Trajetória

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Araguaia: o direito das famílias - Artigo de José Genoino publicado em 2003

José Genoino

Uma decisão judicial que determina que o Estado disponibilize os arquivos militares sobre a guerrilha do Araguaia, para que os familiares dos desaparecidos obtenham informações sobre os corpos e as circunstâncias de sua morte, está suscitando uma série de discussões e reportagens sobre o assunto. A primeira reportagem jornalística sobre a guerrilha apareceu em 1979, no Jornal da Tarde. Daquela reportagem, para a qual fui entrevistado, resultou o livro do jornalista Fernando Portela "Guerra de Guerrilhas no Brasil". Sucedeu-se depois uma série de reportagens, com fotos inéditas, publicadas pelo jornal O Globo, em 1996. Vários outros jornais, a exemplo dos extintos Movimento e Coojornal, também publicaram matérias, com entrevistas e depoimentos. Na última semana, o Correio Brasiliense publicou depoimentos que constam dos autos da Justiça Militar.

Na condição de militante político de esquerda, e não como presidente do PT, vejo-me na obrigação de me manifestar novamente sobre o assunto, por dois motivos: quero deixar clara a minha posição sobre o direito das famílias dos desaparecidos de terem acesso às informações e quero repudiar insinuações e acusações de que meus depoimentos, que estão na Justiça Militar, teriam contribuído para a localização de guerrilheiros.

Antes de tudo, quero registrar que, ao sair da prisão em 1977, procurei os familiares dos guerrilheiros com o objetivo de ajudá-los na localização de seus parentes. O meu depoimento judicial sobre o assunto também tem o mesmo sentido. E, por ocasião da tramitação do projeto de lei do governo Fernando Henrique Cardoso, que estabelece o reconhecimento dos desaparecidos políticos e a indenização a seus familiares, na condição de deputado, trabalhei por sua viabilização e aprovação no Congresso. Esses atos, por si sós, dizem mais do que qualquer declaração acerca do meu empenho em garantir o direito das famílias de terem acesso às informações sobre seus entes queridos.

Julgo que todas as informações disponíveis em poder do Estado sobre a guerrilha devem ser tornadas públicas por se tratar de um episódio importante da história do Brasil. Sempre enfatizei e continuo enfatizando que tanto o atendimento à reivindicação justa das famílias quanto a publicação de eventuais documentos são atos que se devem processar sem o intuito da politização do tema ou de julgamento do comportamento dos militares. Acredito que a Lei da Anistia tenha estabelecido um ponto final sobre esses procedimentos e não tem sentido, agora, desencadear uma crise política com setores militares ou alimentar qualquer pretensão revanchista ou de vingança.

Quero repelir, com indignação, as insinuações de que meus depoimentos teriam contribuído para a localização de guerrilheiros. Até um passado recente, essas acusações vinham de pessoas que, durante o regime militar, estavam do outro lado das trincheiras - eram inimigas da resistência de esquerda.

Ultimamente, pessoas que se intitulam de esquerda e que, provavelmente, nem sequer participaram da luta contra o regime militar também têm disseminado esse tipo de insinuações. Essas pessoas, na verdade, se emboscam por trás de um pseudo-esquerdismo para defenderem interesses contrariados. Enraivecidas por terem seus privilégios cortados por um governo que está implantando a justiça social, não têm outro argumento que não seja a calúnia e a difamação.

Os meus depoimentos, feitos sob tortura física e psicológica, em nada contribuíram para a violação da segurança ou localização dos guerrilheiros.

Até mesmo porque, quando fui preso no início da guerrilha, o Exército já a tinha localizado e a estava enfrentando. Ao levar um comunicado para um destacamento, este já tinha fugido por saber da presença dos militares. Ao retornar ao meu grupo, esse também havia mudado de posição, fato que impediu que entrasse em confronto com o Exército. Ao ser preso, então, eu já não dispunha de informações sobre a localização dos dois grupos.

A experiência mostra que a conduta de presos políticos submetidos à tortura foi bastante variável. O assunto, por envolver a resistência física e psicológica das pessoas, sua vida ou morte, é tão complexo que não pode ser tratado de forma leviana e irresponsável. Muitos presos que não falaram nada morreram sob tortura, outros sobreviveram. Entre os que falaram, uns sobreviveram, outros morreram. Muitas vezes, falar é uma forma de resistir à tortura. Dos que falaram, uns inventaram histórias fantasiosas para despistar a repressão. Outros contavam parte da verdade, sem, contudo, prestar informações relevantes que comprometessem a segurança dos que continuavam na luta. Revelar nomes, em si, não era sinônimo de delação, porque os nomes eram codinomes. Muitos revelavam nomes, mas apresentavam características físicas diferentes das reais. Os meus depoimentos sob tortura seguiram esse tipo de jogo. Prestei algumas informações verdadeiras, irrelevantes para a segurança dos guerrilheiros, recheadas de invenções fantasiosas, com o objetivo de despistar a ação repressiva.

Por fim, quero dizer que não reconheço nas pessoas que me acusam o direito e a moral para me julgarem. São pessoas que não sabem o que é a luta política nas condições da clandestinidade e nunca passaram pela terrível experiência da tortura. São pessoas que não foram testadas quanto aos limites de sua resistência física e psicológica. Ao disseminarem calúnias e difamações, colocam-se na condição de algozes. O que estão fazendo é a continuação da tortura psicológica que era feita pelos torturadores da ditadura militar.


Publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo

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