Trajetória

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Atuação Parlamentar

Onde está o casuísmo?

Nós, da oposição, que somos contrários à concessão do direito de reeleição ao Presidente Fernando Henrique Cardoso e aos demais governantes, temos insistido na tese de que esta concessão representa um casuísmo. Fernando Henrique, em contrapartida, afirma que a aprovação do princípio da reeleição só para os futuros governantes é que representa um casuísmo já que ele ficaria de fora desse direito. Estas interpretações frontalmente contrapostas exigem explicações para evitar que as afirmações não adquiram um caráter meramente propagandístico, visando convencer a opinião pública, sem a fundamentação em razões consistentes.

Do meu ponto de vista, existe um problema de interpretação da Constituição envolvido na concessão do direito à reeleição para Fernando Henrique. O §5º do art. 14 da Constituição determina a inelegibilidade para os mesmos cargos, no período subseqüente, do presidente da República, dos governadores de Estado e do Distrito Federal e dos prefeitos. Os atuais governantes foram eleitos sob a vigência desta norma e por isso os seus mandatos estão sujeitos a este comando constitucional. Ou seja, esses governantes não foram eleitos sob a presunção de que poderiam ter um mandato no período subseqüente. Conceder o direito de reeleição para os mandatários que foram eleitos sob essa restrição viola gravemente o pacto pressuposto e explícito na Constituição.

Aprovar a reeleição para os atuais governantes representa uma violação tão clara às regras do jogo comparável ao seguinte exemplo: as eleições municipais deste ano foram regidas por uma regra que determina o segundo turno nos municípios com mais de 200 mil habitantes, no caso do candidato mais votado não alcançar 50% mais um dos votos válidos no primeiro turno. Vamos supor que, findo o primeiro turno, os candidatos mais votados, mas que não obtiveram o percentual necessário, quisessem mudar a regra suprimindo o segundo turno. Isso representaria uma mudança inaceitável das regras do jogo político. Para uma futura eleição municipal, contudo, o segundo turno poderia ser suprimido sem significar um casuísmo. O mesmo raciocínio se aplica para o caso da reeleição. Ela não pode valer para os atuais governantes porque foram eleitos sob a vigência de uma regra que a proíbe, mas pode valer para os futuros governantes.

O presidente Fernando Henrique afirma também que não se deve “fulanizar” a reeleição. Ocorre que a motivação principal da disputa em torno da reeleição nasce precisamente do interesse particular do presidente e de sua aliança política em conquistar o direito a mais um mandato com as mesmas pessoas que ocupam atualmente os postos de governo. Na verdade, quem “fulaniza” ou pessoaliza a tentativa de institucionalização de um preceito que deve ser do interesse geral são os atuais ocupantes do Palácio do Planalto e seus liderados políticos. É nisto que reside, precisamente, o casuísmo. Assim como a vitória do presidencialismo representou o estancamento do processo de reforma política, agora, procura-se através da reeleição liquidar novamente estas reformas, já que o atual sistema favorece o bloco político que se agrega em torno dos interesses conservadores e das elites. Em outras palavras, o atual sistema político-partidário e de representação constrange a mediação democrática do jogo de interesses na arena do Estado.

Deve-se levar em conta também que a introdução da reeleição representa uma brutal mudança na nossa história política. Ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, onde o sistema presidencial nasceu com o instituto da reeleição, no Brasil, a República foi implantada com a clara vedação ao mandato subseqüente. No Brasil somos herdeiros de uma tradição de manipulação patriarcalista, patrimonialista e neopatrimonialista do Estado, que nasce no Império, passa pela República Velha e chega à República Nova. O uso particularista do Estado, a longa história de coronelismo, a oligarquização e a concentração do poder – traços que fazem parte da nossa cultura política -, aliados ao uso eleitoreiro da máquina administrativa em nossos dias, refletem uma experiência que interpõe vários senões à adoção da reeleição.

No mínimo, a reeleição exige uma ampla discussão com toda a sociedade e não só entre os partidos. A sua adoção, mesmo que apenas para os governantes futuros, requer o seu cercamento de várias garantias legais para que ela não se torne um mero processo de perpetuação dos mesmos grupos no poder através da manipulação das instituições públicas e de formas sofisticadas de corrupção. A competição eleitoral e a alternância no poder, fundamentos da democracia,  são remédios imprescindíveis para que nossa débil experiência democrática se tonifique e se renove.

Jornal da Tarde

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