1982-2002

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1998: crise e eleições

Crise e eleições são as duas palavras que darão a tônica da vida política, econômica e social do Brasil no novo ano que se abre. Um novo ano, a rigor, representa um momento de renovação de esperanças em torno de expectativas, projetos e objetivos que compõem os variados e complexos assuntos humanos. Mas no trânsito de 1997 para 1998, para boa parte da população brasileira, os sentimentos de cautela, de moderação e os temores parecem ter sido mais fortes do que as esperanças. Ocorre que a crise econômica e social é como que um pesado fardo que o tempo vem carregado nas costas para 1998 adentro desde os últimos meses de 1997. A edição do pacote fiscal do governo representou o memento de viragem no termômetro das expetativas da opinião pública: o otimismo moderado que vinha acompanhando a estabilização econômica começou a ceder lugar a um pessimismo visível.

De fato, há quase um consenso entre os analistas sobre a avaliação de que o pior da crise ocorrerá nos três ou quatro primeiros meses do novo ano. Será nesse período que a atividade econômica entrará em maior refluxo acentuando as perspectivas de desemprego e de agravamento do quadro de pobreza e exclusão. O governo conta com a certeza de que passado este período de turbulência a economia reinsetará um processo de discreto crescimento. Isto, realmente, pode ocorrer. Mas os ingredientes da crise não desaparecerão da mídia, da opinião pública e invadirão a campanha eleitoral. Temas como desemprego, taxas de juros, câmbio, déficit público, déficit nas contas externas, exportações/importações, exclusão social, reforma agrária, aposentadorias, saúde, educação etc., serão recorrentes ao longo do ano e ameaçam até mesmo invadir os anos vindouros.

Há, assim, uma ponte evidente entre o debate da crise e a disputa eleitoral. Neste sentido, a campanha de 98 deverá ser bastante diferente das eleições de 89 e de 94 e do período de monotonia política dos três primeiros anos do governo Fernando Henrique. Em 89, a polarização ocorreu entre uma candidatura que expressava a esperança de uma mudança radical do país, a de Lula, e uma outra, a de Collor, que em nome do vigor moralista se opunha à perspectiva do radicalismo. Em 94, tivemos uma campanha monotemática: o plano de estabilização foi a tônica. Reformas constitucionais e estabilização econômica constituíram o binômio repetitivo do governo Fernando Henrique até a erupção da crise no final de 97.

As eleições de 98 ocorrerão sobre um terreno onde Fernando Henrique encontrará mais acidentes. As pessoas já terão vivido a experiência da estabilização e saberão que, se ela é boa, é também insuficiente. Tal como foi implementada, tem aspectos positivos e negativos. Por outro lado, o resultado das reformas serão ainda invisíveis aos olhos da opinião pública. Dessa forma, o bloco governista será obrigado a abandonar os meros recursos discursivos e entrar na agenda real do Brasil ou a agenda do Brasil real. Aliás, as conjunturas interna e internacional empurram cada vez mais o cenário político para a agenda real.

A agenda real do Brasil colocará em confronto, do ponto de vista teórico, duas perspectivas de futuro, duas perspectivas de democracia. De um lado, Fernando Henrique e o bloco conservador tentarão justificar um modelo de integração subalterna à economia global, um modelo de dependência ao capital externo tanto produtivo como especulativo, um modelo que visa satisfazer as necessidades de um mercado restrito e excludente. Em suma, um modelo que aposta na desregulamentação das relações de trabalho, na desregulamentação das funções gerais do Estado nas áreas de serviços, fiscalização etc., e que sustenta que as relações de mercado são as mais adequadas para alocar recursos e rendas. O discurso de Fernando Henrique de que seria "demagogia" o governo mediar saídas para o desemprego guarda toda coerência com o modelo preconizado. Do ponto de vista do conceito de democracia, o bloco governista sustenta que ela se reduz a um sistema de regras do jogo onde o Estado cumpre funções mínimas e o mercado competitivo se encarrega do resto.

Se a agenda do Brasil real for capaz de se traduzir em votos de oposição ao governo ela poderá quebrar a insensibilidade do presidente. Ele não poderá dizer, por exemplo, que as pesquisas do Dieese, feitas segundo a metodologia da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que apontam desemprego de 16,5% em regiões metropolitanas como a Grande São Paulo, estão erradas. Ele acredita que o nível de desemprego é de apenas 5%, de acordo com o que apontam esdrúxulas metodologias de pesquisa. Fernando Henrique tem declarado também que não acredita nos números das pesquisas que indicam que 1/3 da população brasileira é de excluídos. Mas o próprio IBGE mostrou, em pesquisa recente, que o número de famílias pobres aumentou de 1987 a 1996 em 21% em relação às outras classificações. Fernando Henrique será cobrado por promessas não cumpridas e por um mandato que se esvai em parcas realizações.

A oposição de esquerda, por outro lado, já nas portas de um novo século e de um novo milênio, não poderá se comportar como no início da década de 90 quando estava desorientada ideologicamente por conta do colapso do socialismo e quando sustentava uma agenda ultrapassada. Em 98, a esquerda também deverá confrontar-se com a agenda do Brasil real. Se ela acerta em apontar para um novo modelo de desenvolvimento econômico e para a temática social deverá ir além da proclamação das intenções e objetivos. O problema da governabilidade diz respeito principalmente à eficácia dos meios para alcançar objetivos. Sem adequar meios e fins de forma coerente e exeqüível, a esquerda não conquistará credibilidade suficiente para merecer a confiança da maioria do eleitorado. A esquerda deverá ser capaz de mostrar que, além de um conjunto de regras formais, a democracia deve se referir a uma realidade substantiva onde a justiça social e direitos são garantidos e onde a eqüidade e o equilíbrio se afirmam com o avanço do processo de democratização. Neste modelo de democracia, o Estado terá um relevante papel regulador e fiscalizador e de mediação dos conflitos sociais. Tudo isto mostra que a esquerda não terá pela frente uma estrada pavimentada rumo ao poder. Encontrará o mesmo terreno acidentado, cheio de escarpadas e declives, que terá que percorrer Fernando Henrique. Com isso quero dizer que 98 será um ano difícil para os políticos. Terão pela frente um eleitorado mais racional e exigente que vê um Congresso sem crédito e um governo sem ações. Este eleitorado quer mudanças, mas com poucos riscos. O mundo e o Brasil passam por mudanças profundas. A globalização e as novas tecnologias tornam o futuro cada vez mais incerto. Os passos rumo a ele devem ser dados com cautela para que o chão não falte aos pés.

O chão faltou aos pés dos desempregados, está faltando aos analfabetos sem chances de emprego, está faltando aos idosos e aposentados que vivem numa situação de abandono, está faltando aos pais de classe média que chegaram ao limite dos gastos com educação, está faltando aos segurados dos planos de saúde com altas prestações a pagar e atendimento insatisfatório, está faltando aos pequenos e médios empresários que têm que parar a produção ou porque não há consumo ou porque os juros não permitem investimentos e está faltando aos inadimplentes e a boa parte dos consumidores. O chão desapareceu sob os pés de todos os cidadãos que estão submetidos ao terror permanente da violência e da insegurança. O chão é movediço aos pés dos usuários dos serviços públicos de saúde e educação. O chão é movediço também aos pés dos jovens sem perspectivas de futuro, aos pés dos sem-terra, dos produtores rurais, dos cidadãos que pagam impostos e se deparam com cidades sujas, ruas despedaçadas, mendigos e menores carentes. Estes são apenas alguns pontos da agenda do Brasil real. O desafio dos candidatos à presidência da República é o de apontar soluções consistentes à agenda real. Só assim poderá surgir um novo quadro de expectativas positivas.

Mas diante da longa história de infortúnio da maior parte do povo brasileiro e da vasta irresponsabilidade dos políticos, é recomendável que se adote antes uma postura de ceticismo esperançoso do que de otimismo para enfrentar o novo ano. O ceticismo é mais adequado para posturas e atitudes realistas. O otimismo, principalmente em política, costuma conduzir a passos em falso. Obscurece a realidade e desorienta o senso de sentido e de responsabilidade. No final deste turbulento ano será mais feliz aquele que tiver consciência das dificuldades e souber enfrentá-las, mesmo com sacrifícios, do que aquele que se lançar às aventuras dos exageros. Para este, a intensa luminosidade que parece brilhar no horizonte poderá revelar-se uma miragem.

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