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RÁDIO CÂMARA
Deputado Genoino, eu tenho uma recordação bem clara de quem acompanhou esse período da Constituinte, que era a briga, de diálogo, não briga física, mas briga pessoal, por defesa de posições que muitas vezes eram minoritárias, mas extremamente importantes para definir o rumo dessa carta constituinte que nós temos hoje. O que ficou desse processo constituinte e o que o senhor percebe hoje, por exemplo, da diferença entre aquela época em que se vivia muito idealismo e hoje, uma época marcada por um pragmatismo que a gente não sabe direito o que é?
Na verdade o processo constituinte foi de uma grande disputa política e que começou com a convocação do Congresso Constituinte. Eu era deputado federal antes da Constituinte, fui eleito em 82 e tomei posse em 83 e a minha primeira experiência de plenário, no processo de interpretar o regimento foi na convocação da Constituinte. O ato, que convocava o Congresso Constituinte, nós do PT, que tínhamos cinco deputados, defendíamos uma Constituinte exclusiva.
Na instalação da Constituinte existiu também disputa política no próprio ato formal quando o ministro presidente do Supremo, Moreira Alves, foi questionado sobre a legitimidade de presidir o Congresso Constituinte. Eu inclusive guardo até hoje uma mensagem do Ulysses Guimarães, que estava na mesa - era presidente da Câmara, dizendo que concordava com a minha manifestação para que os partidos tivessem o direito à palavra naquela sessão solene.
Depois nós tivemos a disputa do Regimento Interno da Constituinte. Foi o Regimento Interno mais democrático no processo legislativo, porque além da participação popular com as emendas apresentadas por associações, por sindicatos, por empresários, o regimento deu ao processo constituinte uma característica democrática, tanto que as proposições eram apreciadas pela ordem de entrada, não havia rolo compressor da mesa, nem dos líderes.
E depois nós tivemos a disputa na composição das comissões temáticas que produziu a Comissão de Sistematização e o processo de plenário. Houve vários grupos que se formaram ao longo do processo constituinte que, na verdade, eram articulações de direita, o grupo dos 28, que depois deu o embrião para o Centrão, que era maioria na constituinte.
Com aquela disputa nós conseguimos mediar uma disputa radicalizada e ao mesmo tempo uma negociação. Na época essa negociação era puxada pela corrente de esquerda do PMDB – a Tendência Democrática e pelo PT, com os companheiros do PC do B - que produziu, no meu modo de entender, uma Constituição avançada. Do ponto de vista democrático é uma Constituição avançada porque revogou a ditadura militar e, ao revogar a ditadura militar - isso foi expresso naquela frase do Ulysses Guimarães, dos três patetas, onde ele comparou a Constituinte com a Junta Militar. Aquele episódio foi fruto também de uma mudança no texto constitucional introduzido na comissão de sistematização, que depois o Centrão derrotou, que era sobre o papel das forças armadas, no artigo 142 da Constituição , ela avançou.
Do ponto de vista do futuro, a Constituinte olhou para o pára-brisa e ao olhar para o pára-brisa, defendeu pressupostos que são atualíssimos, inclusive no direito constitucional, que é o capítulo dos direitos sociais, num patamar de direitos fundamentais; o sistema público de saúde como universal, como um dever do Estado, uma obrigação da sociedade; o sistema universal da previdência, mesmo com diferenças, mantendo alguns privilégios, foi um avanço ao incorporar os trabalhadores rurais no Funrural; o sistema de parceria, priorizando a educação pública e fundamental, na relação com o sistema privado; e nós introduzimos na Constituição, no direito constitucional brasileiro, questões e bandeiras que estavam interditadas, como a questão dos índios, a questão do direito à família, questão dos meios de comunicação. Isso não foi fácil, porque essa disputa radical e democrática também teve confrontos quase físicos. O capítulo da Reforma Agrária teve sim confronto físico no plenário. O capítulo das Comunicações teve conflito físico na comissão temática e no plenário.
Foi um processo muito rico. Por isso considero que a frase “a Constituição de 88 é uma Constituição cidadã”, está certa. Principalmente porque é uma carta de direitos e essa carta de direitos é universal, é do futuro e é muito atual, inclusive porque as políticas neoliberais que tentaram implementar no Brasil, a dificuldade maior é exatamente nos pressupostos dos direitos sociais, nas políticas públicas consagradas no texto da Constituição de 88.
Deputado Genoino, o sr. falou da constituinte exclusiva – o que se notou na época, eu lembro até que uma parte da argumentação do Partido dos Trabalhadores é que não sendo uma constituinte exclusiva, ela se misturava. De certa forma as pessoas não sabiam o que era votar numa constituinte, já que ao mesmo tempo você tinha uma campanha de constituinte, que era uma noção absolutamente nova, porque se recebia tudo do poder central e, ao mesmo tempo, ele era um deputado federal, para quem o eleitor ia encaminhar as reivindicações. O Sr. não acha que ficou dúbio na cabeça do eleitorado, ele vai para fazer uma constituinte, o que é isso exatamente?
Ficou. Ficou muito ambígua essa mistura. E essa ambigüidade na cabeça do eleitorado acabou se manifestando no início dos trabalhos constituintes. Porque você sabe que a Câmara e o Senado funcionavam normalmente, mas não tinha pauta, não tinha agenda, porque nós estávamos propondo uma mudança na ordem constitucional. Então como a gente ia trabalhar numa legislação infraconstitucional sendo que a Constituição ia ser mudada? É tanto, que no inicio de 1987, durante uns seis meses, não tinha ainda iniciado o processo de elaboração nas comissões temáticas, na comissão de sistematização e depois no plenário, a Câmara e o Senado ficaram vazias, era só discurso.
Porque tinha uma contradição no sentido de qual era a função do parlamento naquele momento. E como era uma transição do regime militar para um regime democrático civil, e essa transição foi pactuada por cima, foi um acordo com forte conteúdo elitista, teve uma disputa muito radical. Eu acho que a constituinte, de certa maneira, acabou reorientando aquele pacto das elites, para incorporar reivindicações, valores e bandeiras que fugiam um pouco daquela máxima de que “vamos mudar alguma coisa para que nada mude”.
E deputado Genoino, o sr. falando disso me lembrou, parecia num primeiro momento que o poder central, o Executivo estava concedendo uma Constituinte, quer dizer ,de certa forma é isso que o Sr. falou, vamos criar uma carta que pareça que estamos mudando alguma coisa, mas nós não estamos mudando nada. No processo constituinte, a gente viu que a pressão popular, muito grande, a sociedade se organizou e foram obtidas concessões que eu me lembro até que alguns parlamentares diziam: vamos dar, depois a gente não regulamenta, vamos dar, assim como um favor. E que hoje são peças importantes para a realidade nacional. O que o sr. acha dessa pressão popular?
Essa pressão popular foi fundamental. Primeiro nas emendas populares, depois na presença nas comissões temáticas aqui na Câmara dos Deputados e no Senado. Terceiro, nas manifestações que aconteceram como continuidade da campanha das diretas, no processo constituinte. E a Constituição elaborada fugiu do controle das elites. Tanto que o discurso da elite empresarial, da elite política conservadora após a promulgação da Constituição de 88, foi exatamente que a Constituição era para um país ingovernável. Eles responsabilizaram a Constituição pela ingovernabilidade. Porque a direita mais radical dizia até que ela consagrava direitos e não deveres. Era uma Constituição detalhista, era uma Constituição que inviabilizava o país. E a experiência destes 20 anos mostra exatamente o contrário. Nós avançamos no Sistema Único de Saúde, que é um sistema meritório do ponto de vista do atendimento básico à população que não tem como pagar plano de saúde, nem medicina privada; avançamos na questão da demarcação das terras indígenas, avançamos no conceito de previdência básica e universal para todos os brasileiros, tem distorções ainda na previdência, mas avançamos. E há hoje inclusive uma disputa sobre a questão dos direitos sociais, porque o capital, na sua fase monopolista e neoliberal, quer diminuir o custo trabalho e, ao querer diminuir o custo trabalho, fala em precarização de direitos como o repouso semanal, fundo de garantia, 13º, jornada de trabalho... São temas que permanentemente vêm a debate pelo que está no artigo 7º da Constituição. Então eu considero que é uma Constituição democrática e do ponto de vista social uma Constituição do futuro. A experiência dela mostra que ela não colocou o país na ingovernabilidade. Quer dizer, nós temos vários dispositivos constitucionais que ainda precisam de regulamentação e o processo é assim mesmo. O Brasil muda por uma vida processual e gradualista, não muda numa tacada, não ia mudar simplesmente promulgando a Constituição. É um processo. E eu acho importante que esse processo se consolide e hoje ele possa incorporar duas dimensões da democracia, que foi o ápice da Constituinte, que é a democracia representativa e a democracia participativa. Tanto que, o artigo fundamental, o preâmbulo da Constituição foi objeto de disputa. Nós começamos a disputa no preâmbulo, o poder emana do povo será exercido diretamente ou, por meio de seus representantes. Esse diretamente foi objeto de uma disputa radical no início da votação da Constituição de 88.
Deputado Genoino, e a gente nota que havia uma preocupação muito grande nessa ruptura de se assegurar direitos como o respeito à pessoa humana. O sr. brigou contra essa ditadura, o sr. viu que não havia respeito, então e a gente hoje vê, assim, que o artigo 5º, é o maior artigo da Constituição...
O artigo 5º e os princípios fundamentais que orientam o artigo 5º são, no meu modo de entender, a fundamentação democrática da Constituição. E é interessante observar que esses direitos fundamentais do artigo 5º têm orientado conquistas, ações importantes. Veja bem, nos tivemos algumas leis estratégicas que foram regulamentadas, fruto do Constituição de 88, que é garantia de direitos. Por exemplo: o Código de Defesa do Consumidor, a questão do Estatuto da Criança e do Adolescente, o habeas data - que possibilitou várias pessoas a terem as informações sigilosas da época ditadura militar - o mandato de injunção, quando as leis não garantem direitos e a não-regulamentação significa uma obstrução da conquista de direitos. São conquistas importantes. O fim de qualquer constrangimento e censura à imprensa foi uma conquista importante que está no artigo 5º.
É claro que uma Constituição, num sistema capitalista, também fez concessões. Por exemplo, colocar o direito à propriedade no meio do estatuto dos direitos e garantias individuais do artigo 5ª, mesmo especificando a função social da propriedade, no meu modo de entender, é um viés.
Agora, o processo político brasileiro não é puro, ele não é maniqueísta, ele é um processo delicado, complexo e nós temos que constatar o avanço. Inclusive quando você perguntou que muitas vezes hoje tem certo pessimismo, eu acho que esse pessimismo tem fundo no pragmatismo, mas fundamentalmente no individualismo canibalesco. Esse pessimismo é porque as pessoas não compreendem que, no geral, nesses 24 anos de transição democrática, nos 20 anos da Constituinte, qual é a tendência geral do Brasil? A tendência geral do Brasil é de avanço. Veja os últimos dados sobre o avanço na área da educação, inclusive numa região das mais carentes que é o Nordeste; a geração de emprego; as relações soberanas interdependentes que o Brasil tem com o mundo; as questões discutidas hoje dos direitos às terras indígenas que foi uma polêmica na Constituinte. Esse debate que hoje se faz sobre a Raposa Serra do Sol foi um debate radicalizado ao conceituar terras indígenas.
E tem a questão dos quilombolas também...
A regulamentação da terra dos quilombolas foi objeto de uma intensa disputa na Constituinte, porque a Constituição de 88 desinterditou temas que estavam no mofo do conservadorismo brasileiro.
Deputado Genoino, aí vem uma questão que a gente acompanhou na formulação desta Constituição que foi o embate entre Executivo e Legislativo. Várias vezes o Executivo de certa forma tentava atropelar o trabalho da Constituinte. E eu lembro até um exemplo, assim, bastante clássico, que era o da aposentadoria rural que o sr. falou, antes era meio salário mínimo...
O Funrural...
Era meio salário mínimo...
Era meio salário mínimo... o chamado Funrural...
E a constituinte vai e coloca um salário mínimo...
É...
E o governo brigou, brigou, brigou para que esse salário mínimo não existisse porque ia falir a Previdência...
É verdade...
E no dia seguinte a aprovação saia: tudo pelo social, dizendo que aquilo era uma conquista do governo...
Veja bem, teve uma intensa disputa. E agora o que beneficiou a constituinte foi o fato de o presidente da Constituinte, o saudoso deputado Ulysses Guimarães, até por causa da disputa com o então presidente José Sarney, acabava se fortalecendo muito com o peso e a força do congresso constituinte. Por outro lado havia um movimento de que o governo da transição, o governo do presidente Sarney estava envelhecendo precocemente e, ao fazer um cavalo de batalha pelo mandato de cinco anos - e misturou essa questão dos cinco anos com o sistema de governo – acabou enfraquecendo o Executivo.
Aquela disputa sobre os cinco anos foi um elemento fundamental para tirar as amarras do Executivo na questão dos direitos, no artigo sobre alguns direitos básicos – na ordem econômica, na questão das terras indígenas, na questão, por exemplo, que depois foi regulamentada, a definição do Sistema Único de Saúde, o SUS, que depois teve a lei orgânica da saúde, teve a lei orgânica da assistência social, foram leis que consagraram os princípios fundamentais que estavam na Constituição. De certa maneira, o Executivo, querendo tutelar, não conseguiu tutelar o básico do texto constitucional. É claro que na organização dos poderes, teve uma disputa em torno da questão dos cinco anos que influenciou na adoção ou não do presidencialismo e do parlamentarismo. Houve um debate sobre a questão dos instrumentos do Executivo que era a definição de medidas provisórias. Houve um debate do papel do Congresso, as prerrogativas do Congresso na relação com o Executivo e com o Judiciário que tinha muito a marca e a influência do período da ditadura militar. Mas eu acho que a riqueza daquele processo é que ele saiu do controle das elites. Não foi uma ruptura, mas também não foi um pacto das elites negociado pelo alto.
Deputado Genoino, aí o sr. falou no sistema de saúde, e eu lembro que no início não se falava SUS – era Suds, que era o Sistema Único Descentralizado de Saúde. Nesse momento também se procurava colocar o poder na mão do cidadão que estava lá na ponta, não é isso?
Claro... E foi muito importante com a regulamentação do sistema único de saúde esta disputa que nós travamos para viabilizar o Sistema Único de Saúde. Foi uma disputa com os planos privados de saúde e com as empresas da medicina privada. Foi uma disputa radical aqui. Como teve uma disputa radical na Constituinte em torno dos que defendiam o ensino público e dos que defendiam verbas para as escolas privadas, as chamadas mantenedoras, que existem até hoje. Foi uma disputa radical. Foi uma disputa radical o artigo da Constituição, do capítulo sobre a comunicação, quando a Constituição definiu que o sistema de comunicação brasileira tem um tripé: é público, estatal e privado. Havia uma disputa para ser só privado. É claro que nós perdemos na definição do Conselho de Comunicação Social. E aí nós temos que sempre fazer uma homenagem à deputada Cristina Tavares, que foi a relatora desse tema, foi derrotada, mas nós acabamos. Tivemos uma disputa na questão da anistia. E foi uma disputa violenta. Com pressão militar, com divisão do plenário, com tapas. Teve tapas na questão da anistia. Mas veja bem, ao se definir os princípios gerais da anistia na Constituição, a legislação subseqüente, principalmente no governo Fernando Henrique Cardoso com as indenizações, e agora, com a continuidade do governo Lula, nós estamos avançando no princípio geral da anistia. Nós queríamos aquilo em 88, que foi conquistado, que era o reconhecimento dos desaparecidos políticos, o direito à indenização, o acesso aos arquivos, que está se conseguindo processualmente. A sociedade brasileira precisa entender melhor o que representou estes 20 anos.
Nos não estamos fazendo uma lembrança burocrática e de um santuário da Constituinte. Nós estamos fazendo uma lembrança de algo que mudou a vida das pessoas. Precisa mudar mais ainda, mas a Constituição é o parâmetro dessa mudança.
Deputado Genoino, o sr. está falando da Constituição, não como uma coisa dada e encerrada, mas como um processo. E nesse processo, a gente percebe que ainda existem disputas - como no caso da comunicação – quer dizer, para se manter esses cinco anos e esse presidencialismo houve uma troca de favores do Executivo, distribuindo emissoras. De repente os parlamentares, que estavam envolvidos no processo da definição dos próprios parâmetros da Constituição sobre comunicação, passaram de observadores para proprietários de emissoras.
Foi o maior processo de concessão de rádio e televisão que existiu até então na história do Brasil. Como não existia emenda orçamentária, nem o Congresso tinha poder para elaborar o orçamento – que foi uma conquista importante da Constituinte – foi a maior farra que já existiu na história do Brasil, de concessão de rádio e televisão, com conseqüências até hoje dentro do Congresso Nacional.
E o livre acesso à informação nesse caso foi importante porque não havia informação. Eu me lembro da oposição reclamando, pedindo ao Ministério das Comunicações que informasse quem estava recebendo, o que foi negado constantemente e não houve acesso a esse tipo de informação.
Tanto o acesso à informação desse tipo, como o acesso à informação do período da ditadura militar, o acesso à informação de processos, de arquivos - e nesse sentido a Constituição foi um avanço - não só pelo habeas data, como também pelo direito à informação, pelo direito a requerimentos de informação, com um ritual mais democrático, como existia no Constituição de 67 e na Emenda Constitucional de 68.
Deputado Genoino, eu me lembro, essa situação da comunicação chegou a um ponto de radicalização que o Deputado Artur da Távola, que na época era constituinte, chegou a apresentar dois relatórios – um que representava bem o interesse de quem era dono de emissoras e outro que representava um avanço, onde se tinha a produção regional, se falava no Conselho de Comunicação Social. Essa disputa se radicalizou a ponto de não ter um relatório único.
Exatamente. Foi a única comissão temática que não produziu relatório único. Quase não produziu a Comissão de Reforma Agrária, mas a Comissão de Reforma Agrária acabou produzindo, porque teve um embate físico de plenário, com quebra de fios, microfones etc. O deputado Osvaldinho era relator desse tema e houve uma derrota do relatório dele. O relatório do Osvaldo, de Pernambuco, do MDB, foi derrotado. No caso da comunicação... Os outros relatórios, nenhum foi derrotado.
Era Oswaldo Coelho?
Osvaldo Coelho. O relatório da comissão não chegou a aprovar. Até porque nós não tínhamos força pra aprovar o relatório das correntes progressistas encabeçado pela Deputada Cristina Tavares, nós fomos para uma guerra de obstrução para não ter relatório nenhum e, depois na Comissão de Sistematização, nós acabamos negociando o capítulo das comunicações que nem era o que as forças progressistas queriam, nem era o que os donos dos meios privados de comunicação queriam.
De qualquer forma sobrevive na Constituição uma coisa muito estranha, no capítulo das comunicações, que depois de uma decisão judicial de cassar uma concessão, por exemplo, por abuso, essa decisão judicial ainda tem que ser submetida à Câmara?
Submetida à Câmara e ao Senado com um quórum elevadíssimo.
Quase de PEC...
Quase de PEC. 2/3, é quase 3/5. Mas é um quórum de PEC. Além do mais, nesse capítulo, quando a gente começou a enfrentar, já em 90, em 91, o reflexo da renovação tecnológica e científica, que veio a questão da comunicação virtual, que veio a TV a cabo, nós não tínhamos uma legislação à altura de regulamentar democraticamente esse setor.
Até hoje nós temos problemas sérios, está aí o projeto 29, que regulamenta a convergência digital. O processo de análise das concessões ainda é muito antigo aqui no Congresso Nacional. O sistema de prestação de contas ainda é muito pouco democrático e nós temos o monopólio dos meios de comunicação e, é importante colocar isso, até porque o sistema privado de comunicação se coloca como uma espécie de tutor e julgador das pessoas, é um sistema de monopólio familiar, porque você tem cinco famílias que monopolizam as cadeias, as redes e os principais jornais do país
Genoino, eu acho até que o PT deve ter pagado um preço bastante alto, porque eu imagino o seguinte: enfrentar esses setores da comunicação para criar uma comunicação mais democrática, eu imagino que o PT até hoje paga, de certa forma, pela difamação que houve da legenda, nesse caso, como partido de radicais...
O PT paga um preço muito caro. Em primeiro lugar, porque o PT veio para o processo de transição democrática como uma corrente política de fora para dentro. Nós não nascemos dentro do sistema. O MDB veio de dentro porque era um partido consentido, na época, pela ditadura militar e acabou tendo um papel fundamental. Outras correntes que racharam com a antiga Arena vieram de dentro do sistema. Como o PT veio de fora e com uma plataforma radical, no bom sentido, ele foi discriminado. Por exemplo, quem não se lembra das manipulações da primeira campanha, quando o Lula foi candidato a presidente, após a Constituinte de 89? Foi o primeiro tranco que recebemos, em 89.
O processo das campanhas sucessivas e das campanhas do PT, e a má-vontade e o partidarismo com que a grande mídia trata o governo Lula é resquício de uma visão que tem preconceito, que tem má-vontade e também uma questão que envolve que tem falhas e erros do PT.
Veja bem, você olha a manchete dos jornais, vamos pegar o último fato, que foi o a avaliação da educação. O sistema fundamental de educação melhorou sensivelmente no Brasil. Qual é a manchete? Melhora do sistema do ensino fundamental, e piora do sistema do ensino médio. E sempre assim. O Brasil cresce 5,8%, mas aumenta os gastos públicos. O Brasil cresce 5,8%, mas diminui o ritmo do crescimento econômico. Sempre tem uma ressalva. Por quê? Isso não é uma questão apenas de caráter. É uma posição política. E eu acho que está claro hoje para democracia, eu acho que o grande desafio dela é democratizar os meios de comunicação, que o sistema midiático, que não era tão claro na Constituinte, porque na Constituinte ele era um poder. Hoje, além de um poder, ele unifica grandes interesses econômicos. O sistema privado de comunicações tem vínculos com grandes interesses econômicos. Teve participação no processo de privatização, virou acionista de empresas de privatizações e no Brasil é um sistema de rede - diferentemente dos EUA - que era o que nós queríamos colocar na Constituição. Nós queríamos colocar na Constituição, e a deputada Cristina Tavares foi chamada, pelo Centrão de sectária, de louca, porque ela queria usar o mesmo critério americano: quem tem rádio não tem televisão, quem tem televisão não tem jornal, que é o que existe nos EUA. E ela foi taxada de sectária e louca na comissão temática dos meios de comunicação.
Quer dizer, a imitação dos EUA é seletiva?
É seletiva. A gente imita no que interessa ao grande capital. No que interessa ao povo a gente critica e chama quem quer fazer isso de sectário.
Está ótimo Deputado Genoino. Muito obrigado. E eu queria perguntar mais uma coisa. Sobre essa Constituição tal qual como ela é hoje, ela já parou ou vai continuar avançando?
Eu acho que a tendência é continuar avançando. O processo constitucional brasileiro tem pilares. Eu acho que nós incluímos, por exemplo, pela primeira vez o pilar da clausula pétrea. Nós não podemos mexer nos direitos individuais, na democracia, na separação do poderes, na federação e naquilo que é fundamental do Estado democrático. E no meu modo de ver, tem princípios fundamentais dos direitos sociais e das políticas públicas que são uma base. E o principio democrático de que todo poder emana do povo e será exercido diretamente ou por meio de seus representantes. A Constituição deve ir melhorando, mas não nessa corrida, nessa fúria legislativa de fazer emendas, emendas, emendas. Eu acho que tem que ter o meio termo. O Brasil tem que ter noção do que é possível mediar. A Constituição de 88, ela tem que ser fortalecida e não mudada. As mudanças têm que ser pontuais.
Está ótimo. Mais alguma coisa, assim, mais uma lembrança?
Não. Eu agradeço muito. Eu acho importante esse processo que o Congresso viveu. O Congresso Nacional, nunca tinha vivido um processo democrático como o que foi. A gente trabalhava aqui de segunda a segunda. Ficava permanentemente aqui no Congresso Nacional. Foi uma época intensa. O Congresso Nacional era um centro de poder, até porque ele enfrentava bem o Executivo, ele era o foco do poder. As manifestações eram no Congresso, os lobbies eram no Congresso. A mídia tinha que cobrir o Congresso. Porque ele era o foco do poder. Acho que isso é muito importante para a gente apostar no aperfeiçoamento da democracia. Eu acho que nós temos um grande desafio que é realizar uma reforma política democrática com base nos princípios da Constituição.
Genoino, na medida em que a Constituinte trouxe esses movimentos sociais aqui para dentro - porque a Câmara, o Senado, os poderes de um modo geral, eram muito fechados aos movimentos populares - houve até um estranhamento, um índio aqui dentro, movimentos de pessoas carentes...
Aliás, veja bem como é a contradição. Existe um ditado que diz: a madeira que bate no Chico é a mesma que bate no Francisco. A semana passada, o pessoal do PSDB e dos democratas fez uma questão de ordem, criticando o Presidente da Câmara porque tirou os delegados que encheram o salão verde do Congresso. O Presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, usou um decreto, um ato da mesa de 88, que foi uma exigência do Centrão para tirar do salão verde os sindicalistas, os índios e aquelas manifestações populares. E eles agora, com base nesse ato, tiraram os delegados de polícia. E o pessoal que defendia na época o Centrão propuseram ao Presidente da Constituinte, o Deputado Ulysses Guimarães, que baixasse um ato proibindo esse tipo de manifestação. Teve até um deputado, coerente, que dizia: como? Esse pessoal de sandália havaiana, roupa rasgada, mal vestido, fedorento, andando aqui pelo salão verde no Congresso Nacional? Isso existiu.
Genoino, e você? O ex-guerrilheiro... Como era conviver com essas pessoas, que no final das contas, nesse período, você pagou um preço, que não foi baixo, não foi pequeno e essas pessoas, que de certa forma, assim, aproveitaram a maré e estavam ali com você, ainda jogando essa pecha: olha ele é um radical porque é um ex-guerrilheiro?
Olha, eu entrei na Constituinte como um esquerdista e saí da Constituição de 88 como uma esquerda democrática e socialista. Por isso que o primeiro ato que eu pratiquei na Constituinte foi questionar a presidência da Constituinte, na solenidade, ao Ministro do Supremo Tribunal Federal Moreira Alves. Foi sem microfone, sem nada. E defendi inclusive um artigo do regimento interno da Constituinte, que era que o Congresso Constituinte era soberano e originário. Houve até um debate teórico sobre isso. E eu acho que foi uma grande escola política em que a gente mudou, sem mudar de lado, na vivência do processo constituinte.
Ou seja, tolerância mútua...
Tolerância mútua, pluralidade, saber qual era nosso limite de avançar e como a gente poderia garantir o essencial, fazendo avanços. Por exemplo, quando a gente perdeu o texto progressista para o Centrão, se a gente tivesse abaixado a cabeça, a gente ia perder tudo. Ai a gente começou colocar, no texto do Centrão, que virou base para a Constituição, aquilo que era fundamental do texto derrotado da comissão de sistematização.
Genoino, mas também, internamente no PT, na medida em que você negociava com o Roberto Cardoso Alves, José Lourenço, não ficavam desconfiados de você?
Olha, a negociação era intensa. O que, vamos dizer assim, nos defendeu bastante é que o Lula era o líder da bancada e, como líder da bancada, ele, pela liderança que tinha no PT, comandava todas aquelas negociações e a gente fazia aquelas negociações com o aval do Lula. Portanto, não teve grandes preconceitos, nem grandes restrições. Por outro lado, eu acho que isso é importante se destacar no processo constituinte, o PT entrou no Congresso Constituinte com um projeto de Constituição que não dava para viabilizar, a gente queria marcar posição. O PT entendeu que não adianta só marcar posição, nós apresentamos várias emendas que foram aprovadas. O PT assinou a Constituição de 88. Porque existe uma discussão dizendo que o PT não assinou. Isso não é verdade. O PT assinou a Constituição de 88. Eu tenho até hoje a caneta que assinei a Constituição de 88. O PT fez ressalvas no voto da bancada a alguns dispositivos, como o dispositivo da reforma agrária, como o dispositivo das Forças Armadas, como o dispositivo da organização dos Poderes. Foram ressalvas no voto, não de não assinar a Constituição. Nós assinamos a Constituição e eu faço questão de repetir isso, até porque se as pessoas tiverem dúvidas é só consultar as atas da Constituição de 88. O PT assinou a Constituição.
Deputado José Genoino, muito obrigado.