Trajetória

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Atuação Parlamentar

O autoritarismo ilustrado

Nem tudo o que é legal é, necessariamente, democrático. A legalidade de determinados preceitos constitucionais pode estar em desacordo com os princípios da democracia política e com os ordenamentos do Estado de direito. A partir da Constituição de 1988, com a instituição da medida provisória e com o seu reiterado uso abusivo pelos sucessivos governos, criou-se no Brasil uma situação de anormalidade política: houve uma institucionalização do recurso ao arbítrio. O presidente Fernando Henrique Cardoso, que tem um histórico de luta contra o arbítrio do regime militar, ao invés de procurar se desfazer do entulho autoritário da medida provisória, adotou-a como principal instrumento de governo, como já haviam feito Collor e os outros presidentes pós-Constituinte.

O instituto da medida provisória foi abrigado na Constituição como prerrogativa do presidente para enfrentar casos “de relevância e urgência”. As MP têm similares em outras democracias, mas sempre entendidas e usadas como instrumentos normativos extraordinários para atender situações emergenciais. Não é prática comum em nenhuma democracia desenvolvida a transformação do decreto-lei, ou similares, em principal instrumento normativo de governo. Na medida em que o conceito de “relevância e urgência” não está regulamentado, o Governo brasileiro recorre às MP, editando-as ou reeditando-as de forma indiscriminada. O Plano Real, o Proer, as mensalidades escolares, o pacote do funcionalismo baixado na semana passada etc., foram estabelecidos por medidas provisórias. Não é nenhum exagero afirmar que o Brasil está sendo governado através de medidas provisórias. Neste sentido, pode-se dizer que a democracia não funciona na relação institucional entre Executivo e Legislativo. Tudo está na dependência da vontade de um soberano provisório, que é o Presidente da República.

A medida provisória permitiu que se estabelecesse um jogo promíscuo entre o Executivo e sua maioria parlamentar no Congresso. O governo edita e reedita as MP, e como não são votadas, não corre nenhum risco de ser derrotado. O Congresso, dirigido pela base parlamentar governista, ao não votar, não corre riscos de prestar contas à opinião pública ao não se expor pelas decisões. Com isso, o presidente tornou-se um imperador e o Congresso um ente morto. O jogo político democrático das relações Executivo/Legislativo e situação/oposição já não existe. Um pequeno grupo de técnicos e burocratas, especializado em redação de MP e respaldado pela caneta do presidente-imperador, substituiu todo o sistema político democrático fundado nos partidos e na representação popular. Dizer, hoje, que os interesses dos cidadãos podem estar representados no Congresso não passa de uma piada. O Congresso está sendo inteiramente desmoralizado pelo presidente da República e o grave em tudo isso é que aceita passivamente a desmoralização.

Excetuando-se as reformas constitucionais, a situação chegou a tal ponto que o Congresso, há um ano, só vota matérias consensuais, que na maioria das vezes se referem à liberação de créditos suplementares. Ou seja, o Congresso só vota o prosaico, o secundário, o que não tem relevância do ponto de vista dos interesses da sociedade. O que conta efetivamente em toda a legislação infraconstitucional é instituído pela via da medida provisória. O Congresso não chega a opinar sobre a admissibilidade das MP. O pressuposto da “relevância e urgência” não é sequer conhecido pelos parlamentares.

O abuso e o arbítrio do Executivo chegaram às raias da desmedida e por isso não podem ficar sem uma resposta daqueles que querem preservar o sistema democrático de decisões. Não é mais possível calar e aceitar a escalada interminável do autoritarismo ilustrado, que sob o manto de um discurso aparentemente democrático, lança mão despudoradamente do arbítrio para governar. O Congresso precisa restaurar sua dignidade e suas funções com a regulamentação imediata do uso da Medida Provisória. É preciso definir: a) o conceito de “relevância e urgência”; b) definir e/ou excluir as matérias que podem ser disciplinadas pelas MP; c) limitar as suas reedições e d) redefinir os prazos de sua apreciação pelo Congresso.

O protesto indignado que faço neste artigo conclama, principalmente, os parlamentares que ainda acreditam que o Parlamento é uma instituição imprescindível à democracia a tomar uma atitude. Se não somos cínicos, não podemos aceitar esse jogo de “faz-de-conta” em que se transformou o Congresso e a política brasileira. Temos uma responsabilidade perante os nossos eleitores e a sociedade, que precisa ser assumida. Ou cumprimos nossa responsabilidade, resgatando a função parlamentar, ou declaramos que o Congresso não tem nenhuma função relevante e repensamos nossas vidas.

O Estado de S.Paulo 

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