunciamento, Sr. Presidente, digo que, como nenhuma outra, as eleições deste ano tendem a se dar em 2 palcos: aquele em que se desenrola a disputa de projetos políticos, no qual os eleitores sufragam propostas, cabendo aos vencedores legitimar a atuação do Estado; e o palco judicial, que já se está desenrolando, em que, em geral, a soberania popular é restringida ou simplesmente revogada. Trata-se de fenômeno delicado, pois acaba por subverter a lógica democrática, uma vez que a técnica, a sentença, acaba por prevalecer sobre a soberana manifestação dos cidadãos.
É curioso que, nesse cenário, é simplesmente revogado o princípio que legitima o Estado de Direito, que somente por isso é denominado de democrático: o voto. É assustador que o mesmo processo que revogou a soberania popular na ditadura agora, sob máscara diversa, revogue ou enfraqueça o voto, valendo-se não da tortura ou das armas, mas da atuação de sentenças proferidas por certos setores do Judiciário ou por certos promotores eleitorais.
Na ditadura havia o fim da soberania popular com o aniquilamento da dissidência, com o projeto de infantilizar a população, interditando assim o voto, ao estabelecer a tutela da competência sobre a política. Assim, aniquiladas as formas de representação democrática, foram criados os mitos dos núcleos de excelência que se opunham à democracia.
Desse modo, as armas acionavam uma engrenagem que eliminava a democracia como forma de deliberação, visto que os sábios tornavam a soberania popular desnecessária, com a consequente substituição das urnas pelos quartéis, da política pelas armas, da ação política pela prisão, tortura, exílio e assassinatos.
Se esse projeto de esvaziamento da democracia faliu com a redemocratização e nós avançamos na constituição da experiência democrática brasileira ao longo desses 25 anos, não podemos permitir que o seu conteúdo subsista, mudando-se os atores, mas permanecendo o enredo, a soberania popular sendo unificada ou prejudicada pela judicialização processo eleitoral e da política.
Essa conduta tenta, pelo desencanto e ceticismo, pelos erros e equívocos da política, no caso do Brasil, pela não realização da reforma política, institucionalizar-se justamente quando ascendem ao poder governos populares na América do Sul. Após séculos de exclusão política e de governos neoliberais, as populações marginalizadas conferem poder aos projetos populares, que, por intermédio de políticas públicas e participação política, passam a gerar inclusão social, contrariando interesses estabelecidos e alijando do poder as forças oligárquicas e neoliberais.
Então, a saída encontrada por tais setores da oligarquia foi a interdição da política, repetindo-se assim a velha fórmula que impede segmentos da população de terem seus destinos nas mãos. Não é por acaso que no processo eleitoral, por exemplo, o conceito de hipossuficiência seja conjugado para interditar a vontade manifesta do cidadão, caçando-lhe o voto. Com isso, a judicialização da política é invocada tanto para suspender mandatos quanto para relativizar a soberania popular, vez que caberia às instâncias não políticas a possibilidade de examinar se os mandatos obtidos são válidos. As eleições são analisadas com suspeição, os políticos e candidatos são vigiados e culpados e a eles atribuídos algum delito genérico.
Essa situação é especialmente preocupante, pois, relativizados os mandatos, pode ser criada a circunstância para questionamentos que envolvam e evoluam para posições que questionem os resultados legítimos das eleições. Passadas as eleições, a deliberação política e a investidura dos mandatários contornam as urnas para se desenvolverem nos tribunais, e já temos exemplo disso em alguns Estados. Quanto a isso, é alarmante que já se fale em processo eleitoral de terceiro turno.
Desse modo, é exemplar que o protagonismo do Judiciário no Brasil se dê justamente com a ascensão de um governo popular como o de Lula. Nesse caso, os tribunais seriam o último recurso das elites brasileiras, que se recusam a reconhecer que o cidadão brasileiro é capaz de governar-se a si mesmo. E é precisamente a ação e a força da liderança do Lula que valorizam e resgatam a política.
Nesse caso, no Direito Eleitoral brasileiro, a hipossuficiência exerce o mesmo papel de interdição da vontade do povo, que é tratada com preconceito e demonização. Ou seja, como pode ser soberano um cidadão que não é da elite? Se não é soberano, que valor tem seu voto? Que valor tem a democracia se ela se funda numa vontade tão débil de um povo tão fragilizado e marginalizado?
É aqui que o componente ideológico se associa a um fator cultural, negando ao povo brasileiro a capacidade de, pelo voto, infundir poder. Assim, não é sem razão que a política seja criminalizada e passe a ser tutelada pelo poder da técnica e da sentença.
Nesse caso, é fundamental que a esquerda brasileira se dê conta do fortíssimo componente ideológico e social da judicialização da política. Esse processo tem, portanto, os seguintes desdobramentos:
I - o esvaziamento do processo parlamentar pelo processo judicial e técnico. Tal esvaziamento se dá, por exemplo, pelas audiências públicas realizadas pelos tribunais. Audiências públicas constatam a vontade e, por esse motivo, são uma prerrogativa do Parlamento. O processo judicial se refere à lei e, por esse motivo, não pode aferir a vontade dos cidadãos;
II - a legitimidade do Parlamento e do Executivo obtida das urnas lhes confere a prerrogativa de construir o futuro. Nesse sentido, o estabelecimento das normas, das leis e das prescrições, os programas e o estabelecimento de políticas públicas são tarefa do Parlamento e do Executivo eleitos. Cabe ao Judiciário vincular-se à lei, isto é, àquilo que foi decidido e deliberado pelo Parlamento. É por essa razão que a decisão judicial é fundamentada, ou seja, o Judiciário decide conforme aquilo que foi deliberado pelo Parlamento;
III - essa judicialização da política tende a colocar a democracia sob tutela da técnica, de modo que o Parlamento e o Executivo, investidos de poder pelo voto, sejam submetidos ao controle, como disse, da técnica e da sentença.
IV - as divergências e o contencioso políticos entre oposição e situação se transformam em ações judiciais, politizando o Poder Judiciário.
V - a criminalização dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda, particularmente o PT.
Após a redemocratização — uma conquista da política; fruto da luta pela fim da ditadura militar — , observamos a tentativa de se estabelecer a supremacia das carreiras de Estado sobre os Governos.
É incrível que em apenas 20 anos, após a promulgação da Constituição, não seja apresentado o argumento segundo o qual cabe à burocracia estatal legitimar-se por si própria.
Repita-se: o que legitima a atuação do Estado é o voto, a soberania popular. É por esse motivo que o Estado é democrático. É por essa razão que cabe aos eleitos governar o País.
Assim, no âmbito do Executivo, observa-se o mesmo fenômeno que polariza entre o elemento jurídico e o elemento político. Aqui a dicotomia exprime-se, Sr. Presidente, entre as diretrizes de Estado e de governo, com a estruturação de serviços públicos que buscam situar-se à distância das ações de governo, ações essas comprometidas — entre aspas — ou contaminadas — entre aspas — pelas ponderações de natureza política. O profissional de Estado, nesse sentido, coloca-se como agente que maneja uma tábua de valores absolutos da sociedade, dissociado da vontade da instância política, que ascende, periodicamente, ao poder, instância essa que seria também maculadora dos verdadeiros e autênticos interesses do País.
É por isso que é preciso salvar os interesses do Estado da mácula da intervenção política, consubstanciada na intervenção e no perigo que o próprio Chefe de Governo representa aos denominados interesses públicos, que, por essa razão, possuiriam como intérpretes os que compõem as carreiras de Estado.
Essa captura do Governo pelas corporações conduz à revogação do voto e prejudica a capacidade dos governos eleitos de produzir políticas que gerem inclusão social, universalização de direitos, reduzam as diversas desigualdades e projetem programas estratégicos, do ponto de vista econômico, do ponto de vista da infraestrutura e do ponto de vista do desenvolvimento regional.
Essa é a armadilha que precisa ser desarmada pela conjugação entre soberania popular e prerrogativa de direitos, pois somente na democracia é possível produzir pluralidade, e o caminho da pluralidade, do conflito e do consenso vai legitimando as soluções da própria democracia.
Eu repito: a crise da democracia tem de ser solucionada pela democracia, e a crise da política tem de ser solucionada pela política, e não pela sentença ou pela técnica.
Nesse sentido, é preciso se estabelecer como tarefa ao menos o seguinte, uma tarefa que, no meu modo de entender, está colocada para após as eleições de 2010:
I - Institucionalizar uma nova separação dos Poderes, condizente com a investidura democrática. Relação Executivo/Legislativo, cujo ponto central é a questão de medidas provisórias. Relação entre o Poder Judiciário, o Poder Legislativo e o Poder Executivo. Nós temos de discutir essas relações democráticas, harmoniosas e autônomas.
II - Articulação de um conceito de legitimidade para as intervenções estatais e para as políticas públicas, vez que as novas responsabilidades do Estado apontam para a licitude como um novo modelo para a administração pública.
Temos de, com base na legitimidade, ir construindo, pressionando e criando legalidades e normas para que a sociedade continue se desenvolvendo e instituindo direitos de maneira soberana.
A elaboração de um novo Código Eleitoral.
Nós temos várias leis eleitorais. Dependendo da interpretação, aplica-se de uma maneira ou de outra, aplica-se em um momento ou em outro. São necessários uma consolidação e um novo Código Eleitoral com base nesses princípios da democracia. A eleição não pode se transformar numa camisa de força. Hoje, quando discutimos a eleição, recebemos um rol de proibições. Daqui a pouco, fica-se proibido de se candidatar, porque o processo fica todo amarrado e proibido. Temos de ter uma legislação que não seja permissiva aos atos criminosos, mas que permita a livre expressão dos partidos, dos candidatos, dos programas e a manifestação da soberania popular. Por isso é necessário um novo Código Eleitoral, democrático, porque esse poder normativo da Justiça Eleitoral dá à interpretação das normas um poder legislativo que é, por natureza, desta Casa.
4 Uma reforma política — Considero essa questão central — que garanta o financiamento público das campanhas, o princípio da fidelidade partidária, a votação em lista partidária, o aumento da participação popular, diminuindo a exigência de 1% para apresentar leis ordinárias e ampliar para leis complementares e até emendas constitucionais.
Discutir a relação da Câmara e do Senado. Hoje, não há Casa revisora. As leis podem começar pela Câmara ou pelo Senado e fica um pingue-pongue interminável. O Senado representa a Federação e é uma Casa revisora; a Câmara representa o povo e é a Casa receptora das leis que devem começar pela Câmara dos Deputados, daí este formato do Niemeyer: abre assim, e o Senado fecha dessa maneira.
Por isso essa reforma política tem que ser pactuada. Acho importante, qualquer que seja o resultado da eleição para o Congresso Nacional, para os Governos Estaduais e para Presidente da República, que se pactue uma agenda de reforma política para o ano de 2011. Em 2012, novamente haverá eleições, 2013 antecede a eleição de 2014. No meu modo de entender, esse processo de eleição de 2 em 2 anos oxigena o sistema político eleitoral. A reeleição também foi uma norma que acabou se consolidando democraticamente no Brasil.
É necessário que o processo eleitoral não seja uma interdição do processo de funcionamento do Legislativo, e não seja interditado por normas proibitivas.
Por isso, defendo como prioridade para 2011, ao lado da reforma tributária, uma reforma política democrática. Cumprindo essas tarefas, abrirão espaço para o próximo Governo, que lutamos para eleger, que é nossa companheira Dilma, e fortalecer o primado da política, dando a continuidade ao processo de autonomia crescente de parcela significativa da população brasileira, rumo à eliminação das injustiças seculares que vitimaram nosso povo, instituindo-se a democracia como soberania popular. Esses 2 elementos da soberania popular e da instituição de direitos, pilares da democracia, também alicerçam a idéia de um projeto nacional, soberano, com distribuição de renda, com igualdade social, com o fortalecimento do papel do Estado como articulador e indutor do crescimento econômico.
Este é um momento importante.
Entendo que a reforma política se coloca como um caminho, uma alternativa, para que não fiquemos com uma crise permanente das instituições políticas, como uma crise de permanente desgaste do processo eleitoral, uma crise de permanente sufoco daqueles que representam a população, com base no princípio de que todo poder emana do povo, seja pelo voto, seja pela participação direta.
Faço esta reflexão para que a Casa discuta este tema. Acho fundamental, porque, do contrário, ficaremos aqui marcando passo. Em cada crise, em cada escândalo, em cada tentativa, legítima ou não, de desgaste da imagem do Congresso Nacional, ficamos na defensiva ou então votando medidas, às vezes casuísticas, atalhos que não resolvem o problema de fundo, que é uma reforma política democrática e uma reforma do Código Eleitoral.
Muito obrigado, Sr. Presidente, por esta oportunidade de fazer esta reflexão nesta tarde de quinta-feira.