Trajetória

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Da infância pobre à guerrilha - 28 de julho de 2003

Manhã do dia 18 de abril de 1972, um dos anos de chumbo da ditadura militar. Como de costume, o lavrador José Geraldo andava na mata da região de Xambioá, no Araguaia. De repente, surgiu a polícia, que estava à procura de um grupo suspeito de organizar uma guerrilha para derrubar o governo. Desconfiados do lavrador, o algemaram junto a uma árvore. José Geraldo era, na verdade, codinome do guerrilheiro José Genoino Neto, hoje presidente do PT. Naquela hora, ele jurava inocência. A polícia fotografou a cena. Sem saber, congelou um momento importante da história do País - e o mais difícil dos 26 anos de vida do guerrilheiro. Foi um dos poucos registros da sua juventude. Na infância, não teve a sorte de posar para um retratista. "Ali eu pensava na minha família, que esperava ter um filho doutor para ajudá-los", conta. Genoino sentira a incômoda certeza de que estava muito distante do futuro imaginado quando criança.

Ele era o filho mais velho do agricultor Sebastião Genoino Guimarães e da professora Maria Laís Nobre Guimarães. Ainda contava a idade nos dedos de uma mão e já sabia usar a enxada para arar a terra na zona rural do pequeno e pobre Encantado, distrito da cidade cearense de Quixeramobim. A família plantava mandioca, feijão e arroz. Eram meeiros, pois a colheita era dividida com o dono da terra, a "meia". Não viam dinheiro. A labuta diária rendia alimentos, quando o clima do semi-árido permitia. Em tempos de seca, Sebastião ouvia o ronco da barriga vazia dos filhos. "Dividíamos o parco caldo de feijão com farinha ou a farinha com rapadura, que era barata", lembra o ex-deputado.

Nada, porém, havia sido pior do que o ano de 1958. Nem a novena de Laís, que reuniu a vizinhança para uma interminável reza no dia de São José, evitou a seca. Com apenas 11 anos, José Genoino seguiu para uma frente de trabalho para não ver seus seis irmãos sem comida. A barragem de Quixeramobim tem o seu suor. Ele carregava pedras num carrinho para ajudar na construção. Ao final do dia, ganhava pontos no cartão da frente e assim podia pegar alimentos no armazém. Testemunha da vida dura do filho, Laís insistia na vida escolar. "Aprenda, meu filho. Se você souber ler pode ir embora e ganhar dinheiro para ajudar a gente", repetia como uma ladainha.

Laís ensinava o be-a-bá em casa para as crianças da região. Genoino aprendeu a escrever o nome e sabia juntar as letras, mas só entrou numa escola após a seca de 1958. Foi matriculado no grupo escolar do Encantado. O distrito se resumia a uma praça, uma igreja e uma estrada de terra batida, ladeada por 20 casas. Estranhou no início os colegas e a professora, mas estava determinado. "Queria ler mais e mais para poder ir embora, então comecei a me esforçar para ser o primeiro da classe." Conseguiu. Pesarosa por ver aquele esforço desperdiçado na pobreza, a professora decidiu lhe ensinar os ofícios de coroinha. Assim, ele poderia ajudar padre Salmito, que duas vezes por mês aparecia para rezar missa, fazer casamentos e batizados.

Dividindo o tempo entre a igreja, a roça e a escola, o menino chegou à quarta série do Ensino Fundamental. Para continuar os estudos, teria de se mudar para Senador Pompeu, a maior cidade da região. Lá, não havia escola pública, só colégios particulares ligados à Igreja, mas a família não podia pagá-los. Até que um dia padre Salmito, que é amigo de Genoino até hoje, chegou com boas novas: Consegui com as freiras Filhas de Santa Tereza que o Genoino estude lá sem pagar - disse a Sebastião.

- Não, padre. Filho de pobre que nasce na roça tem que trabalhar é na roça mesmo - respondeu o pai de Genoino.- Mas seu filho é esperto, inteligente, não dá para perder essa oportunidade - retrucou o padre, diante do olhar arregalado de Genoino, que escutava a conversa dos adultos calado, num canto da sala.- Deixe, Sebastião, é melhor para ele ir estudar. Deixe ele ter um futuro melhor do que esse da roça - interveio a mãe.

A conversa durou mais de meia hora. Contrariado, Sebastião cedeu. Genoino vibrou quieto, para não provocar o pai. E sua vida mudou com a ajuda do padre.

Aos 14 anos, deixou para trás a enxada, a casinha de tijolo, os pais e os, àquela altura, oito irmãos (no total são 12) para seguir padre Salmito. Foi morar na casa paroquial, ajudava a rezar as missas, fazia hóstias, cuidava da administração da casa e do salão da igreja, enquanto ia à escola. Teve que superar dificuldades. "Nunca tinha colocado sapato nos pés. Andava torto, mancando", lembra. Também agüentou calado o incômodo apelido de "filho do padre". A amizade entre o jovem e o religioso cresceu. Padre Salmito sabia dos flertes do rapaz na escola e até achou graça de sua paixão platônica por uma freira. "Conversávamos sobre tudo e foi com ele que comecei a entender a política", lembra Genoino.

Foi também com o padre que Genoino entrou pela primeira vez num prostíbulo. "Fomos dar a extrema-unção para a dona da casa, que estava doente", conta. "Achei tudo estranho, aquelas mulheres tão maquiadas, corpo à mostra, casa cheia de enfeites." Entrou e saiu mudo. Bem diferente da atitude que tomou quando o dono do cinema de Senador Pompeu decidiu acabar com a meia-entrada para estudantes. Revoltados, quebraram tudo a pedradas. Foi seu primeiro ato de rebeldia.

Genoino começou a descobrir um novo mundo nas pregações esquerdistas do padre que ajudava trabalhadores a se organizarem em sindicatos e cooperativas. Participou dos encontros do Grupo de Estudantes Católicos (GEC) em Recife, Maceió e Campina Grande, onde conheceu Frei Betto, na época, o dirigente nacional do GEC. "Passamos vários dias juntos discutindo questões sociais. Era um grupo imenso e foi um encontro muito produtivo", relembra Frei Betto, hoje assessor especial do presidente Lula.

Após concluir o Ensino Fundamental, Senador Pompeu se tornou pequena para as aspirações do rapaz que pensava em ganhar dinheiro e ajudar a família. Para cursar o Ensino Médio, teria de se mudar para a capital. De novo, não tinha condições. Padre Salmito o ajudou. Arranjou uma família amiga para abrigá-lo em Fortaleza, onde Genoino chegou meses antes do golpe militar de 1964. Fez exames do MEC e conseguiu terminar em um os três anos do Ensino Médio.

Falante e animado, logo fez amigos na capital. Conversava cada vez mais com uma vizinha, professora universitária, 15 anos mais velha, que certa vez o convidou para ir ao cinema. Estava para completar 18 anos. A caminho do encontro, nervoso, pressentiu: sua vida estava para mudar radicalmente outra vez. Mas agora, pelas mãos de uma mulher.

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