Trajetória

Versão para impressão  | Indicar para amigo

A guerrilha do Araguaia: dores e direitos - Artigo da socióloga Maria Francisca publicado em 2003

Maria Francisca

Aguerrilha do Araguaia voltou a ser foco de atenção com a sentença da juíza federal Solange Salgado, determinando a quebra do sigilo das informações militares sobre o combate aos guerrilheiros. O governo recorreu da sentença, mas as ações buscando desvendar as violações dos direitos humanos durante as ditaduras militares na América Latina dão apenas os primeiros sinais das cobranças que serão feitas às novas democracias sobre crimes políticos do passado.

As Forças Armadas se recusaram a abrir os arquivos sobre o Araguaia com argumentos de que os documentos nunca existiram ou que foram destruídos. Entretanto, reportagens do “Correio Braziliense” trouxeram importantes revelações sobre as ações militares na região, como as operações Mesopotâmia (1971), Papagaio (1972) e Sucuri (1973). Porém, permanece a incógnita de como foram mortos os guerrilheiros e onde foram enterrados.

A história da guerrilha está sendo contada em partes e, até agora, apenas um dos lados falou: o que sofreu a repressão. Dos 69 militantes do PCdoB que integravam a guerrilha no início da luta, em 1972, 61 são desaparecidos. Na série de reportagens, o “Correio” divulgou depoimentos da prisão de cinco sobreviventes, entre os quais José Genoino, ex-deputado federal e atual presidente do Partido dos Trabalhadores. No caso desses depoimentos, vale um reparo. As folhas às quais o jornal teve acesso, cópias, fazem parte de longos e complexos processos que estão arquivados no Superior Tribunal Militar. São documentos secretos, vedados ao público, mas não aos presos e seus advogados que podem requerê-los na Justiça.

José Genoino foi condenado à pena máxima de cinco anos, juntamente com outros 10 militantes do PCdoB, por pertencer a uma organização clandestina. Eles não foram julgados como guerrilheiros, pois os militares resolveram desconhecer oficialmente o fato, com receio de que houvesse propagação. A censura proibia a imprensa de divulgar qualquer notícia sobre o Araguaia. Esse processo contra o PCdoB envolveu 40 réus, conforme registro dos autos de 10.513 folhas em 28 volumes.

Sem a prévia compreensão de como eram montados os interrogatórios nem a revelação do conjunto dos depoimentos, a história dos porões da ditadura é conhecida parcialmente. Os processos políticos dividiam-se em duas fases: a fase policial — do inquérito policial militar — e a fase judicial, da ação penal. Os casos de mortes e desaparecimentos ocorriam sempre na primeira fase, quando não havia ainda registro de prisão e os detidos eram interrogados sob tortura. As informações obtidas nesse momento compunham as peças judiciais da segunda fase e não passavam de uma compilação arbitrária de falas extraídas nas inúmeras sessões de tortura.

Concluída essa fase, que para Genoino demorou 11 meses, dos quais nove incomunicável, apresentava-se ao preso esses depoimentos para que ele os assinasse. Se recusasse, voltava para o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa Interna), a Câmara de Interrogatório considerada o exemplo do terror na época. As chances eram duas: voltar para a tortura ou ter a prisão legalizada, o que significava deixar de ser um pária, uma pessoa sem direitos, e passar a ter direito a julgamento.

Mesmo com a parcialidade da Justiça Militar, tribunais onde eram julgados os presos políticos, o registro de prisão significava um atestado de vida. Eles aproveitavam o interrogatório na Auditoria Militar para denunciar as torturas. Mas a maioria calou com medo de retornar às sessões de tortura e de se prejudicar no julgamento. De acordo com os dados do livro “Tortura nunca mais”, entre abril de 1964 e março de 1979, de 7.367 presos interrogados em 707 processos do Superior Tribunal Militar contra grupos de esquerda somente 1.843, o que equivale a 25%, acusaram algum agente de tortura.

José Genoino foi um deles. Em seu interrogatório na Auditoria Militar, negou os depoimentos anteriores, dizendo ter sido coagido e que por isso não tinham valor de provas, “pois foram obtidos mediante a coação física, moral e psíquica”. No seu julgamento apresentou uma carta-defesa, na qual relatou as torturas, assumiu a guerrilha e a tornou pública, já que os militares ocultavam o fato. Pela sua postura, ele foi considerado nos autos “réu perigoso e não arrependido” e sua carta-defesa chamada “carta-confissão”.

Seria desnecessário contar isso, se a história do regime militar no Brasil não estivesse vindo à tona de forma invertida, ao se falar mais dos torturados do que dos torturadores, diferente do que está ocorrendo em outros países, a exemplo da Argentina, onde se procura punir os culpados. Aqui, vítimas são transformadas em traidores e os verdadeiros algozes andam por aí impunes se esgueirando do público. Vez ou outra aparece um assumindo “eu torturei”. O teor das leis e convenções contra a tortura é a proteção da integridade humana e a noção legal de que ninguém deve ser punido moralmente ou judicialmente pelo que fala sob tortura, justo pela ausência de liberdade.

As famílias dos desaparecidos no Brasil, assim como as Mães da Praça de Maio, na Argentina, são heroínas na busca do paradeiro de entes queridos. Se declarados mortos, querem dar-lhes um enterro digno, conforme suas crenças e religião. Desde sempre, esse é um direito privado e sagrado. Antígona, de Sófocles, desafiou a Justiça roubando o corpo do irmão para enterrá-lo, ao considerar o sepultamento um dever sagrado mais forte do que as leis dos homens, pois mais longo o tempo em que devia agradar aos que estavam no além do que aos que estavam na terra. Enquanto houver um remanescente da família dos mortos pela repressão, a luta pelo direito de enterrá-los continuará. E no caso do Araguaia, a forte rede de parentesco indica que a história está longe do fim: são três irmãos da família Petit, Maria Lúcia, Lúcio e Jaime; cinco casais; um pai e um filho, Maurício e André Grabois.

Mesmo a guerra tem suas leis, apesar das práticas contrárias, como ocorreu no Araguaia, chamada de “guerra suja” pelos militares para justificar atos de extermínio. Pelas leis, os feridos devem ser socorridos e os corpos dos adversários mortos identificados e recolhidos. Nada disso foi feito no Araguaia. Conhecer a verdade sobre a guerrilha hoje faz parte do compromisso da sociedade com a construção da democracia.

Maria Francisca Pinheiro Coelho é socióloga,

Artigo publicado pelo jornal O Globo dia 26 de setembro de 2003

Busca no site:
Receba nossos informativos.
Preencha os dados abaixo:
Nome:
E-mail: