1982-2002

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Fernando Henrique, o pós e o pré

O presidente Fernando Henrique Cardoso declarou, num encontro com empresários, que o atual período da História se caracteriza pela era do pós: "Pós-qualquer coisa, pós-liberal, pós-marxista e pós-social-democrata." Definições tão abrangentes como essa, que definem tudo, terminam por não definir nada, pois carecem de conteúdo e de síntese. Essa definição pode ser aplicável a aspectos muito parciais da realidade, sem, contudo, ser capaz de diluir as diferenças, sejam elas políticas, ideológicas, sociais, econômicas, étnicas, religiosas, etc. Veja-se, por exemplo, que o "novo trabalhismo" de Tony Blair e a "nova democracia" de Bill Clinton não se diluíram na mesma solução aquosa e insossa com os conservadores, no caso do primeiro, e com os republicanos, no caso do segundo. As palavras "pós" ou "novo" não apagam velhas diferenças nem desmancham a diversidade.

Se o presidente tivesse mirado para a realidade brasileira, teria, com certeza, percebido muito mais prés do que pós. Apesar de ser uma das maiores economias do mundo e de ter vários setores de ponta da indústria tecnológica e de serviços, o Brasil, em grande medida, é pré-capitalista. Aqui, o ganhar dinheiro, a realização do lucro, que caracterizam o espírito do capitalismo, não se atêm ao legal, ao justo e ao legítimo. Vigora ainda um capitalismo predador, a espoliação concentradora de rendas e riquezas, as espertezas e o vale-tudo. Não há um limite razoável na realização do lucro nem o Estado é neutro. Ele favorece determinados setores do capital, que conseguem vantagens por meio de leis, vetos presidenciais, benefícios, incentivos e sonegações. Em suma, o Brasil possui uma pequena mancha moderna e desenvolvida, cercada por uma enorme mancha atrasada e não desenvolvida.

O Brasil é ainda pré-liberal e pré-democrático - no sentido de que não há uma vigência plena das liberdades individuais e uma garantia efetiva da inviolabilidade de direitos. Os exemplos práticos dessas deficiências formam um rosário interminável e culminam com a concentração do poder no Executivo, no flagrante abuso do caráter republicano das Constituição proporcionado pelas medidas provisórias e na falta de controle social do poder, principalmente, do poder administrativo. Tanto governos minoritários anteriores como o governo majoritário de Fernando Henrique se valem de interpretações jurídicas ou legais para contrariar a própria legalidade constitucional. No Brasil, as fragmentárias regras do jogo não são plenamente democráticas. Na maioria das vezes, servem ao poder e aos poderosos.

Articulado com o déficit de liberalismo e democracia, existe o Brasil pré-social. Isto é, a selvageria da exclusão social, as imensas favelas, a fome, a falência da saúde pública, as deficiências na educação pública básica e o analfabetismo, a miséria das aposentadorias, a infância abandonada, os brutais desníveis de rendas e o desemprego. Em muitos aspectos, o atual governo acentua o caráter pré-social do País. Basta ver a diminuição de investimentos em políticas sociais, especialmente na saúde, a reforma da Previdência, que pune os trabalhadores e a classe média, os vetos presidenciais que prejudicam uma política adequada de proteção do meio ambiente e a falta de políticas de emprego. Até mesmo parlamentares governistas reconhecem que o social sofreu desinvestimento. Ante esse quadro se ergue a silhueta de um Brasil pré-Estado de bem-estar social.

O nosso pós-moderno presidente capitaneia um governo que pratica também uma política pré-moderna. Em certa ocasião, declarou que a política do toma-lá-dá-cá havia terminado. O câmbio fisiológico, no entanto, foi prática generalizada tanto na aprovação da reeleição como na votação das reformas. O discurso modernizante das reformas não consegue mais esconder a nova transição das velhas elites. Nesse aspecto, Fernando Henrique foi original na aplicação da máxima "façamos a revolução antes que as outros a façam": historicamente, as elites criaram dissidências para permanecer no poder; agora, parcela da oposição se agregou ao conservadorismo para mantê-lo no poder.

Se há, de fato, alguma coisa de "pós" no Brasil, trata-se do pós-Estado, significando a ausência de Estado como instrumento regulador, fiscalizador, mediador de conflitos e promotor da cidadania e do bem comum. Aliás, o presidente fez saber, esta semana, da existência do pós-Estado por meio de uma declaração de seu porta-voz, Sérgio Amaral. Para a Presidência, os problemas de fornecimento de energia elétrica no Rio de Janeiro "deixaram de ser uma questão de governo". Então, no primeiro ato, o discurso da modernização afirma a necessidade da privatização para que os cidadãos tenham serviços eficientes. No segundo ato, quando os serviços privatizados se revelam uma catástrofe, a função reguladora e fiscalizadora do governo já não existe. Nesse caso, a pós-modernidade nos deixa no escuro.

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