Trajetória

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Da tortura à liberdade - 11 de agosto de 2003

Com as mãos amarradas, Genoino, a pé, era puxado por um dos pistoleiros, a cavalo. Levavam-no de volta ao acampamento abandonado pelos guerrilheiros. Durante a caminhada, nervoso, tentou pensar rápido. "Era melhor fugir", concluiu. De súbito, puxou a corda e correu. "Pode matar", gritou. Atiraram. A bala passou de raspão no braço direito. Continuou a correr. De repente, caiu numa moita. Perdeu a força e foi recapturado. Ouviu do sargento Marra o comentário de que agricultor não manda matar. Mas ficou quieto. No acampamento foi acomodado no chão de um dos barracos, onde entrou um cachorro, um vira-lata de tom amarelado. "Ele se aproximou, abanou o rabo e ficou me cheirando", recorda.

- Tá vendo, o cachorro dos terroristas conhece ele! - berrou Marra sem ter mais dúvidas. - Eu já disse que vinha sempre aqui fazer negócio - argumentou Genoino.

Não adiantou. Naquele 18 de abril de 1972, o jovem que queria mudar o mundo conheceu a brutalidade da tortura. "Eles começaram com telefone ( tapa nos ouvidos) e foram alternando com afogamento (no qual a vítima fica pendurada de cabeça para baixo)", conta. "Depois me puseram de pé, com o calcanhar sobre latinhas que tinham brasa queimando." Genoino não sabia onde estavam os guerrilheiros daquele acampamento. Por isso apanhava, mais e mais. À noite, quando todos dormiam, ele se jogou no chão de terra, algemado e com os tornozelos presos por correntes. Não conseguia fechar os olhos. Viu o cachorro voltar. Ele lambeu seu rosto sujo, suado e se deitou ao lado. "Chorei. Era um momento inesperado de carinho", diz o ex-guerrilheiro.

Os dias que se seguiram se resumiram a sofrimento físico. Genoino só foi identificado cinco dias mais tarde em Brasília. Encapuzado, enfrentou o pau de arara, levou choques elétricos e passou a administrar a própria vida jogando com o tempo e as informações que ia soltando aos poucos. "O que falei não prejudicou a guerrilha e nem atingiu a vida de ninguém", afirma. "Quando identifiquei onde eu morava no Araguaia e as pessoas que moravam comigo, já tinha dado tempo de eles fugirem, porque se eu não voltasse em cinco dias era para fugir." Até hoje, Genoino é acusado de delator por causa dessas informações. "Isso magoa", diz ele. Com o semblante triste, afirma: "Só me acusa quem não viveu o que eu vivi".

Genoino ficou nove meses em Brasília fora da lista oficial de presos. Era como se não existisse, por isso, poderia ser morto a qualquer momento. Sofria tortura a cada informação nova que o governo obtinha sobre a guerrilha do Araguaia. As agressões só cessaram com o início da formalização de seu processo, em fevereiro de 1973, quando foi transferido para São Paulo. Passou por longo interrogatório no Doi-Codi, foi levado para o Dops - órgãos de repressão da ditadura - e acabou no pavilhão 5 do presídio do Carandiru. "Parece ironia, mas foi lá que minha vida ganhou tranqüilidade", diz.Na casa de detenção havia uma cela para cada dois presos. Durante o dia eles ficavam nos corredores, liam, jogavam futebol e assistiam à tevê. Genoino começou a namorar sua atual mulher, Rioko Kayano, 54 anos, na prisão. Eles se conheciam do movimento estudantil mas eram apenas amigos. Até que dois encontros o marcaram para sempre. O primeiro, em Brasília. Entre sessões de tortura, Genoino teve que reconhecê-la através do vidro da sala de interrogatório. O segundo, no Doi-Codi em São Paulo, quando se cruzaram no corredor, ambos escoltados por policiais. Num gesto espontâneo, eles burlaram a sisudez da cadeia e se abraçaram pela primeira vez:

-- Agüenta firme - sussurrou Genoino no ouvido dela. - Tá tudo bem - respondeu Rioko, que foi presa no dia em que chegou ao Araguaia para a guerrilha.

Com ajuda de carcereiros, os dois se corresponderam clandestinamente. Escreviam cartas em maços de cigarro, em papel higiênico e nunca se viam. Tornaram-se cúmplices. "No dia 6 de outubro de 1973 ela me propôs namoro. Eu aceitei", conta o presidente do PT. Rioko ganhou liberdade condicional três anos antes de Genoino, que cumpriu cinco de prisão. Seu período no cárcere terminou no Ceará, sua terra natal, numa transferência que ele não queria. Temendo pela vida, chegou a assinar um documento para seu então advogado, o hoje deputado federal, Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), no qual garantia que não se suicidaria. Sua mãe, que vivia a dor de ter um filho preso, passou mal quando recebeu notícias de seu primogênito. Foi visitá-lo na cadeia e não disse uma palavra. Chorou apenas. "Tentei explicar, mas ela não entendeu", recorda. Pelas portas do Instituto Penal Paulo Sarasate, de Fortaleza, Genoino recuperou a liber- dade, na tarde de 18 de abril de 1977.

No dia seguinte voou para São Paulo com uma idéia fixa: encontrar a namorada Rioko. Durante sete anos, dois de guerrilha e cinco de prisão, Genoino não manteve relações sexuais. Por isso, além de finalmente ver a mulher que amava à distância, o encontro estava cheio de expectativas. Eles se encontraram no dia 1º de maio de 1977 e foram para o apartamento de Rosa, irmã de Rioko. Não beberam nada, porque o fígado de Genoino, maltratado pelos remédios contra malária, já não permitia mais extravagâncias. Falaram das dores, das experiências, do futuro. E viveram uma noite de amor que ficou eternamente gravada na memória. Nunca mais se separaram. "Foi inesquecível", diz ele.

Genoino reclamava do fato de levar "uns sustos". Era como se estivesse desacostumado a andar sem escolta policial. Para superar essa sensação de eterno sobressalto, um psiquiatra amigo de Rioko sugeriu que enfrentasse a mul- tidão, no lugar de evitá-la. "Vá a um jogo de futebol", propôs ele. Genoino seguiu o conselho. O estádio do Morumbi estava lotado. Era a tarde da histórica final do campeonato paulista entre Corinthians e Ponte Preta, quando o time paulistano quebrou um jejum de 23 anos sem ganhar campeonatos. "Quando vi o estádio coberto de preto e branco, aquela gritaria, foi como se eu entrasse em órbita. Fiquei embriagado, louco", lembra Genoino, que até então não tinha time. Passou a madrugada festejando o título e amanheceu um corintiano roxo.

O casal alugou um quarto para morar. Rioko, enfermeira, trabalhava no Centro de Saúde Escola. Genoino foi dar aulas de história num cursinho. Com exceção de alguns diretores, ninguém sabia de sua vida. Era o início da abertura política, o Brasil gritava pela anistia e havia ainda uma certa tensão no ar. O momento pedia certa cautela. Até que um dia o Jornal da Tarde escancarou uma série de reportagens sobre a guerrilha do Araguaia e a vida de Genoino foi desvendada naquelas páginas. Na segunda-feira seguinte a turma ficou muda. O silêncio constrangeu o professor sempre animado e gozador, que, sem fazer graça, passou a matéria. No final ouviu: -- Professor, agora conta a sua história.

Trechos de uma carta de Genoino enviada à família da prisão"Estou preso agora em Fortaleza. Aqui cheguei em novembro de 75. Essa transferência foi forçada e trouxeram-me contra a minha vontade. Isso foi mais uma injustiça.(...) Tudo o que vivi aí continua vivo em minha memória, como o sofrimento e a exploração a que estamos submetidos. Isso é uma das razões que me impulsionam a continuar na luta para acabar com a opressão do nosso povo"

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