Trajetória

Versão para impressão  | Indicar para amigo

1968, 40 anos depois

A pior noite (3)

Revista Isto É
IDENTIFICAÇÂO Como ministro, Costa e Silva já se aliava à linha dura

Poucos dias depois, o ministro do Exército, Lira Tavares, enviou ofício ao presidente Costa e Silva, dizendose "confiante nas providências que Vossa Excelência julga devam ser adotadas". Lira Tavares não chegou a pedir que Márcio Moreira Alves fosse processado. O processo saiu da cabeça do general Jayme Portella, que não cessou de alimentar a crise e de fomentar a indignação da tropa. Emparedado pelos ministros militares, Costa e Silva mandou que Gama e Silva estudasse uma fórmula jurídica para punir o parlamentar. Gaminha não pensou duas vezes: cabia ao governo pedir à Câmara licença para processar o deputado. Mas a Câmara sempre negara licença nas tentativas de processo por opinião e votos no exercício do mandato parlamentar. O Palácio, porém, não deu ouvidos ao presidente do partido governista, senador Daniel Krieger, que sugeriu a suspensão do colega. Gaminha se mexeu para assegurar a vitória na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. O governo substituiu nove membros da CCJ para garantir a aprovação, mas teve de engolir a renúncia do presidente da Comissão, deputado Djalma Marinho. Citando o dramaturgo espanhol Calderón de la Barca, Marinho disse uma frase que se transformou em palavra de ordem na Câmara: "Ao rei, tudo, menos a honra." No dia 12 de setembro de 1968, na votação do plenário, o governo perdeu feio. Foram 216 votos contra, 141 a favor e 12 em branco.

A truculenta resposta da ditadura militar veio no dia seguinte. Com o fim das garantias constitucionais, a linha dura ganhou, enfim, liberdade e autonomia para investir contra todos os que ainda acreditavam na volta da democracia. A razia começou na noite da sexta-feira 13. Censores ocuparam as redações dos principais jornais, as rádios e as emissoras de tevê. Vários políticos e intelectuais foram presos, entre eles, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, os escritores Antônio Callado e Carlos Heitor Cony, o poeta Ferreira Gullar, o editor Enio Silveira, o advogado Heleno Fragoso. Em São Paulo, os cantores Caetano Veloso e Gilberto Gil. Transferidos para o quartel da PE, no Rio, Caetano teve os cabelos raspados a zero. Carlos Lacerda chegou à cela na manhã do dia seguinte e, ao ser recebido com frieza pelo compositor comunista histórico Mário Lago, estendeu a mão: "Ô, Mário, preso fala um com o outro, não é?" Foram inúmeras as histórias de solidariedade e bravura nos primeiros dias do AI-5. Mas uma delas, contada por Zuenir, merece ser repetida. Em Goiânia, no sábado 14, às 19h30, o grande advogado Sobral Pinto aguardava, num quarto de hotel, a solenidade de formatura da qual seria paraninfo. Estava de chinelos, em manga de camisa e calça de pijama. O quarto foi invadido por um major e seis soldados. O major trombeteou: "Trago uma ordem do presidente Costa e Silva para o senhor me acompanhar." Destemido como sempre, Sobral retrucou: "Meu amigo, o marechal Costa e Silva pode dar ordens ao senhor. Ele é marechal, o senhor major. Mas eu sou paisano, sou civil. O presidente da República não manda no cidadão. Se esta é a ordem, então o senhor pode se retirar porque eu não vou." O militar, surpreso, gritou: "O senhor está preso!" Sobral respondeu: "Preso coisa nenhuma." Foi agarrado e arrastado pelo salão do hotel. Sobral tinha, então, 75 anos de idade.

O arrastão da linha dura também fez muitas baixas no meio acadêmico. O governo expulsou das universidades 66 professores, entre eles Caio Prado Júnior, Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo Florestan Fernandes, a historiadora Maria Yedda Linhares, o físico Jayme Tiomno e o médico Luiz Hildebrando Pereira da Silva, que deixara uma posição no Instituto Pasteur, em Paris, pela Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto. No Rio, não escaparam nem mesmo os catedráticos da Escola Nacional de Belas Artes Quirino Campofiorito e Mário Barata. Por força do AI-5, foram cassados os mandatos e suspensos os direitos políticos do deputado Márcio Moreira Alves e de vários outros parlamentares. Em janeiro de 1969, o balanço de políticos cassados era o seguinte: dois senadores, 28 deputados federais, 38 deputados estaduais e um vereador. Dois meses depois, mais 30 parlamentares vieram se juntar à lista de cassados e mais 100 pessoas tiveram os direitos políticos suspensos por dez anos.

A longa noite do AI-5 estava apenas começando. Os jovens envolvidos no movimento estudantil não enxergaram mais saída para o País, a não ser a luta armada. Enquanto o Partido Comunista Brasileiro liderava as passeatas estudantis com o bordão "Só o povo organizado derruba a ditadura", os militantes das organizações à esquerda do partidão bradavam: "Só o povo armado derruba a ditadura." Foram à luta revolucionária. Criticavam o pacifismo e a excessiva moderação do PCB e consideravam-se a vanguarda das forças populares. De certa maneira, fizeram lembrar os heróis criados pelo escritor Victor Hugo, no clássico Os miseráveis. Cercados pelo Exército francês nas rústicas barricadas de rua contra a monarquia, são informados que o povo não vai aderir. Resposta dos rebeldes de Paris: "Se o povo abandonou os republicanos, os republicanos não abandonam o povo." Abandonados pelo povo e pela classe média, os jovens de 1968 tornaram-se presa fácil. Assim que foi baixado o AI-5, "a tigrada", segundo termo cunhado por Delfim Netto, saiu a campo para destruir as organizações de esquerda. Gaspari estima que, no início de 1968, havia cerca de 800 militantes envolvidos com ações armadas. Fontes militares contam o dobro. Pelo levantamento da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, do Ministério da Justiça, mais de 250 desses militantes foram barbaramente torturados e assassinados pelos órgãos da repressão de 1969 a 1975. Eles não viram o AI-5 ser extinto em 31 de dezembro de 1978, mas não morreram em vão. Disse o psicanalista Helio Pellegrino, um pouco antes de morrer: "Nós aprendemos com a loucura, a generosidade e o sangue deles."

Voltar para o inicio de "1968, 40 anos depois"

Busca no site:
Receba nossos informativos.
Preencha os dados abaixo:
Nome:
E-mail: