1982-2002

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Central do Brasil: desolação e esperança

Há muitas formas de ver um filme. Com os olhos e as emoções de quem não é habilitado à crítica técnica, quero expor a forma como vi "Central do Brasil", de Walter Salles. Pode-se dizer que o forte do filme consiste na combinação singular de uma bela fotografia com as emoções dos personagens que tecem a trama. No começo do filme, fotografia e personagens circunscrevem a desolação da alma humana. As almas desoladas são jogadas no cenário físico e urbano da própria estação de trens da Central do Brasil. O lugar é sombrio. E lugares como aquele existem multiplicados em todas as cidades grandes do Brasil. Os personagens também são arquétipos e, por isso, o filme consegue retratar os traços psicológicos e culturais da alma brasileira.

A Central do Brasil e seu entorno parecem ruínas de guerra sem que tenha havido uma guerra por lá. A fotografia do filme capta a melancólica degradação do ambiente por onde passam multidões de pessoas degradadas em suas condições de vida, solitárias no seu desespero e cindidas em suas afetividades. As pessoas que vivem o dia-a-dia da Central, como Dora e Pedrão, são moralmente desestruturadas. Enganam ou exploram outras pessoas para sobreviver. A miséria produz seus próprios tiranos. Não há solidariedade. Dora convida Josué para a sua casa com o fim de tirar proveito ao vendê-lo.

Paradoxalmente, é neste ambiente de terrível desolação onde se insinuam tentativas de recomposição da alma, onde o espírito busca algum conforto e onde os tênues laços que ligam as pessoas procuram se sustentar em suas precariedades. A recomposição se revela nos sentimentos humanitários de Irene e nos nordestinos, analfabetos, que vêem em Dora um meio de se comunicar com os seus familiares que estão longe. É ali na tristeza da Central do Brasil onde os nordestinos despem sua alma, violam sua intimidade expondo seus sentimentos à uma desconhecida. De suas bocas sopram palavras que manifestam desejos de recuperar o calor humano perdido.

A ambiguidade moral de Dora também começa a se manifestar na Central. É esta ambiguidade, somada ao sonho de Josué de encontrar o pai e às expectativas remotas dos nordestinos, que começa a construir as pontes da esperança. A esperança vai se sacramentar num outro ambiente de desolação, não mais da alma, mas da natureza. Jogados contra a beleza rústica das montanhas de rochas, no Nordeste, Dora e Josué reconstroem a afetividade, a solidariedade e o conforto que cada alma precisa encontrar em outra pessoa. Josué vai dissolvendo as desconfianças que tinha de Dora. Dora vê algum sentido nobre em ajudar Josué. Ela vai recompondo a sua moralidade.

Ao deixar Josué com seus irmãos, Dora dá às crianças brasileiras abandonadas um lar e um amparo que merecem. Josué não encontra o pai e sente saudades de Dora que parte, mas sabe que está em segurança. Dora chora ao partir, mas sabe que cumpriu um dever e que recuperou sua dignidade. A cidade nova de Josué também é uma ilha de esperança.

Em suma, Walter Salles inaugura uma nova abordagem do principal drama do Brasil: a questão social. É uma abordagem que não adota o prisma ideológico e não limita à mera denúncia. O que emerge do filme são características culturais e os valores do povo brasileiro. As pessoas são excluídas, pobre e analfabetas, vivem no meio da violência e na solidão, mas sonham com um futuro melhor. As pessoas buscam saídas, ligações. E mesmo que o sonho ideal não se realize, como ocorre com Josué que não encontra o pai, a busca vale a pena porque os elos de humanidade rompidos podem ser religados e porque algum sentido será encontrado.

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