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Aborto e moral

A discussão sobre a questão do aborto ganhou novo impulso nas ultimas semanas por conta do caso deplorável da menina de 11 anos grávida em consequência do estupro. Para realizar o aborto, tanto a menina como sua família tiveram que se expor publicamente aumentando o sofrimento de ambos até conseguir a autorização do juiz. Sofrimento que já era indescritível pelo ato criminoso e ignominioso perpetrado contra a menor por um homem. Os membros da mesma família já padeciam de outros infortúnios por serem pobres, quase analfabetos, camponeses e desamparados. O poder público, como sempre, mostrou-se totalmente ausente no amparo e na ajuda a essas pessoas necessitadas.

O mais grave de tudo, porém, foi a exposição da menina e de sua família a forte pressão de grupos religiosos e até de médicos que não tinham relação com o caso para que o aborto não fosse realizado. Segundo o que foi noticiado na imprensa, tanto a menina como sua família preferiam a interrupção da gravidez. As pressões, no entanto, influíram decisivamente na não realização do aborto. A decisão deveria caber única e exclusivamente à menina e aos seus pais sob os cuidados de orientação médica. A vida privada e intima de toda uma família foi dilacerada por estranhos que se julgam no direito de intervir em decisões que não lhes dizem respeito.

Nada disso teria acontecido se estivesse em vigor o projeto de Lei 20/91 do deputado Eduardo Jorge (PT-SP) e Sandra Starling (PT-MG), que prevê o atendimento gratuito e automático pela rede hospitalar pública para os casos de opção de aborto previstos em lei. Ou seja, para os casos de estupro e risco de vida da gestante. O referido projeto já recebeu o aval da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara para tramitar, mas está sendo contestado por vários grupos religiosos. Como o projeto não trata da ampliação do direito ao aborto, mas apenas regulamenta uma situação prevista no Código Penal desde 1940, a sua contestação representa uma discriminação contra mulheres pobres. Sem o acesso à rede hospitalar pública somente as mulheres ricas ou da classe média poderiam fazer o aborto em caso de estupro ou risco de vida. Para as mulheres pobres restaria recorrer a clinicas clandestinas ou desaparelhadas aumentando os riscos de vida.

Os grupos que se manifestam contra o aborto legal confundem Direito e Moral. Querem que toda a sociedade assuma a moral particular deles próprios como se essa moral expressasse uma verdade absoluta. A conduta humana é regulada por normas que pertencem à esferas diferentes da vida e da sociedade. Do ponto de vista democrático, as normas jurídicas, que pertencem à esfera do Direito, têm um caráter universal e se constituem num dever para todos. A esfera da vida social abriga também muitas normas de conduta humana, geralmente denominadas de normas morais. A Moral prescreve a conduta humana em face a outro ser humano e em face a si mesmo. Tanto as normas do Direito como as normas da Moral são criadas pelo costume ou pela racionalização da consciência. Mas, inequivocamente, Direito e Moral constituem espécies diferentes de normas.

O Direito, por exemplo, prevê organismos especializados na aplicação das normas. As normas do Direito têm um caráter coercitivo. Já a Moral não estabelece sanções para as suas prescrições ou proibições. A vasta experiência humana permite estabelecer a convicção de que não há uma moral absoluta. Todo valor moral é relativo. O que é justo ou injusto, bom ou mau varia de acordo com as épocas históricas e as circunstâncias sociais. O valor absoluto só pode existir nas crenças religiosas que fundam seus valores referenciais numa divindade transcendente. Nenhuma religião, no entanto, tem o direito de impor suas prescrições e seus valores aos outros. Isto só seria possível num Estado teocrático que será, necessariamente, um Estado ditatorial próximo ao totalitarismo ideológico do nazismo ou do comunismo. O Estado laico se funda numa moral pluralista e as normas jurídicas não precisam expressar uma moral mínima de nenhum sistema moral em particular. As normas jurídicas por serem determinações devidas são, por si mesmas, normas morais. Assim, do ponto de vista da ordem jurídica, não há nenhuma imoralidade na prática do aborto legal.

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