Trajetória

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A CAPTURA DE JOSÉ GENOINO

Confira trecho do livro O Nome da Morte, de Klester Cavalcanti

A CAPTURA DE JOSÉ GENOINO
(O Nome da Morte – Klester Cavalcanti – Editora Planeta do Brasil – 2006  - pag,. 67 às 107)

As ruas de terra de Xambioá ainda estavam vazias e silenciosas quando Júlio e Cícero saíram da pensão. Eram 5 horas da manhã da terça-feira 28 de março. Um jipe do exército os esperava à porta da casa. Um rapaz com uma farda verde-oliva estava ao volante. O delegado Carlos Marra, no assento ao lado do motorista. Seguiram para o Rio Araguaia, onde estava parada uma voadeira capaz de acomodar doze homens. Além do barqueiro – um morador da região, dono do barco -, entraram na voadeira Júlio, Marra e mais três homens. Dois deles, Júlio avaliou, eram tão jovens quanto ele ou apenas alguns anos mais velhos. Nenhum usava fardamento militar. O que era uma pena. Ele adoraria vestir aquela roupa verde, elegante, com camisa de manga longa e boina de aba de linhas retas. No caminho da pensão até a beira do rio, não tirou os olhos do coturno preto do motorista. Queria muito calçar botas como aquelas. O único par de sapatos que tinha – um tênis Conga, azul-marinho, que ganhara ao completar 16 anos – ainda estava praticamente novo. Só calçava para ir à missa, aos domingos. Certamente, Ritinha e Don Marina ficariam orgulhosos de vê-lo usando botas como aquelas.

Quando a voadeira deu partida, as primeiras luzes do dia já iluminavam as águas barrentas do Araguaia. O destino seria para a primeira operação nas selvas do Araguaia. Carlos Marra levou o rapaz até a pensão e disse com aquela voz serena: “Meu filho, você ajudou bastante, viu? Se precisar de alguma coisa é só me chamar”. Só mais tarde, Júlio notou que não saberia como chamar o delegado, caso precisasse.  Na pensão foi recebido pela dona do lugar, uma mulher magra, de cerca de 1,60 metro de altura, nariz longo e afilado e cabelos crespos, de quem ele nunca procurou saber o nome.

- Você é o sobrinho do soldado de Imperatriz, não é? – ela disse, referindo-se ao policial militar Cícero.

- Sou, sim senhora. Por quê?

- Seu tio mandou dizer que voltou para Imperatriz, mas que estará aqui no sábado.

- E onde vou ficar? – perguntou o rapaz, com o olhar assustado e perdido.

- Aqui mesmo. Seu tio deixou cinco diárias pagas para você.

- E depois desses cinco dias?

- Ele disse que você está trabalhando para os militares e que terá dinheiro para pagar do seu próprio bolso.

O garoto de 17 anos ficou desorientado. Nunca precisara pagar do próprio bolso nada. Na verdade, nunca tivera dinheiro algum. Sentiu medo de ficar sozinho no meio daquela confusão que era a cidade grande. Pegou a chave o quarto e caminhou até os fundos da casa, onde um cubículo de 4 metros quadrados, com paredes de madeira e piso de terra batida, lhe serviria de dormitório pelos próximos dias. O pior de tudo era ter de dormir na cama. Por várias vezes pensou em pedir uma rede à dona da pensão, mas o olhar fechado da mulher o intimidava e ele acabava sem falar nada. Estava tão assustado por ter de passar aquela noite em Xambioá, sem o tio por perto, que não saiu da pensão nem para comer. Adormeceu chorando, encolhido na cama e com a barriga reclamando da fome.

No dia seguinte, acordou por volta das sete da manhã. Sentia muita fome, mas continuava sem coragem de sair do quarto. Não conhecia ninguém por ali. Desejou fortemente que o tio Cícero estivesse por perto. Num certo momento, abriu a porta, não mais que um palmo, e olhou para fora. Viu um homem caminhando em direção à entrada da pensão e pensou em fazer o mesmo, para falar com a dona do lugar. Mas não teve coragem. Voltou a deitar-se na cama. Voltou a chorar. Daria tudo para estar em sua casa, na placidez da selva amazônica, às margens do Rio Tocantins. Aquele, sim, era o seu lugar. Ainda chorava quando ouviu três ou quatro pancadas na porta de madeira. A voz que veio de fora era estridente.

- Acorda menino! Acorda! – era a dona da pensão.

- Já estou acordado. – Júlio respondeu, depois de alguns segundos sem saber o que dizer.

- Já é quase meio-dia. Você não sai daí desde ontem. O delegado deixou um dinheiro para você aqui.

Ele animou-se. Com dinheiro, poderia sair para comer alguma coisa e acabar com aquela fome desgraçada. Abriu a porta recebeu 140 cruzeiros, em cédulas amarradas com uma fita vermelha de náilon. Era o pagamento pelos sete dias de trabalho nas matas do Araguaia. Agradeceu à dona da pensão, que lhe pareceu bem mais simpática do que no dia anterior.

- Quando a senhora acha que preciso levar para comer? – perguntou.

- Você fala de dinheiro? Quanto dinheiro você vai gastar para comer?

- Sim senhora. Quanto?

- Meu filho, com 10 cruzeiros, você come até não agüentar mais. – a mulher respondeu.

Júlio tirou 10 cruzeiros do maço e colocou no bolso da calça. Enrolou o restante do dinheiro num pedaço de papel que pegou no assoalho do quarto, fez um pacote e meteu na cueca. Nada o faria se separar daquele embrulho. Vestiu a camisa e saiu da pensão. Caminhando na rua, viu algo de que jamais esqueceria. Parecia um enorme monstro de ferro, com formato de uma libélula. O mais incrível era que não tinha asas. “Como essa trepeça pode voar?”, pensou. Ele já tinha visto aviões rasgando os céus da floresta. E, definitivamente, aquilo não era um avião. Segui o monstro com os olhos até ele desaparecer no horizonte. Num bar a cerca de 200 metros da pensão, almoçou um arroz gosmento com feijão e galinha assada. O arroz de dona Marina era infinitamente mais saboroso. Para acompanhar a comida, tomou duas garrafas de Coca-Cola. Durante a refeição, não conseguiu parar para pensar no estranho objeto que acabara de ver voando sobre Xambioá. Estava pagando os 4 cruzeiros que custou o almoço – ele achou até barato – quando foi abordado por um rapaz vestido com a farda do Exército.

- Você é o sobrinho do soldado Cícero?

- Sim. – respondeu Júlio, feliz por falar com alguém que sabia quem ele era.

- O delegado Marra está lhe esperando, na delegacia. Vamos lá?

- O rapaz passou o resto da tarde acompanhando Marra pela cidade. Soube que toda aquela tropa de militares que infestavam Xambioá pertencia às três Forças Armadas: Exército, Marinha e Aeronáutica. Tudo para combater os comunistas. Conheceu as bases militares improvisadas na cidade. O campo de futebol fora transformado em pista de pouso e tinha uma grande cabana, capaz de abrigar até 30 homens e que funcionava como ambulatório e dormitório para alguns recrutas. Nesse local, aprendeu que o tal monstro voador tinha o complicado nome de helicóptero. “Um dia, você ainda vai voar num bicho desses, Julão”, disse o delegado. O garoto achou a idéia bastante interessante, mas não sabia se teria coragem de entrar naquele troço.

Nos cinco dias que se seguiram, a rotina do rapaz não foi muito diferente. Passava a maior parte do tempo andando pela cidade, quase sempre sozinho. Ainda não havia se acostumado com a intensa movimentação de jipes e caminhões militares. Diariamente, fazia uma visita de 10 ou 15 minutos ao delegado Marra, na delegacia, para saber se já tinha sido definido o dia da próxima incursão do grupo às selvas do Araguaia. Num final de tarde, estava próximo à pista de pouso, vendo a aterrissagem de um helicóptero. Não conseguia entender como aquela coisa podia flutuar com tanta elegância sem possuir asas. Aproximou-se para ver de perto, pela primeira vez, o pouso. O helicóptero estava a uns 10 metros do chão de terra quando suas hélices fizeram subir uma densa cortina de poeira avermelhada. Júlio apertou os olhos com agonia e abanou a poeira com as mãos. Tossia nervosamente. Aquele gosto de terra em sua boca era algo novo para ele. Ficou salivando e cuspindo com agonia, até pouco antes de chegar à pensão, cerca de 20 minutos depois.

No trajeto da base militar à hospedaria, havia parado numa padaria e comprado quatro pães franceses, 200 gramas de queijo e duas garrafa de Coca-Cola. Toda noite, era esse o seu jantar.

Beber duas coca-colas era um luxo que ele jamais tivera em Porto Franco. Seus pais – Jorge e Marina – sempre lhe diziam que havia coisas mais importantes para se comprar, como feijão, sal, açúcar e óleo. “Coca-Cola é coisa de gente rica”, repetia seu Jorge. Agora, graças ao trabalho que fazia para o Exército, podia beber quantas cocas quisesse. Sentia-se rico. Mas continuava triste. Não passava uma noite sequer sem pensar em Ritinha. Daria tudo para ver a namorada ou, ao menos, falar com ela. A boca carnuda, os seios firmes, a pele lisinha e a bunda torneada da menina não saiam da sua cabeça. Acreditava, com firmeza, que Ritinha também sentia saudade dele. E todo aquele sofrimento tinha uma razão. Depois do trabalho no Araguaia, voltaria para a região onde nascera, com dinheiro suficiente para se casar com Ritinha.

Na manhã seguinte, acordou com pancadas que pareciam querer derrubar a porta de madeira do seu quarto. Reconheceu a voz do delegado Carlos Marra.

- Vamos, Julão! Levanta, rapaz! Já são 6 horas! – gritava o delegado.

- Já vai. – respondeu o rapaz, saltando da cama e sem entender o que Marra fazia na pensão, tão cedo.

Era o dia 11 de abril de 1972, uma terça-feira. Exatamente uma semana mais tarde, Júlio Santana iria protagonizar um episódio que entraria para a História do Brasil: a captura do guerrilheiro José Genoino Neto, que, dez anos depois, seria eleito deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, por São Paulo, e se tornaria um dos políticos mais influentes e respeitados do país.

Acordado pelo chamado do delegado, o garoto pegou um saco plástico com uma muda de roupa – uma calça e uma camisa – e saiu do quarto comendo metade de um pão que sobrara da noite anterior. Na rua, um jipe o esperava com o motor ligado. Não gostou da expressão que leu nos olhos do delegado. Ainda se ajeitava no banco traseiro quando Marra falou:

- Julão, se você quer mesmo fazer esse trabalho com a gente, tem que ser mais responsável.

- Não estou entendendo, delegado. – ele respondeu, esfregando os olhos de sono e com o carro já em movimento.

- Eu falei que você tinha que estar pronto às 5h30. Chegamos na pensão às 6h e você ainda estava dormindo. Assim não dá.

- Mas o senhor não me disse nada, delegado.

- Eu mandei o soldado Santos lhe avisar.

- Então vá brigar com ele. Porque ninguém me deu recado nenhum, não, senhor. Não sei nem quem é esse soldado Santos.

Após a explicação do rapaz, Marra ordenou ao motorista do jipe que seguisse para a delegacia. Chegando lá, desceu do carro e falou para Júlio fazer o mesmo. Entraram no local. O soldado Santos, certo de que o delegado já tinha ido para a mata, estava sentado, com os pés sobre a mesa de madeira. Ao ver Marra entrar, Santos deu um pula da cadeira e bateu continência.

- Que zona é essa, soldado? Está pensando que está em casa? – reclamou Carlos Marra.

 O soldado nada falou. Apenas baixou a cabeça. O delegado prosseguiu.

- O que eu mandei você fazer ontem à noite?

- Para eu ir até a pensão, deixar um recado para o sobrinho de Cícero. – respondeu o soldado, que continuava olhando para o chão.

- Pois é. Acabo de sair da pensão e já sei que você nem apareceu lá. O menino nem sabia que deveria estar pronto às 5h30. Agora, me diga. O que eu devo fazer com você? – mesmo claramente irritado, Marra continuava falando com a voz tranqüila que lhe era peculiar.

- Não sei, senhor.

- Mas eu sei. Vai ficar preso até eu voltar da mata. Depois vai sumir daqui. Não quero mais ver a sua cara em Xambioá.

- Mas, delegado, eu...

- Nem mais nem menos, seu moleque. E se falar mais besteira vai ser pior para você.

Apesar da postura sempre austera de Carlos Marra, Júlio não imaginava que ele poderia ser tão duro e até mesmo cruel. Colocar o soldado Santos na cadeia e, depois mandá-lo embora de Xambioá, só porque tinha esquecido de dar um recado, lhe pareceu uma punição pesada demais. Mas não estava ali para contestar as decisões de Marra. Outro assunto, porém, o deixara intrigado.    

- Delegado, porque o soldado Santos bateu continência para o senhor? Esse negócio de bater continência não é só para militares? – ele perguntou.

- É, sim, Julão. – respondeu Marra, sorrindo. – É que eu também sou militar. Eu sou sargento do Exército.

- Sério? E por que o senhor não usa farda?

- Porque eu não gosto e, para o trabalho que faço em Xambioá, não é necessário. E nessa nossa operação na selva, usar farda pode assustar os moradores da região. Por isso prefiro ficar à paisana mesmo.

- Interessante. Pois eu daria tudo para poder usar uma roupa dessas de militar.

- É? Quando você for embora de Xambioá, eu lhe dou uma.

- O senhor está falando sério – falou o rapaz, inclinando-se para frente no banco traseiro do carro e aproximando o rosto do ombro esquerdo de Marra.

- Claro. Pode me cobrar.

Chegaram às margens do Araguaia. À espera deles, o mesmo barqueiro de uma semana atrás, sentado na mesma voadeira. E quatro homens. Os três que tinham participado da primeira missão – Ricardo, Emanuel e Flores – e mais um, cujos cabelos grisalhos e rugas ao redor dos olhos levaram Júlio a avaliar que tivesse entre 30 e 40 anos. “Julão, esse é o Tonho”, disse Ricardo. Os dois se cumprimentaram acenando com a cabeça. No percurso até a região do Rio Gameleira, o grupo conversava sobre mulheres, futebol e comunistas. Tonho não falava. Ria bastante e demonstrava interesse pelos assuntos em discussão, mas não emitia opinião alguma. Era um negro musculoso, quase careca, de olhos esbugalhados, nariz largo e cujos braços chamaram a atenção de Júlio. ”O braço desse cabra dá duas vezes o meu”, ele comentou com o delegado. O silêncio de Tonho deixou o rapaz tão intrigado que ele chegou a perguntar a Ricardo se o novo integrante da equipe era mudo. “Não. Ele fala. Depois, você, você vai saber porque ele é tão calado”, respondeu Ricardo, e soltou uma gargalhada.

Na voadeira, havia um grande saco de estopa com os mantimentos: 5 quilos de carne seca, duas latas de salsicha, uma barra de um quilo de rapadura, 1 quilo de farinha de mandioca, 2 de arroz e 1 de sal grosso. Pelos planos do delegado Carlos Marra, aquela missão terminaria em 17 de abril. Seriam seis dias de caçada aos comunistas. Além dos alimentos e das armas, levavam também diversos medicamentos e meia dúzia de camisas do Exército, todas de manga longa. Os remédios seriam usados para convencer os moradores da região a passar informações a respeito da localização dos guerrilheiros. Na primeira noite da operação, Júlio descobriu a razão do silencio de Tonho. Após montarem a barraca na qual iriam dormir, todos foram tomar banho no rio, exceto Tonho, que preparava o jantar: arroz com carne seca. Com vergonha de ser visto sem roupa, Júlio era sempre o primeiro a entrar na água e o último a sair.  Quando o grupo começou a comer, Tonho foi tomar banho. O garoto se preparava para sair do rio de águas mornas. Tonho estava a poucos metros de Júlio quando o delegado gritou, do meio do mato, a uns 30 metros de distância.

- Tonho, traz o meu relógio que eu esqueci aí. – disse Marra.

- Onde está delegado? – perguntou Tonho com uma voz fina e arranhada.

- Está perto de uma pedra grande, à esquerda da trilha.

- Está bem. Depois do banho, eu levo para o senhor.

Além da voz estridente, Tonho tinha outro problema: era fanho. Júlio sentiu vontade de rir. Mas não queria constranger o colega. Nunca tinha ouvido um homem com uma fala tão esquisita e engraçada. Ainda mais um sujeito do tamanho e do porte de Tonho. O “b” que saia da boca dele tinha um som muito próximo do “m”. “Parece um pato falando”, diria Júlio, mais tarde, a Ricardo. Mordendo os lábios para disfarçar a vontade de rir, o rapaz saiu da água, vestiu a calça atabalhoadamente e correu em direção ao acampamento, sem sequer olha para Tonho. Na barraca, pegou a camisa que acabara de lavar e meteu-a na boca. Assim, poderia rir à vontade sem chamar a atenção do grupo. Riu tanto que lágrimas desceram dos seus olhos. Forel, que jantava com os outros no lado de fora, ouviu um som estranho vindo da barraca e foi olhar. Achou que o garoto estivesse chorando. “O que foi, menino? Está chorando por quê?”, ele perguntou. Foi o bastante para que Júlio não agüentasse mais. Tirou a camisa da boca e riu como poucas vezes rira na vida. Encolheu-se no chão, em posição fetal, com as mãos na barriga. “Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!”, o garoto dizia quase sem fôlego, nos intervalos entre uma gargalhada e outra.

- O que é isso aí dentro, Forel? – quis saber o delegado.

- Nada não, senhor. Pelo jeito, o menino ouviu Tonho falando. O coitado está se acabando de rir aqui. – respondeu ele. Deu um leve tapa na cabeça de Júlio e, antes de voltar para perto da fogueira, onde o grupo jantava, avisou:

- É bom você rir tudo o que tiver para rir agora. Porque se você fizer isso na frente de Tonho, ele acaba com a sua raça.

Nem o aviso ameaçado fez o rapaz se conter. Ele continuou rindo até perder as forças. A partir daquela noite, evitaria encarar Tonho. Não lhe dirigia a palavra por nada e se afastava sempre que o fanho ameaçava abrir a boca. Nos cinco dias que se seguiram, a rotina do grupo se manteve inalterada. Dias inteiros caminhando nas matas fechadas do Araguaia, debaixo de um calor insuportável e sob ataques constantes de insetos. Já tinham conversado com diversos moradores da região – a maioria lavradores – e até subornado alguns com remédios e roupas. Muitos prometeram ficar de olho nos comunistas para ajudar operações futuras. Mas, naquele momento, declaram nada saber.

No domingo 16 de abril, a comida tinha acabado. Os homens estavam exaustos. E desanimados ao ver que o trabalho não surtia efeito. Não tinham visto um guerrilheiro sequer. Júlio, que guiava a equipe pela selva, já começava a imaginar que aquela história de comunista não passava de conversa fiada. No final daquela tarde, seguindo ordens do delegado Marra, o rapaz guiou o grupo para a casa de Pedro Mineiro, lavrador e pequeno proprietário de terras da região, onde haviam estado dois dias antes. Mineiro era um dos que tinham se comprometido a ajudar o Exército na caçada aos guerrilheiros. No caminho até as terras do agricultor, Marra prendeu o pé esquerdo na raiz de uma árvore e passou a andar com dificuldade. Naquela noite, ele e seus homens iriam jantar e dormir na casa de Pedro Mineiro. Nascido em Minas Gerais, o agricultor morava na região do Rio Gameleira havia cerca de dez anos. Tinha 42 anos, quase 1,90 metro de altura, usava o cabelo loiro e fino penteado para trás e era esbelto. O queixo longo e pontiagudo dava a seu rosto um desenho triangular. Em suas terras, criava meia dúzia de vacas e alguns porcos e galinhas.

- Oi, Mineiro. – disse o delegado, ao aproximar-se da casa de madeira na qual o agricultor vivia com a mulher e dois filhos pequenos.

- Oi, delegado. Está querendo abrigo? – perguntou Mineiro, adivinhando a intenção de Marra.

- Isso mesmo. Daqui a pouco, a noite vai cair e estamos mortos de cansados e sem comida. Dá para você ajudar?

- Claro. O senhor sabe que pode contar sempre comigo.

- Obrigado, Mineiro.

- De nada. Depois, o senhor arruma mais uma roupa daquelas do Exército para mim? Aquilo é uma beleza para andar na mata.

- Claro, homem. Da próxima vez que eu aparecer por aqui, vou trazer duas calças e camisas para você.

Naquela noite, jantaram galinha guisada com batatas e arroz. Júlio comeu três pratos. Durante a refeição, Carlos Marra comentou que seus homens voltariam para Xambioá na manhã seguinte. Mas Pedro Mineiro falou algo que fez o delegado mudar de idéia.

- Acho que o senhor devia ficar por aqui mais uns dias. – disse Mineiro.

- Por que, homem? – perguntou Marra.

- Um compadre meu disse que viu uns guerrilheiros lá pelas bandas dos Caianos. – respondeu o lavrador, referindo-se a um pequeno povoado da região.

- Quando foi isso, Mineiro?

- Ainda ontem, delegado. É o que estou dizendo. Acho que se o senhor e seus homens procurarem direito na mata vão pegar esses safados.

- Se eu resolver ficar mais uns dias, você dá casa e comida para a gente? Depois eu lhe pago tudo.

- Claro, delegado. E nem precisa pagar nada. O senhor sabe que eu estou aqui para ajudar a expulsar esses comunistas.

Marra e seu grupo armaram suas redes no terraço da casa. Pouco antes de dormirem, o delegado lembrou que, caso encontrassem algum guerrilheiro na mata, não deveriam, em hipótese alguma, atirar para matar. O objetivo era capturar os comunistas para interrogatório. Só assim saberiam onde ficavam as bases de apoio do movimento e o Exército poderia, então, acabar de vez com a guerrilha. “Por isso, só atirem se tiverem segurança total de que não vão matar ninguém”, repreendeu o delegado.

Às 7 horas da manhã seguinte, Carlos Marra resolveu testar a pontaria de seus homens. Queria saber qual deles tinha o tiro mais preciso. Colocaram uma lata de óleo de cozinha a cerca de 20 metros de distância e começaram a atirar, um de cada vez. Quem errasse, estaria fora da disputa. Todos acertaram a lata, logo no primeiro disparo. Aumentaram a distância para 25 metros. Forel e Ricardo erraram. A disputa prosseguiu entre Júlio, Emanuel e Tonho. A 30 metros de distância da lata, Emanuel, o primeiro a atirar, errou. Júlio, de acordo com o sorteio que tinha sido feito, era o segundo. Depois de já ter contado inúmeras histórias de suas caçadas na selva, nas quais matava animais a mais de 50 metros de distância, ele não queria errar. Além disso, sentia-se na obrigação de provar ao delegado que o seu tio não tinha o havia indicado para aquele serviço à toa.

Apoiou o cabo de madeira da espingarda calibre 20 no ombro direito. Respirou fundo e prendeu a respiração. Puxou o gatilho e viu a lata ser arremessada para longe do tronco no qual estava apoiada. Respirou aliviado e orgulhoso. Tonho também acertou. E a lata foi colocada a 35 metros dos dois últimos atiradores. Júlio seria o primeiro. Até então tinha atirado de pé. Perguntou a Carlos Marra se poderia fazer o disparo agachado, com fazia em suas caçadas. “Meu filho, se você acertar o alvo, pode atirar até de cabeça para baixo”, respondeu o delegado levando o grupo às gargalhadas. O garoto colocou o joelho esquerdo no chão e apoiou o cotovelo na coxa direita. Fechou o olho esquerdo e mirou no centro da lata. Sem saber por que, lembrou do dia em que matou Amarelo, oito meses atrás.

Olhava para a lata, e via o corpo do pescador ensangüentado diante de si. A mata fechada que se espichava como uma muralha verde por trás da lata, remetia ao cenário no qual ele matara Amarelo. Precisava se acalmar. Sabia que, se atirasse naquele estado, não acertaria o alvo. Quanto mais tentava se tranqüilizar, mais tenso ficava. Já estava ajoelhado, mirando a lata, havia uns 2 ou 3 minutos quando ouviu: “Vixe Maria! O menino travou, disse Tonho, com aquela voz esganiçada e fanha, que fazia o “m” soar com um “b”. Júlio até que tentou, mas não se conteve. Largou a espingarda no chão e desabou a rir. Dois metros atrás do garoto, Tonho não gostou da cena. “Tá rindo de mim, é? Tá rindo de mim?, ele disse. Júlio não conseguia parar de rir. Deitado no chão de terra, apertava a barriga e se contorcia, às gargalhadas. Para irritação de Tonho, todos os outros homens do grupo também estavam sorrindo.

- Deixa esse abestalhado rindo aí, que eu vou atirar primeiro, - disse Tonho, se curvando para pegar a espingarda que Júlio largar no chão.

- Não. Eu atiro primeiro. – falou o rapaz, esticando o braço até alcançar o cabo da arma. Mas sem parar de rir.

- Júlio achava o jeito de falar de Tonho tão esquisito e engraçado que parou de pensar no dia em que cometera o primeiro homicídio da sua vida. Ainda sorrindo, mas de forma controlada, retomou a posição em que estava. Olhou fixamente para a lata e atirou. O tiro foi certeiro. Ouviu o delegado Marra, que estava alguns metros atrás dele, comentar com alguém. “Esse garoto é muito bom mesmo. Bem que Cícero me disse.” Ficou feliz com o elogio. Tonho, irritado com a risadagem dos amigos, pegou a arma rapidamente, mirou e atirou. A lata nem se moveu. “Só errei por causa desse moleque, que ficou enchendo o meu saco”, ele reclamou. “Isso é um...” Antes que Tonho xingasse o rapaz, o delegado interrompeu.

- Pessoal. Chega aqui. – disse Carlos Marra. – Quero que vocês prestem bastante atenção no que vou falar agora. Como já está provado que Julão tem a melhor pontaria do grupo, se a gente encontrar algum comunista e tiver de atirar, quem dará o primeiro disparo será o garoto.

- Mas, delegado... – resmungou Tonho.

- Nem mais nem meio mas, Tonho. É isso mesmo. E fim de papo. E ai daquele que me desobedecer. Julão atira primeiro. Se ele errar, cada um de vocês vai ter sua chance. E não quero ver ninguém reclamando nem de cara feia. A gente tem de trabalhar junto e ajudar um ao outro.

Júlio ouvia tudo olhando para o chão, orgulhoso.

Logo após a disputa de tiro ao alvo, Marra e seu grupo tomaram o café-da-manhã e deixaram a casa de Pedro Mineiro. Na saída, o delegado deu uma ordem para o lavrador: “Diga ao pessoal do Exército que eu preciso de um helicóptero amanhã, no início da tarde. Se eu não estiver aqui, na sua casa, eles devem procurar por mim e pelos meus homens pela mata”. Mineiro não perguntou nada, apenas disse que faria o que Marra acabara de lhe pedir. Júlio ouviu a conversa calado, mas quis saber para que o delegado queria o helicóptero.

- O meu pé está me matando, Julão. Não quero passar mais dois dias andando no mato, até chegar em Xambioá. De helicóptero, a gente volta para casa rapidinho e sem fazer nenhum esforço. – disse Marra.

- Se eu quiser, o senhor deixa voltar do jeito que a gente veio, andando e de barco?

– perguntou o rapaz, fazendo o delegado sorrir.

- Claro, rapaz. Você pode fazer o que quiser. Mas eu lhe garanto que viajar de helicóptero não tem perigo nenhum. Confie em mim.

- Sei não, delegado. Sei não.

- E tem mais... eu nem sei se esse helicóptero vai aparecer mesmo. Pode ser que Mineiro não consiga dar o recado aos homens e ainda pode acontecer de não ter nenhum helicóptero disponível.

- Deus queira.

Para o caso de precisarem dormir na selva – o que nenhum deles queria -, levavam as redes e uma grande panela de ferro cheia de arroz, farofa de ovo e pedaços de carne seca assada. Na mochila de Tonho, havia um pouco de café, um punhado de sal grosso, meia dúzia de limões e três latas de sardinha, que Pedro Mineiro havia dado ao grupo. O delegado ia montado num cavalo emprestado pelo agricultor. Júlio sabia que, com aquela barriga que não cabia nas calças, Carlos Marra não agüentaria passar o dia inteiro caminhando na mata fechada, como haviam combinado fazer. Por volta das 2 horas da tarde, encontraram pegadas frescas nas matas no entorno do Rio Gameleira. Pelo tamanho das marcas e o espaçamento entre uma pegada e outra, Júlio deduziu que tinham sido deixadas por um homem de cerca de 1,80 metro de altura. O fato de o indivíduo estar usando sapatos chamou a atenção do delegado. “O povo aqui da região costuma andar no mato descalço mesmo”, ele disse. Seguiram o rastro, que se afastava cada vez mais do Rio Gameleira. Em determinados pontos, a floresta densa e as folhas secas que forravam o chão dificultavam o trabalho do rapaz. Nessas circunstâncias, ele usava como referência para a perseguição galhos quebrados ou torcidos, indicadores de que alguém passara por ali. Logo mais à frente, voltava a identificar as pegadas do homem a quem queriam encontrar.

Eram cerca de 4 horas da tarde quando uma chuva fina começou a lavar a mata. Mais um problema. Em pouco tempo, a água apagaria as pegadas. Para não perder o rastro ou, ao menos, chegar o mais perto possível do suspeito, Júlio acelerou o ritmo da caminhada. Menos de meia hora depois, o delegado reclamou de cansaço.

- Ninguém consegue acompanhar essa correria, Julão. – Marra falou.

- Eu consigo, - respondeu Tonho.

Júlio estava tão concentrado na trilha que não achou graça na voz fanhosa e fina do colega.

- Delegado, posso dar uma sugestão? – perguntou o rapaz.

- Claro, Julão.

- O senhor fica com o grupo aqui e eu vou correr atrás dessas pegadas, para ver se encontro o sujeito. Depois, eu volto e a gente vai atrás dele. – Júlio falou, com tranqüilidade e segurança.

- Boa Julão. Gostei. Pode ir atrás do sujeito. Enquanto isso, nós vamos armar as redes e fazer o fogo para esquentar a comida. Não demore muito. Se você achar que o cabra está muito longe, volte para cá.

- Está bem, delegado. – disse Júlio, e começou a correr. Ainda ouviu Ricardo dizer: “Esse menino é o cão chupando manga”.

O rapaz corria como aprendera a fazer desde pequeno, nas selvas de Porto Franco. Olhava para a frente e mapeava a disposição das árvores nos dez metros seguintes. Logo depois, dirigia o olhar para o solo, à procura de pegadas e de raízes maiores que poderiam derrubá-lo. Tinha certeza absoluta de que o homem a quem estava seguindo não conseguia se mover na mesma velocidade que ele. Estava decidido a só voltar ao local onde o delegado Marra e os outros homens tinham ficado com a notícia de que encontrara o suspeito. A chuva continuava. Fina e impertinente. Quanto mais molhada a terra ficava, mais dificuldades ele tinha em identificar os vestígios da passagem do homem a quem perseguia. Já começava a escurecer quando notou uma clareira de cerca de 20 metros quadrados aberta no meio da selva, com um barraco feito de madeira -, voltou à caçada. Menos de 2 quilômetros depois, avistou uma vila com meia dúzia de casas de madeira. Na primeira, um senhor de cabelos e barba grisalhos acendia um cigarro de palha, debruçado na janela. A luz tímida do lampião pendurado no teto da sala não permitia ao rapaz ver nitidamente o rosto do homem. Antes mesmo de Júlio se dirigir a ele – como intentava fazer -, o velho falou, com voz grave:

- Sai da chuva, menino. Vai acabar pegando um resfriado.

- Não posso. Estou procurando um amigo meu. – ele respondeu, tirando a água da chuva dos olhos e sacudindo o cabelo molhado com as mãos.

- Você tem algum amigo por aqui?

- Ele não é daqui. A gente estava caçando e eu acabei me perdendo dele.

- Caçando? Como é que você estava caçando sem nenhuma arma, rapaz?

Só então, Júlio se deu conta de que, na pressa, tinha deixado a espingarda no local em que o delegado e os outros homens ficaram. Não sabia o que dizer. Olhou para o senhor diante de si, sem conseguir falar coisa alguma. Envergonhado, desviou o olhar para o chão.

- Meu jovem, você não precisa mentir para mim. – disse o velho, fazendo Júlio levantar a cabeça rápida e nervosamente.

- Como assim? – ele falou.

- Eu sei o que você quer saber. Você quer saber do seu amigo comunista, não é?

O rapaz ficou sem reação. Seu cérebro parecia ter travado.

- Faz uns 20 ou 30 minutos que um desses meninos comunistas passou por aqui, perguntando se alguém sabia onde estavam os paulistas dos Caianos.

Júlio já sabia que “paulistas” era a forma como os moradores do Araguaia se dirigiam aos guerrilheiros, devido ao fato de grande parte dele ser de São Paulo. Mas não fazia a menor idéia do que eram os tais “caianos”. E nem podia perguntar. Se o fizesse, revelaria ao velho que não fazia parte do movimento contra a Ditadura Militar.

- O senhor está certo. É isso mesmo. Desculpe por ter mentido. E o senhor sabe para onde o meu amigo foi? – o rapaz falou.

- Não, meu filho. Como ninguém soube dizer ao seu amigo onde os paulistas dos caianos estavam, ele entrou na mata de novo e foi embora.

- Em que direção ele foi? O senhor viu?

- Ele foi nessa direção que você veio. Se a floresta não fosse tão grande, acho até que vocês teriam se cruzado.

- Obrigado. O senhor ajudou muito. Só mais uma coisa.

- Pode falar.

- O senhor pode me arrumar um copo d’água?

Depois de matar a sede, Júlio retomou a trilha, correndo ainda mais apressadamente do que quando viera. Tinha receio de que o comunista chegasse ao local onde seus amigos estavam e os pegasse de surpresa. Ou de que o grupo capturasse o guerrilheiro sem ele estar por perto. Mesmo sob a luz pífia da noite, corria a selva sem dificuldades. Reconhecia cada metro do percurso que fizera. Sem parar nem para urinar, como seu corpo pedia insistentemente, chegou ao local onde Marra e os outros homens estavam. Diferentemente do que imaginara – e, estranhamente, até desejara – não tinha encontrado o comunista no caminho. Mas estava satisfeito. E orgulhoso. Trazia informações que, acreditava, seriam muito úteis ao delegado. Empolgado, contou toda a história ao grupo. Narrava tudo de pé, com movimentos largos de braços e mãos. Exaltou suas qualidades de mateiro, ao dizer que correu na selva como se fosse uma onça. E falou algo que deixou a equipe mais excitada do que já estava.

- Acho que esse cabra está voltando para o lugar de onde ele saiu. Acho que vai passar aqui por essas bandas.

- E se ele já tiver passado? Se ele também tiver feito o percurso correndo, como você fez? – perguntou Emanuel.

- Duvido. – pontuou Júlio. – Ele não sabe que está sendo seguido. E, mesmo que soubesse, duvido que ele conseguisse correr rápido que nem eu.

- Sei não. – retrucou Emanuel.

- Homem é que nem bicho, Emanuel. Só corre se sentir que está sendo seguido ou que está em perigo. Como esse comunista não sabe que a gente está atrás dele, ele deve estar todo calminho. Deve ter parado para dormir e vai pegar a trilha de manhã. – disse o garoto, com uma firmeza que surpreendeu até ele mesmo.

- Acho que o menino está certo. – decidiu o delegado. Vamos comer logo e tratar de dormir. Amanhã, vamos acordar bem cedo.

Pouco antes da 5 horas da manhã de 18 de abril de 1972, uma terça-feira, Carlos Marra e seu grupo já estavam de pé. Tonho fez o fogo para requentar o café. Comeram arroz com farofa e carne seca, desamarraram as redes das árvores, jogaram tudo no saco de estopa e recomeçaram a caçada ao guerrilheiro. O delegado acatou uma sugestão de Emanuel e ordenou aos seus homens que caminhassem um ao lado do outro, deixando entre eles uma distância de cerca de 5 metros. Dessa forma, cobririam uma área bem maior do que se andassem em fila indiana. Ricardo era o último à esquerda, e puxava o cavalo por uma corda. Considerado por Marra o maior conhecedor da mata, Júlio ia no centro, com o delegado à sua direita.

A terra ainda estava úmida da chuva da noite anterior. Júlio adorava aquele cheiro da selva molhada. Sentia-se em casa. Seus olhos esquadrinhavam cada metro da floresta. Ouviu algo, um pouco à sua frente, à esquerda. Levantou o braço esquerdo, que sinalizava, como já haviam combinado, que todos deveriam parar. Apontou na direção de onde vinha o barulho que só ele ouvia. Com as palmas das duas mãos viradas par baixo, seguiu, em passos lentos e silenciosos. Olhou para trás e, com a mão direita, chamou o delegado. Quando Marra aproximou-se dele, o rapaz apontou por trás de uma árvore de mogno de uns 30 metros de altura. O delegado disse não estar vendo nada. Júlio apontou novamente. Era uma anta, das grandes.

- Para que eu quero saber da anta, Julão? - reclamou Carlos Marra.

- Só queria lhe mostrar. Para o senhor saber que estou vendo tudo. Se fosse o tal comunista, eu teria visto. – explicou o garoto.

- Tá bom. Mas esqueça os bichos. Quero é que você encontre esse cabra.

Não demorou para a ordem do delegado ser atendida. Menos de trinta minutos depois, por volta das 6 horas da manhã, Júlio voltou a erguer o braço esquerdo. Todos pararam. Ele olhou para o delegado e sussurrou: “Estou vendo um sujeito lá na frente”. Mancando, Marra aproximou-se do garoto. O homem caminhava numa trilha a uns 100 metros à frente deles. Vestia uma calça escura e uma camisa clara, num tom azulado, de mangas longas, arregaçadas até pouco acima do cotovelo. Era magro e tinha cerca de 1,80 metro de altura. Usava o cabelo curto, desgrenhado, e barba rala no rosto fino e quadrado. Carregava, na mão direita, um saco plástico. Andava a passos lentos, o que pareceu ao delegado um sinal de tranqüilidade. “Bem que você disse, Julão. Ele não tem a menor idéia de que está sendo seguido”, Marra falou. Seguiram o homem, até ele chegar numa área de mata baixa. Era o momento de abordar o sujeito. O delegado, Júlio e Emanuel iam à frente. Tonho e Ricardo, que puxava o cavalo, estavam um pouco atrás. Quando se aproximaram, Marra falou, dirigindo-se a Júlio: “Eu conheço esse cara”. O rapaz ficou confuso. Como o delegado poderia conhecer um comunista que estava no meio da floresta? Mas não havia tempo para conversas.

- Bom dia, Geraldo. – disse Carlos Marra, com a voz calma de sempre e fazendo o homem virar-se surpreso.

- Bom dia, delegado. Está fazendo o que por aqui? – respondeu ele.

Marra e Geraldo se conheciam de Xambioá. Vez ou outra, Geraldo, um jovem de 25 anos, aparecia na cidade para comprar mantimentos e munição para a espingarda e para o revólver. A todos, dizia que era agricultor. Vivia numa casa de madeira, coberta de palha, às margens do Rio Gameleira, havia dois anos. Nascido em Quixeramobim, no interior do Ceará, Geraldo era, na verdade, José Genoino Neto, estudante de Filosofia e Direito, da Universidade Federal do Ceará, filiado ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e que deixara a vida em Fortaleza para lutar no movimento armado contra a Ditadura Militar. O jovem era um dos cerca de setenta guerrilheiros que atuavam nas matas do Araguaia. A falsa identidade era imprescindível para que pudesse circular entre os moradores da região, sem ser reconhecido como comunista nem ser preso pelo Exército. E o sotaque nordestino ajudava bastante nesse sentido.

- Estamos procurando um comunista que está por essas bandas. – disse o delegado.

- O senhor sabe que eu não tenho nada a ver com isso. Sou apenas um agricultor. – falou Genoino.

- Acho que você está metido com esses comunistas. Venha com a gente. Vamos voltar para Xambioá e quero que você venha também.

- Para que o senhor está fazendo isso comigo?

- Se você não fez nada de errado, não preciso ficar preocupado. Ricardo, amarra o homem. – ordenou Marra.

Com uma extremidade da corda, Ricardo amarrou as mãos de Genoino. A outra ponta foi entregue ao delegado, que montou no cavalo e, segurando a corda, saiu puxando o guerrilheiro por uma trilha na selva. Júlio, Ricardo, Emanuel, Tonho e Forel caminhavam à frente do cavalo. Sentiam-se felizes por poderem voltar para Xambioá. Já estavam cansados de passar dias e dias andando na floresta, sob saraivadas de insetos, dormindo no meio do mato, comendo mal. Mas, cinco minutos depois de ser amarado, Genoino conseguiu puxar a corda da mão de Carlos Marra. Ainda com as mãos amarradas, saiu correndo em direção à mata fechada. O delegado mandou que ele parasse uma, duas, três vezes. De nada adiantou.

- Vou mandar abrir fogo, Geraldo. – Marra gritou.

- Pode atirar. – respondeu Genoino, sem olhar para trás.

O delegado deu um forte tapa no ombro de Júlio.

- Julão, derruba o cabra.

- Como é que é? – o garoto perguntou.

- Atira no cabra logo, antes que ele fuja, Mas lembre que eu quero ele vivo.

Rapidamente, Júlio tirou a espingarda que estava pendurada em seu ombro e agachou. Colocou o joelho esquerdo na terra úmida e apoio o cotovelo direito na outra perna. Mas Genoino corria em ziguezague e ele não queria errar o tiro, ou pior, matar o comunista. O fugitivo continuava correndo. Nervoso, Marra perguntou se Júlio iria atirar ou se deixaria o cabra fugir. O garoto nada respondeu. Mirou nas costas de Genoino, um pouco abaixo da linha do pescoço, do lado direito, e esperou o que considerou ser o momento perfeito para o disparo. Tinha de aguardar o instante exato que nenhuma árvore pudesse servir de escudo para o guerrilheiro. Fechou o olho esquerdo, inspirou até sentir os pulmões se encherem de ar e prendeu a respiração. Ao puxar o gatilho, percebeu sua presa se mover para a esquerda. A bala pegou de raspão no ombro direito.

Genoino sentiu como se uma navalha lhe cortasse o braço. Estava tão aturdido que não tinha certeza do que havia acontecido. Soltou o saco plástico que carregava e levou a mão esquerda ao local do ferimento. A manga da camisa já estava molhada de sangue. Ofegante, correu mais uns 20 metros e caiu numa moita, na esperança de se esconder de seus perseguidores. Com os olhos apertados e os dentes trincados de dor, jogou um pouco de mato e folhas sobre si. Júlio, mesmo depois do disparo, mantinha-se imóvel, com os olhos fixos no fugitivo.

- Pegou o cabra, Julão? – perguntou Carlos Marra.

- Peguei, sim, senhor. – respondeu o rapaz. – Ele tá caído no meio do mato.

- Vamos pegar esse safado.

Encontraram o jovem guerrilheiro encolhido na moita, pressionando o local do ferimento com a mão esquerda e se contorcendo de dor. O delegado mandou Tonho pegar o saco que Genoino carregava, e aproximou-se do comunista.

- Agricultor não foge, Geraldo. Quer dizer que você é comunista?

- Eu sou lavrador, delegado. – Genoino falou.

- Vamos ver. Quero ver até quando você vai ficar mentindo.

Tonho interrompeu o diálogo, trazendo o saco plástico do guerrilheiro. Dentro dele, uma camisa, remédio para picada de cobra, um punhado de farinha, um pouco de sal e um revólver, calibre 38. Para Carlos Marra, a arma era um forte indício do envolvimento de Genoino no movimento rebelde.

- Amarro o homem de novo, delegado? – perguntou Ricardo.

- Amarra, mas agora coloca as mãos dele para trás. – disse Marra.

Retomaram a trilha. Carlos Marra ia montado no cavalo e os cinco homens andavam ao redor de José Genoino. Como Júlio já tinha falado a respeito da cabana que vira na noite anterior, o delegado ordenou ao rapaz que os guiasse até o local. Foram cerca de 30 minutos de caminhada. No barraco, encontraram uma panela de ferro, duas enxadas, um banco de madeira, restos de comida e vestígios de pólvora. Marra tinha certeza de que aquela cabana era uma das bases de apoio utilizadas pelos comunistas.

- Você conhece esse lugar, Geraldo? – o delegado perguntou.

- Não senhor. Nunca estive aqui. – mentiu Genoino.

- Isso aqui é esconderijo de comunistas, não é?

- Não sei, delegado. Já disse, não que não sei.

Carlos Marra não acreditava no prisioneiro. E teve certeza de que ele tentava enganá-lo quando um cachorro que estava na cabana aproximou-se do jovem guerrilheiro e, sacudindo a cauda, lambeu os pés do rapaz. O vira-lata de pêlo ralo e avermelhado e orelhas caídas acabara de delatar José Genoino. Para o delegado, estava tudo esclarecido. O agricultor, que ele conhecia pelo nome de Geraldo, era um comunista. E fim de papo. Agora, usaria todos os meios à sua disposição para arrancar as informações que queria.

Era o início daqueles que José Genoino considera os piores momentos da sua vida. Momentos que ficariam para sempre marcados na memória e no corpo do jovem comunista. Seguro de que ele fazia parte da guerrilha, o delegado perguntava a respeito da localização das outras bases do movimento armado, informação fundamental para debelar as ações dos rebeldes. Carlos Marra queria saber, também, quantos guerrilheiros atuavam no Araguaia, que armamentos usavam, como se comunicavam. Para todas as perguntas, a resposta de Genoino era sempre a mesma: “Não sei”. Para o delegado, torturar o preso pareceu a melhor maneira de fazê-lo falar. Começaram a espancá-lo, desferindo chutes e murros por todo o corpo. Genoino sentia uma dor aguda no estômago e um amargo gosto de sangue na boca. Permanecia com as mãos amarradas para trás. Na tentativa de se proteger dos golpes, encolhia-se, levando os joelhos ao peito.

Marra não tocava no comunista. De pé, apenas dava ordens para a tortura. Júlio também ficou de fora da pancadaria. Disse ao delegado que não queria bater no preso, e assistia a tudo sentado no chão, abraçado à sua espingarda. Para cada golpe que Genoino levava, o garoto fazia uma careta de agonia. Não conseguia entender como Ricardo, Emanuel, Tonho e Forel, com quem convivera durante os últimos sete dias, pareciam sentir algum prazer naquilo. Já passava do meio-dia quando os homens pararam de bater no prisioneiro. Desfalecido, Genoino estava deitado no chão forrado de folhas, com o corpo imundo de terra. Marra ordenou que Tonho preparasse alguma coisa para ele comerem. O almoço foi arroz e a farofa que haviam sobrado com as três latas de sardinha. Comeram todos sentados no chão, pegando com as mãos a comida de dentro da panela de ferro. José Genoino continuava deitado. Parecia desacordado. Mas estava apenas descansando, depois da sova que o deixara com hematomas nas costas, pernas e barriga.

Duas coisas perturbavam Carlos Marra: onde estaria o helicóptero que ele havia pedido para levá-lo de volta a Xambioá e como poderia arrancar do guerrilheiro as informações que queria? Em relação ao primeiro problema, não poderia fazer nada a não ser esperar. No segundo caso, retomar as sessões de tortura parecia-lhe a melhor opção. O sol já se escondia por trás da floresta e o céu tinha um crepúsculo avermelhado quando o delegado ordenou aos seus homens que voltassem a espancar o prisioneiro. Genoino não quis acreditar que começaria tudo de novo. Júlio, virou as costas, para não ver a surra. Apenas ouvia os gemidos de dor. Não demorou até Marra ter uma idéia que Júlio achou ainda mais cruel do que já tinha visto até aquele momento. Seguindo ordens do delegado, Ricardo pegou duas latas de sardinha vazias e colocou-as no chão, com a parte que tinha sido aberta à faca par cima. Tonho, Emanuel e Forel, forçaram o jovem comunista a ficar de pé sobre as latas. Genoino sentia as bordas pontiagudas das latas rasgarem a sola dos seus pés. Trincava os dentes e apertava os olhos de dor. Forel segurava o guerrilheiro pelos cabelos.

- E agora, Geraldo? Vai falar? – perguntou Carlos Marra.

- Não sei de nada, delegado. Já disse. – ele respondeu.

- Você que sabe. Por mim, a gente fica aqui até você morrer de tanto sofrer. Se eu estivesse no seu lugar, já tinha falado.

- Mas eu não tenho nada para falar. – disse Genoino, entre um e outro gemido.

O tempo passava e o preso não dava informação alguma. Pouco antes de a noite cair, o delegado ordenou a Júlio que conseguisse algo para o grupo comer. O garoto já estava com fome e imaginava que seria divertido sair para caçar. Mas estava com muito receio de, ao voltar, encontrar o jovem comunista morto. Não que sua presença fosse evitar tal tragédia. Mas ficar sem saber o que acontecia na cabana parecia-lhe uma péssima idéia. Para ele, o guerrilheiro estava falando a verdade, ao dizer que não sabia de nada. Matá-lo não fazia o menor sentido. Mas Júlio não estava ali para pensar isso ou aquilo. Tinha de obedecer às ordens de Carlos Marra. Pegou a espingarda e saiu à caça do jantar. Os últimos raios solares do dia mal conseguiam atravessar a copa das árvores, onde dormiriam. Viu uma preguiça agarrada a um galho, e até pensou em abatê-la. Não gostava da carne do animal, mas, naquelas circunstâncias, não podia dar-se ao luxo de ficar escolhendo. Desistiu da idéia ao chegar mais perto e perceber que o bicho tinha um filhote agarrado às suas costas.

Continuou a esquadrinhar a selva com os olhos, até notar um macaco-aranha de uns 60 centímetros deitado num galho, a 15 metros de altura. O tiro foi certeiro, na cabeça do animal. O disparo quebrou o silêncio da mata e provocou uma revoada de araras. Júlio apanhou o bicho no chão coberto de folhas e retornou ao local onde o grupo estava. Durante os cerca de 30 minutos que despendeu na caçada, ficara pensando no que estaria acontecendo na cabana. Que tipo de tortura o comunista estava sofrendo? Será que o delegado tinha perdido a paciência e mandado matar o rapaz? Já era noitinha quando chegou à cabana. Genoino estava deitado, ao relento, com as mãos amarradas para trás e aparentemente desacordado. Carlos Marra e os outros homens descansavam, sentados no chão, ao redor da fogueira que Emanuel acabara de acender.

Júlio aproximou-se e jogou o macaco no chão, perto da fogueira. “Tá aí o nosso jantar”, ele disse. Todos já haviam comido macaco, mas ninguém queria preparar o animal antes de assá-lo. “Depois que se tira o pêlo e o couro, o bicho fica parecendo um bebê. Dá uma pena danada”, disse o delegado. Coube a Júlio, também essa tarefa. Caminhou até um braço do rio, a cerca de 500 metros da cabana, e começou o trabalho. Meteu o macaco na água e, com um facão, arrancou-lhe o couro, começando pelo bucho e terminando na cabeça. Só então percebeu que Carlos Marra estava certo. Sem o couro e o pêlo, o animal realmente parecia muito com uma criança recém-nascida. Principalmente pela pele alva, meio rosada, e pelos braços e pernas miúdos. Cortou fora a cabeça do bicho, arrancou-lhe as tripas, as patas e lavou-o com esmero, esfregando-o com as unhas. Aproveitou que estava ali para banhar-se e descansar um pouco. De volta à cabana, entregou o macaco a Tonho, o cozinheiro do grupo. Tonho cortou o animal em várias partes e, antes de colocá-lo para assar, temperou tudo com limão e sal grosso. A carne estava macia, mas todos reclamaram que Tonho tinha colocado sal demais. O cachorro sentiu o cheiro e aproximou-se. Marra jogou um grande pedaço de carne para o animal.

- Vamos dar um pouco da carne ao comunista, delegado? – perguntou Ricardo, quando todos já pareciam satisfeitos e demonstrando uma preocupação que surpreendeu Júlio.

- Que nada! Deixa esse desgraçado passar fome. Quem mandou ser bandido? – respondeu Carlos Marra.

- Então posso comer o resto? – voltou a perguntar Ricardo, demonstrando suas reais intenções.

- Não, Ricardo. Vamos deixar esse resto da carne para amanhã. Vamos ficar aqui até o helicóptero do Exército chegar, e eu não sei quando isso vai acontecer. Pode ser amanhã, mas também pode demorar dois ou três dias. Meu pé está doendo demais. Não estou nem um pouco disposto a passar horas andando na mata de novo.

Júlio ouvia tudo com atenção e só pensava que preferia passar uma semana caminhando na floresta do que cinco minutos dentro de um helicóptero ou de qualquer coisa que saísse do chão. Depois do jantar, o grupo permaneceu em volta da fogueira, falando sobre os assuntos de sempre: guerrilha, mulheres e futebol. Carlos Marra, Forel, Tonho, Ricardo e Emanuel contavam suas aventuras no Vietnã, como era chamada a rua de terra batida onde ficavam os prostíbulos de Xambioá. A rua tinha esse nome devido às constantes brigas. Invariavelmente, as confusões tinham como motivo central sexo, álcool ou dinheiro. Nas mais ásperas – as que resultavam em mortes -, esses três elementos apareciam conjugados. Enquanto ouvia os homens narrarem suas aventuras sexuais com as meretrizes do Vietnã, Júlio lembrava de Ritinha. Até sentiu vontade de contar como tinha sido delicioso fazer sexo com a menina, uma semana antes de viajar para o Araguaia, mas preferiu não falar da namorada.

Enquanto o grupo conversava, os homens iam, um a um, tomar banho no rio. Por volta das 8 horas da noite, começaram a armar as redes nas quais iriam dormir. Nesse momento, Carlos Marra, que permanecia sentado perto da fogueira, levantou-se e caminhou, mancando bastante, até a cabana. O delegado tinha acabado de voltar do banho, e estava sem camisa, o que fazia sua barriga parecer ainda maior. Sentou-se no banco de madeira e, com os braços cruzados e apoiados na barriga, disse aos homens que era cedo para dormir. Antes de deitar, eles teriam de torturar o prisioneiro novamente. Ninguém gostou da idéia. Estavam cansados demais para recomeçar a esmurrar e chutar o comunista. Além do mais, já era consenso entre eles que o jovem guerrilheiro não sabia onde as outras bases rebeldes estavam localizadas. E se sabia, certamente não iria falar. Ou já o teria feito.

- Delegado, a gente não agüenta mais ficar surrando esse condenado. A gente desce o cacete nesse infeliz, mas ele não fala nada. – disse Emanuel.

- Eu sei. Mas não quero que vocês batam nele. – falou Carlos Marra.

- E vamos fazer o quê? – quis saber Ricardo.

- Peguem alguns gravetos da fogueira e queimem as pernas desse safado, até ele falar alguma coisa. Uma hora, ele abre o bico.

Para Júlio, a fala mansa e compassada do delegado não combinava com uma idéia tão truculenta. Os outros homens do grupo demonstraram gostar do que tinham acabado de ouvir. Foram todos até a fogueira – inclusive Júlio – e pegaram um graveto cada, segurando pela parte que ainda não fora atingida pelo fogo. Na outra extremidade, os pedaços de madeira estavam em brasa viva. José Genoino continuava deitado no mato, encolhido e com os olhos fechados. Estava acordado. Já fazia cerca de quatorze horas que havia sido capturado. Durante todo esse tempo, levou horas de sova. Nada comeu. Nada bebeu. De tão estressado emocionalmente, não conseguira sequer cochilar. Júlio acelerou o passo e aproximou-se dele, antes de os demais chegarem.

- Rapaz, fala logo tudo o que você sabe. Você vai acabar morrendo de tanto apanhar. – disse o garoto.

- Mas eu não sei de nada. Não estou mentindo. – respondeu o guerrilheiro, ainda com os olhos fechados.

José Genoino jamais esqueceria esse curto diálogo. Perceber uma certa preocupação daquele que, a seus olhos, parecia ser o mais jovem do grupo que o capturara deixou-o confuso. Diante de tanto sofrimento e agonia, agradava-lhe a idéia de que ao menos um de seus algozes preocupava-se com a sua integridade. Ainda tinha esse pensamento na cabeça quando sentiu um forte pontapé nas costas. Abriu os olhos e viu os 6 homens de pé a sua volta. Pensou que fosse apanhar novamente. Ao ver, nas mãos deles, os gravetos acesos iluminando a escuridão da mata, pressentiu que iria sofrer ainda mais do que levasse outra surra.

- Três seguram o cabra e dois queimam as pernas dele. – ordenou Marra.

Júlio foi o primeiro a jogar seu graveto no chão. Preferia segurar o comunista a queimá-lo. Tonho e Forel fizeram o mesmo. Quando agacharam para agarrar o guerrilheiro, sentiram um forte cheiro de urina. Proibido de ir ao mato fazer suas necessidades, Genoino havia urinado na roupa. Ricardo e Emanuel arregaçaram as pernas da calça do guerrilheiro e começaram a tortura. Genoino sentia os pedaços de madeira em brasa fritando suas panturrilhas. Gritava e se contorcia de dor. Para causar ainda mais sofrimento, permaneciam assim, até a pele do rapaz ficar em carne viva. O jovem comunista sacudia as pernas com agonia, mas era contido por Júlio, Tonho e Forel – até hoje, José Genoino tem as cicatrizes das queimaduras. O delegado Marra assistia a tudo sentado no chão.

- Como é, Geraldo? Vai falar onde seus amigos se escondem ou prefere continuar sofrendo? – perguntou Carlos Marra.

- Não sei de nada. Já falei mil vezes. Não sei de nada. – ele respondeu aos gritos.

Júlio olhou o delegado, na esperança de ele mandar acabar com a tortura. Mas Marra ordenou que continuassem queimando as pernas de Genoino, e foi, ele próprio, pegar mais gravetos na fogueira. Júlio achou bastante estranha a expressão de satisfação que leu no rosto do delegado, enquanto o comunista urrava de dor. Para o garoto de 17 anos, por maior que fosse o problema que o guerrilheiro estava causando ao Exército, nada justificava tamanha crueldade. Sentiu-se aliviado quando Marra ordenou que amarrassem o preso numa árvore. “Precisamos dormir”, disse o delegado, pouco antes de avisar que seus cinco comandados teriam de dormir em turnos, de forma que sempre houvesse alguém de olho em Genoino. Júlio, Tonho, Forel, Emanuel e Ricardo decidiram, entre si, a ordem do plantão. Emanuel seria o primeiro, e Júlio, o último. Marra ficaria fora do esquema. Antes de irem dormir, levaram o guerrilheiro desfalecido até uma árvore a 10 metros da cabana. Amarraram-no com as mãos para trás, com o tronco entre suas costas e suas mãos. Eram cerca de 9 horas quando todos, exceto Emanuel, foram dormir na cabana. A noite passou sem percalços.

Na manhã de 19 de abril, acordaram por volta das 7 horas, sob um forte calor inclemente. Júlio, o último na ordem da guarda, já estava de pé havia duas horas. Tinha ficado todo o tempo deitado na rede, estendida no chão, com os olhos fixos no preso, que parecia dormir. Mas Genoino, com dores por todo o corpo e queimaduras profundas nas pernas, não havia dormido. Estava apenas descansando. Marra e seu grupo comeram a carne de macaco que sobrara da noite anterior e voltaram para a barraca, onde ficaram conversando. O delegado reclamava de dores no pé e do maldito helicóptero que não aparecia. Emanuel sugeriu que dois ou três homens fossem ao rio, tentar pescar alguma coisa para o almoço e para o jantar, caso tivessem de passar mais uma noite ali.

- Se o senhor quiser, eu posso ir pescar, delegado. Sou muito bom em pescaria. – disse Júlio.

- Vamos esperar um pouco mais. Se o exército não aparecer até o meio-dia, a gente faz isso. – falou Marra.

Quando o relógio do delegado – o único relógio que havia no grupo – marcava meio-dia em ponto, ele chamou Júlio e Tonho para conversar. Mandou Tonho reacender a fogueira para preparar o almoço. E disse a Júlio que só voltasse do rio com pelo menos 2 quilos de peixe. Tonho saiu para buscar gravetos para a fogueira e Júlio pegou o facão para preparar um galho de árvore que lhe serviria de arpão na pescaria. Quando talhava a ponta do arpão, o garoto ouviu um barulho ensurdecedor que vinha do alto da floresta. Olhou para cima, e não viu nada. Mas já podia imaginar o que aquela zoada significava. O helicóptero do Exército aterrisou levantando folhas e muita poeira. Carlos Marra deu um pinote do banco de madeira e foi, manquitolando, saudar os militares. Júlio ficou preocupado. Já tinha decido pedir ao delegado que o deixasse voltar para Xambioá de barco, mas sabia que teria de acatar a decisão de Marra. E Genoino não sabia se a chegada do Exército seria bom ou ainda pior para ele. Os militares poderiam levá-lo de volta à cidade e, em seguida, libertá-lo. Mas poderiam, também, já ter descoberto que ele era militante do Partido Comunista do Brasil e tornar a sua vida um tormento ainda maior.

Carlos Marra conversava com os militares próximo do helicóptero, sem que Júlio conseguisse ouvir o que falavam. Pela expressão sisuda dos cinco homens que usavam calças e camisas verdes e botas negras cobertas de poeira, ele adivinhava que estavam todos muito irritados. Um dos militares entrou no helicóptero e saiu carregando um latão enorme. O delegado ordenou a Ricardo que levasse o soldado com o tonel até o rio. Pouco depois, eles voltaram trazendo o latão transbordando de água. Os militares aproximaram-se de Genoino. Além de Marra, apenas Ricardo acompanhou tudo de perto. Júlio, Tonho – que já tinha voltado da mata -, Forel e Emanuel viam a cena à distância. “Vamos ver se ele não vai falar agora”, disse o homem que parecia liderar os militares, com os olhos fixos nos olhos do Genoino, que ouvia tudo assustado.

Soltaram o guerrilheiro da árvore, mas logo voltaram a amarrar suas mãos para trás. Dois homens o agarraram pelos braços e afundaram sua cabeça no latão cheio d’água. Era a pior coisa pela qual José Genoino já havia passada na vida. Com água até o pescoço e sem poder respirar, ele gritava um grito silencioso. Engolia a água barrenta do rio, e tentava tirar a cabeça do latão. Mas duas mãos o impediam. De repente, sentiu um forte puxão de cabelo. Podia respirar novamente. Cuspiu a água da boca e inspirou apavorado. Parecia que seus pulmões iriam explodir de tanto ar. Agarrando-o pela nuca, um dos militares disse: “Onde estão os outros comunistas? Vai falar agora ou quer morrer afogado?”. A resposta foi a mesma que várias vezes havia dado a Carlos Marra: “Não sei de nada.” E teve a cabeça novamente empurrada para dentro da água. Com os olhos fechado, sentia uma mão acudir sua cabeça de um lado para outro do latão. Sua testa chegava a bater nas laterais de alumínio.

Perdeu as contas de quantas vezes o procedimento foi repetido. Na última delas, teve certeza de que iria morrer. Não conseguia pensar em nada. Apenas em viver. Debatia-se, numa busca desesperada por um pouco de oxigênio. Seu corpo todo tremia, em espasmos que assustaram Júlio. O garoto assistia a tudo a 10 metros de distância. Pediu a Deus que livrasse o jovem guerrilheiro daquela agonia. Acreditou que suas preces haviam sido ouvidas, ao ver um dos militares puxar a cabeça de Genoino para fora do latão. O comunista caiu no chão de terra, jogando água pela boca e tossindo incessantemente. O trauma daquela tortura foi tamanho que Genoino passaria cerca de dez anos com pavor de tomar banho de rio e de mar. “Vamos embora. Na cidade, a gente continua o interrogatório”, gritou o homem que parecia comandar os militares.

O delegado Carlos Marra olhou para os seus homens e, sem dizer uma palavra, apontou para o helicóptero. Todos entenderam o recado e seguiram para a aeronave. Antes do embarque, os militares algemaram as mãos do jovem comunista para a frente e prenderam seus pés com uma corrente enferrujada. Forçaram-no a sentar-se no chão e fizeram uma fotografia que viria a ser uma das imagens mais célebres da Guerrilha do Araguaia. A atmosfera estava tão pesada que Júlio desistiu de pedir ao delegado que o deixasse voltar para Xambioá de barco. Fez uma última prece, embarcou no helicóptero e ficou encolhido num canto. Genoino foi arrastado por dois militares cuja aparência levou Júlio a acreditar que eram tão jovens quanto ele. Antes da decolagem, o garoto viu Ricardo ajudar dois militares a incendiar a cabana e tudo o que nela havia. Viu, também, o cachorro fugir do fogo, correndo em direção do rio. Quando o helicóptero levantou vôo, Júlio, sentado no assoalho de ferro, colou os joelhos no tórax, abraçou as pernas e apertou os olhos com força. Só voltaria a abri-los quando estivesse em terra novamente. José Genoino ainda teve tempo de ver o fogaréu devorando o barraco que serviria de base a seus companheiros de guerrilha.

Cerca de dez minutos depois, estavam em Xambioá. Júlio ficou impressionado com a velocidade com que haviam chegado à cidade. Por mais perigoso que parecesse ser, o tal helicóptero era realmente muita rápido e prático. Ao ouvir Ricardo e Emanuel comentando como a floresta era linda vista do alto, lamentou não ter tido a coragem de abrir os olhos durante a viagem. Passava das 14 horas quando Carlos Marra e o seu grupo, José Genoino e dois militares chegaram à cadeia pública de Xambioá. Foram mais de três dias de interrogatórios e torturas. Mas o preso continuava negando ser um guerrilheiro e alegava não saber nada do que lhe era perguntado. Unindo as evidências encontradas na mata aos depoimentos de diversos moradores da região, que declararam que Genoino fazia parte do movimento armado, o Exército decidiu despachar o suposto guerrilheiro – cuja identidade permanecia em segredo – para Brasília, onde ficaria sob os cuidados do Pelotão de Investigações Criminais, o PIC.

A viagem foi feita no dia 22 de abril de 1972, num avião militar, modelo Búfalo. Na capital federal, José Genoino Neto teve sua identidade comprovada. Era, de fato, um comunista filiado ao PCdoB e que, inclusive, já havia sido preso, em outubro de 1968, na cidade paulista de Ibiúna, por sua atuação política. Logo concluíram que o rapaz era um dos líderes da Guerrilha do Araguaia. Um mês depois, foi mandado de volta a Xambioá, onde ficou preso na base do Exército, improvisada no local em que ficava o campo de futebol da cidade. Após duas semanas de mais torturas – principalmente, surras e choques elétricos – e interrogatórios, o comunista foi enviado de volta a Brasília.

Permaneceu aprisionado e, em janeiro de 1973, foi despachado para uma prisão militar em São Paulo. Só teria sua liberdade de volta no dia 18 de abril de 1977, exatamente cinco anos após o dia em que foi atingido pelo tiro disparado por Júlio Santana, nas matas do Araguaia. Fora da prisão, José Genoino retomou a vida como professor de história. Cinco anos mais tarde, foi eleito deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, em São Paulo, com 58 mil votos. Em 1998, seria novamente eleito, para o mesmo cargo, dessa vez com 300 mil votos, o que fez do ex-guerrilheiro o recordista nacional de votos na Câmara daquele ano. Somente nessa época, ao ver uma reportagem na TV sobre o êxito do petista, na qual aparecia a foto de Genoino capturado no Araguaia, Júlio Santana ficou sabendo que o homem em quem dera um tiro, em abril de 1972, havia se tornado um influente político brasileiro. Júlio e Genoino jamais voltaram a se falar.

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