1982-2002

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Democracia Autoritária

Um dos itens da pauta da convocação extraordinária do Congresso é a regulamentação das medidas provisórias. Existem dois projetos de Emenda Constitucional em tramitação um oriundo da Câmara e outro do Senado visando regulamentar as MPs. Estranhamente, na pauta da convocação, só foi incluído o projeto do Senado. Os projetos têm diferenças significativas, mas como o do Senado atende aos interesses do governo, o da Câmara foi preterido.

A medida provisória é um mecanismo legislativo usado pelo presidente da República que, segundo a Constituição, deveria ser acionado só em caso de "relevância e urgência". Na verdade, as MPs estão sendo usadas para tudo: regulamentaram o comércio de carros, mensalidades escolares, planos econômicos, confisco de poupança, criação de impostos, pacote fiscal etc. Desde a promulgação da Constituição em 1988, já foram editadas mais de 1600 MPs. Não há limite para a sua reedição, não há obrigatoriedade do Congresso examiná-las e produzem efeitos legais a partir da sua publicação no Diário Oficial. O cidadão pode ser surpreendido da noite para o dia com uma nova legislação que incide e altera as suas condições de vida material.

Agora procura-se estabelecer algum limite ao uso exorbitante das MPs, mas a Emenda Constitucional n.º 472, do Senado, que está na pauta da convocação extraordinária, apresenta graves equívocos. Ela estende a validade das MPs, dos atuais 30 dias para 90 dias. Alem disso, permite uma prorrogação por mais 90 dias, possibilitando 180 dias de validade sem que o Congresso se pronuncie sobre as mesmas. Neste prazo, os períodos de recesso do Congresso não contam. Além disso, a Emenda do Senado arrola, por determinação negativa, os assuntos sobre os quais as MPs não podem incidir, deixando em aberto um vasto campo de ação legislativa para o Executivo. Já, a Emenda da Câmara estabelece o prazo de validade para 60 dias prorrogáveis por mais 60. Mas, por outro lado, obriga o Congresso a se pronunciar sobre as MPs fazendo com que elas entrem automaticamente na pauta de votação. A Emenda da Câmara apresenta, também, um campo maior de matérias sobre as quais as MPs não podem incidir.

A oposição apóia o projeto oriundo da Câmara por considerá-lo o menos pior. O projeto do Senado, ao estabelecer um prazo de 180 dias ou mais, foge a qualquer critério de ``urgência'', determinado pela Constituição. Chega até mesmo a ampliar a competência legislativa do Executivo, em detrimento do Legislativo, a permitir que o presidente use decretos para criar, fundir ou extinguir ministérios e para criar ou suprimir cargos administrativos. Hoje, essas decisões precisam passar pelo crivo do congresso.

Se o Congresso estivesse disposto a regulamentar efetivamente o uso das MPs, uma perspectiva que resgatasse as suas próprias prerrogativas, deveria partir dos seguintes critérios: a) manutenção do prazo de 30 dias de vigência; b) possibilidade de uma única reedição por mais 30 dias; c) obrigatoriedade do exame das MPs pelo Congresso; d) definição dos conceitos de "relevância e urgência"; e, e) delimitação positiva das matérias sobre as quais as MPs podem incidir, conforme propõe o professor Oliveiros Ferreira. Ou seja, a partir da definição dos critérios de "relevância e urgência", se estabeleceria sobre quais matérias as MPs podem incidir e não sobre quais matérias não podem incidir.

Reconhecendo a necessidade do Executivo dispor de mecanismos emergenciais para enfrentar situações excepcionais, quero chamar a atenção sobre a gravidade da situação jurídica e política que o uso indiscriminado das MPs está provocando. As MPs estão criando uma ordem jurídica confusa e contraditória, fator que abarrota os tribunais e congestiona a Justiça. Muitos aspectos das MPs entram em flagrante conflito com a legislação existente. Tendo em vista que as MPs provocam efeitos jurídicos e materiais imediatos, torna-se quase impossível o Congresso não aprová-las. Caso o Congresso revogue uma MP, como legislar sobre os seus efeitos?

O mais grave, porém, é o reforço aos traços de democracia autoritária que as MPs induzem. A democracia não se reduz à regra da maioria. A maioria, a rigor, como observou o filósofo Norberto Bobbio, pode suprimir a democracia. O simples fato do Congresso delegar poderes legislativos ao presidente não significa que este ato seja democrático. E preciso examinar se esta delegação não representa uma capitulação, se não representa a quebra da estrutura democrático-republicana fundada na harmonia, distribuição, freios e contrapesos entre os poderes e se não representa uma concentração autocrática do poder. E cada vez mais preocupante, não só no Brasil, mas também em outras partes do mundo, o fortalecimento de democracias com fortes matizes autoritários. Levando-se em conta que hoje é possível somar o uso arbitrário das MPs com os interesses eleitorais proporcionados pela reeleição, o presidente da República pode tornar-se numa espécie de imperador eleito.

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