1982-2002

Artigos | Projetos | Docs. Partidários

Versão para impressão  | Indicar para amigo

Artigos


O apartheid social é uma bomba relógio

Ao desembarcar em Brasília, em 1982, cinco anos depois de sair da cadeia, com um passado de guerrilheiro no Araguaia, eleito pelo PT de São Paulo deputado federal, Genoino foi visto como um xiita, disposto a apagar incêndio usando gasolina, quando os militares ensaiavam uma volta à normalidade institucional.

Mas esse cearence de Encantado, um lugarejo de apenas 100 habitantes, duas fileiras de casas e uma capela, surpreendeu pelas posições assumidas, respeitando os adversários. Tanto é que logo se tornou amigo do então presidente do Congresso Nacional, Jarbas Passarinho, de origem militar, e que certamente não concordava com seu passado no Araguaia.

Combativo, Genoino é um homem sensível, ao ponto de chorar compulsivamente ao tomar conhecimento do acidente que retirou de cena Ulysses Guimarães.

Depois de se eleger na última legislatura com 306.988 votos, a maior votação no país, conquista agora a liderança da bancada do PT. Na entrevista que se segue, o deputado petista alerta quanto ao perigo que a crise social pode provocar.

 

Deputado, a crise é política ou econômica?

Genoino - Eu acho que é tudo junto. Nós temos uma crise econômica do esgotamento de um modelo. Nós temos uma crise social que está comprometendo, eu digo até, um patamar civilizatório de decência social. E nós temos uma crise política que se mistura com a crise de autoridade, porque o presidente da República está assumindo um segundo mandato com o governo envelhecido precocemente. Os erros na condução da política econômica, na montagem dos ministérios, os acordos com o Fundo Monetário Internacional, a queda na opinião pública - e as pesquisas revelam isso. Portanto, nós temos uma crise com todos esses ingredientes.

Qual é o verdadeiro papel do governador Itamar Franco nessa crise?

Genoino - O governador Itamar Franco não deve ser colocado como pivô dessa crise nem como o responsável por ela. Itamar Franco levantou um problema, que na condição de ex-presidente da República e no peso que tem Minas Gerais, esse problema assumiu uma dimensão nacional, que é o problema do endividamento dos estados. Problema este levantado pelo Rio Grande do Sul e por outros governadores. Agora, responsabilizá-lo por esta crise é um equívoco. O que o governo deveria ter feito era, logo após as eleições, sabendo que ia estourar a bomba do endividamento dos estados - e esse endividamento envolve principalmente Minas, Rio Grande do Sul e São Paulo -, ter uma proposta de trégua com estes governadores, abrir uma negociação sobre as condições econômicas desses estados cumprirem os acordos da dívida. O acordo foi feito em um cenário econômico e nós estamos agora em outro cenário econômico. Portanto, nós somos solidários ao governador Itamar Franco. Nós achamos que tem que se buscar uma solução para a crise do pacto federativo, que em última instância este é o pano de fundo, através de uma pauta concreta que certamente vai envolver governadores, o Poder Executivo e o Palácio do Planalto. Essa é a nossa posição.

Quer dizer, Itamar arrancou o pino da granada...

Genoino - O Itamar levantou o problema, e este problema teve uma dimensão porque ele vinha se acumulando ao longo desse processo, que era a crise do pacto federativo, principalmente a partir da Lei Kandir, agravada com o endividamento. Você não pode pegar uma dívida de 15, 10, 20 anos e resolver em um mês. Eu acho que tem que se buscar uma solução política para a crise do pacto federativo.

Agora essa crise não ameaça a democracia em países com um passado autoritário, como o Brasil e a Argentina?

Genoino - A grande questão que mais me preocupa hoje do ponto de vista da estabilidade democrática é a crise social. O risco de caos social, de violência social de uma população deserdada, porque este modelo organiza o mercado, os bens, e o consumo para 1/4 da população, na melhor das hipóteses. O que fazer com o restante da população, que perde emprego, não tem plano de saúde, não tem educação pública decente? Para mim esse é o grave problema que o mundo vive hoje, tanto no Brasil como em outros países que atravessam a barbárie social.

Mas qual é o reflexo político disso tudo?

Genoino - Em relação à crise política, apesar da democracia brasileira precisar de uma grande reforma, por aí eu não temo crise institucional. Para mim, o problema de uma crise política que afete a democracia diz respeito ao risco de caos social e ao descontrole nas relações financeiras entre o governo e os credores internacionais, com consequências graves internamente, principalmente para a área social. E a partir daí você pode ter um problema federativo, porque em uma crise social o problema federativo alcança uma dimensão maior.

O senhor não vê risco de um retrocesso institucional?

Genoino - Hoje eu não vejo esse risco. Nós estaremos prontos para combater qualquer ameaça da democracia. Para nós, qualquer solução para crise política tem que ser com base na Constituição.

O senhor acha que o parlamentarismo seria uma forma emergencial válida, quando o presidencialismo parece enfraquecido?

Genoino - Não! Eu acho que a discussão do parlamentarismo deve ser feita após um plebiscito em que a população autorize. Em segundo lugar, sem mudar as regras do jogo. O mais importante da democracia é a manutenção das regras do jogo. Portanto, qualquer mudança na Constituição que envolva sistema de governo pressupõe um plebiscito que a população autorize, porque houve um plebiscito para o presidencialismo. Nós também não podemos fazer nada que tenha conotação de um casuísmo parlamentar. A reeleição prestou um desserviço à democracia e qualquer outra medida desse vulto certamente vai prejudicar a consolidação da democracia brasileira.

Reeleito, o presidente Fernando Henrique é visto por muitos enfraquecido...

Genoino - Para mim, a reeleição está na raiz dessa crise do governo de Fernando Henrique Cardoso. Ele tinha quatro anos, quis oito e ficou com dois. Na verdade, até os dois primeiros anos de seu mandato, ele governava com grau de legitimidade, de credibilidade e não tinha pelo menos denúncia de toma-lá-dá-cá. A partir da emenda da reeleição, da maneira como ela foi aprovada, ela contaminou o processo político do país. E a reeleição teve dois efeitos negativos: o primeiro foi que misturou a autoridade de chefe de Estado com candidato, e o segundo foi que determinou um jogo político em que a autoridade ficou explícita entre os competidores. E no meu modo de entender, ela compromete o rejuvenescimento das instituições democráticas com a rotatividade, porque quando a pessoa não é reeleita ela vai construir um perfil, uma história. Quando ela é reeleita, vai suceder a si própria, e cai no marasmo, na falta de criatividade.

Isso a nível federal. E o perigo a nível municipal?

Genoino - Aí é muito maior, certamente o Brasil vai acordar para o prejuízo da reeleição após as eleições para prefeito. Se no plano federal e estadual, a eleição de 98 provocou abuso do poder econômico, houve deformação no uso da máquina. Imagine nas eleições para prefeito... Haverá uma deformação nos costumes políticos com uma reeleição que pode custar muto caro para os cofres públicos e para a moralidade pública das instituições.

Deputado, a gente vê, com a reeleição, um clima de paralisia administrativa, de pessimismo. A auto-estima do brasileiro está lá em baixo. Qual é a leitura que o senhor faz deste quadro?

Genoino - Em primeiro lugar eu acho que nós temos um esgotamento. Com a crise do modelo calcado na concepção de sobrevalorizar o real, na concepção de captação de dinheiro lá fora com juros altos e com a queima do patrimônio que foi feita com a mera transferência patrimonialista, com a crise desse modelo e considerando que o presidente Fernando Henrique Cardoso foi eleito no primeiro turno, a população que votou no presidente Fernando Henrique se sente traída, se sente enganada. A Segunda questão é que a discussão no Brasil é rebaixada. Quer dizer, o governo trabalhou com a idéia do pensamento único que não permitiu a credibilidade do debate, e isso tem muito a ver com os espaços de debate oferecidos na mídia. E na medida em que este castelo se desmonta, nós da oposição temos que ter um certo tempo para construir um outro referencial programático. Por isso é que nós estamos vendo uma crise de auto-estima. Porque na medida em que a crise é fundamentalmente social, ela provoca o medo, o desencanto, aquele clima de salve-se quem puder... E o salve-se quem puder provoca inevitavelmente este desencanto e este desânimo.

Qual é o papel que os partidos de esquerda podem desempenhar em um momento como esse de crise?

Genoino - Para mim o papel fundamental é construir um eixo programático alternativo - um outro projeto para o Brasil, uma outra visão de Estado, uma outra visão de inserção do Brasil no mundo, de compromisso social para as maiorias e não para minorias, uma visão do Estado que garanta a fiscalização, a regulação e a promoção da cidadania e rompa com essa promiscuidade do interesse público e privado a que nós estamos assistindo entre o Banco Central e as instituições financeiras.

Quer dizer...

Genoino - Nós temos que, na reforma do Estado, rediscutir o papel público do Estado na relação com a iniciativa privada. Nós temos que rediscutir uma reforma política, que garanta a representatividade, o combate à impunidade e a funcionalidade das instituições. Eu acho que o Brasil carece de uma outra agenda - a agenda da sociedade, trazendo o debate da crise social para dentro do Congresso. Dessa crise social e da mudança no patamar de relacionamento entre empregados e empregadores. A CLT está superada em muitos pontos, é verdade, mas também há propostas do governo de contrato de trabalho temporário, demissão temporária. O trabalho aos domingos piorou mais ainda a situação dos trabalhadores. Então, nós temos que encontrar alternativas para evitar barbáries, a monetarização do país e a financeirização da sociedade, e discutir um país que tenha soberania e autonomia de decisões.

Qual deve ser a relação da União com os estados, e do presidente com os governadores?

Genoino - Deve ser uma relação de parceria. São entes federados e têm que ter uma relação de co-responsabilidade que compõe o próprio nome República Federativa do Brasil numa totalidade. E o presidente da República tem que ter uma relação político-administrativa com os governadores, e vice-versa, de respeito. O presidente da República não pode bater boca com os governadores e nem pode colocar burocratas de plantão para mandar recados para os governadores. São eleitos e estabelecem uma relação de estadista, em que você tem uma relação política-administrativa respeitando as posições políticas de oposição dos governadores.

O senhor acha que a sociedade chegou ao limite de tanto sacrifício?

Genoino - Acho, e ninguém tem o direito de pedir sacrifício para a sociedade. Aliás, eu acho que a sociedade está no limite do sacrifício e no limite da paciência com relação a promessas que foram feitas. Nós tivemos o que representou o Plano Cruzado na década de 80 como uma promessa de redenção social do país e fracassou. Nós tivemos o sacrifício do povo e a promessa do Plano Collor, que fracassou. Nós tivemos agora o fracasso do Plano Real e a promessa que representou. Eu acho que quem governa o país não tem o direito nem de pedir sacrifício para a população nem de frustar a população. Ela foi paciente demais com essa situação e, ao atravessar hoje uma crise de exclusão, de quebradeira, de inadimplência, ninguém pode pedir sacrifícios à sociedade.

Qual a outra opção que o Brasil teria que não fosse a ida ao FMI?

Genoino - Eu acho que o Brasil foi ao FMI porque construiu uma lógica da inevitabilidade de se alinhar com a hegemonia norte-americana, de desenvolver um modelo, porque o Brasil apostou em um cenário único. O Brasil poderia, em primeiro lugar, ter negociado de uma outra maneira com as instituições internacionais. Em segundo lugar, ter buscado opções, no mundo, diversificadas, tanto nas relações com os Estados Unidos, com a Europa, com a Ásia, como também buscado pactos regionais e fortalecendo-os com os países chamados emergentes. O Brasil fechou-se em um cenário que, no meu modo de entender, é o pior para a nossa economia, que é o cenário da hegemonia norte-americana a partir da radicalização - com esse segundo acordo do FMI e com a nomeação do Armínio Fraga para a presidência do Banco Central. Eu acho esse um caminho perigoso.

Por quê?

Genoino - Porque ele pode nos levar a uma dolarização da economia, pode nos levar a torrar o que resta de patrimônio e o mercado ficar inteiramente globalizado, inteiramente dominado, que vai ser um mercado para quem tem dinheiro para consumir, para comprar e viajar. E quem não tiver dinheiro, o que vai fazer? Portanto, eu acho que essa opção foi equivocada, o o Brasil deveria ter adotado outra solução.

A saída é a ruptura total com o FMI?

Genoino - Não temos outra saída senão romper os acordos com o FMI e buscar outro padrão de negociação no cenário internacional.

E esse ajuste fiscal é mesmo uma decisão do governo diante da crise ou é uma imposição do FMI?

Genoino - É uma imposição do FMI, como foi a votação dos inativos e como está sendo a votação da CPMF. E o país vai pagar um sacrifício, como os inativos estão pagando e como o cidadão vai pagar com o aumento da CPMF, para cobrir um buraco que o cidadão não abriu, que não é responsabilidade dele. Portanto, nós achamos que é um ajuste tapa-buraco. Vendo do ponto de vista da lógica do acordo, não vai resolver. Virão mais propostas de ajustes e de cortes, e mais propostas de aumento da carga tributária. Essa lógica de endividamento sem patrimônio para financiar o déficit e os juros da dívida não tem fim. E cada vez que o Brasil aprofunda esta lógica ele fica prisioneiro da própria lógica que escolheu.

A impressão que se tem é de que o Brasil está na situação de que já fez de tudo para agradar o mercado financeiro e não conseguiu. O senhor concorda com isso?

Genoino - Concordo inteiramente. Até porque o Estado brasileiro e o Fernando Henrique Cardoso tratam o mercado como um bebê que precisa ser mimado. O mercado tem seu espaço, sua função, mas não pode ser mimado pelo Estado. O Estado tem que mimar a cidadania, a regulação e a fiscalização, e não proteger o mercado. Ao proteger o mercado como protege, ele está protegendo apenas a parte da população que tem acesso ao mercado. E a população que não tem acesso? Portanto eu acho que em um projeto econômico tem espaço para o mercado, é uma ilusão querer extinguir o mercado. Agora, não se pode aceitar a lógica do mercado como parâmetro para haver a sociedade ou o Estado.

E a sugestão do senador Antônio Carlos Magalhães de se extinguir os tribunais superiores?

Genoino - Depende dos tribunais. Em relação ao Superior Tribunal Militar eu sou favorável, porque eu sou contra a Justiça Militar. Eu acho que tem que ter uma Justiça Militar para julgar e apreciar tipicamente crimes militares. Eu lutei na Constituinte para extinguir a Justiça Militar. Nós temos que fortalecer o Poder Judiciário com autonomia, independência. E isso pode ser feito fazendo uma reforma do Judiciário em que você elimine o carater corporativo da Justiça Militar, possa fazer uma reforma na Justiça do Trabalho, garantindo uma justiça do trabalho mais ágil.

E quanto a legislação trabalhista, que muitos vêem como fascista?

Genoino - Eu acho que a CLT tem muitas conquistas que devem ser preservadas e tem pontos já superados. Nós temos que fazer uma mudança sem cair na perversidade. O fio da navalha é garantir o que são direitos imutáveis e inalienáveis que ninguém tem o direito de mudar, como o direito a férias, a repouso semanal... São direitos essenciais para o trabalhador como cidadão. Para mim, você pode fazer mudanças na CLT resgatando aquilo que é universal nos direitos sociais.

Qual é a prioridade que o senhor estabeleceria para o Brasil nesse momento?

Genoino - Construir um outro modelo econômico. Esse aí está superado, está levando o Brasil para o abismo. Eu construiria um novo modelo econômico, centrado na produção e geração de emprego e renda. Potencializar a diversidade regional com política industrial e agrícola. Compreender que uma ponta da economia é competitiva mas a outra não é. Colocar toda a economia na competição é como querer que todos os carros corram na velocidade de Fórmula Um - vai quebrar tudo. E você contruir um compromisso social. Eu acho que o Brasil, bem ou mal, cresceu economicamente, superou o autoritarismo, com muitas deficiências, mas nós nunca resolvemos o problema do apartheid social na nossa história. No meu modo de ver tem que haver um compromisso social claro, porque o projeto do neo-liberalismo visa a reduzir a cidadania das minorias, e o projeto da esquerda é para universalizar a cidadania básica das maiorias - uma reforma do Estado, com o parâmetro de Estado fiscalizador, regulador e promotor da cidadania. Nem o Estado pode ser patrimonialista como foi no passado, nem pode ser um Estado que mima o mercado como se fosse um bebezinho. Nós temos que ter uma alternativa para pensar o Estado brasileiro. E uma reforma das instituições, que dê credibilidade e funcionalidade às instituições e que as aproxime do cidadão. Eu costumo dizer que os problemas da sociedade andam na velocidade da Fórmula Um e as instituições de bicicletas, e isso cria um descompasso muito grande.

Com o presidencialismo, o presidente da República não tem poder de monarca?

Genoino - O presidencialismo brasileiro superdimenciona o poder do presidente da República. É um presidencialismo imperial, que além do poder da caneta e da chave do cofre, tem o poder das Medidas Provisórias, de propor emenda constitucional e iniciativas de lei com prazo para votar, que é a chamada urgência constitucional. Eu acho que nós tínhamos que alterar este presidencialismo para democratizá-lo. A existência de Medidas Provisórias é uma excrecência no presidencialismo. Ou nós extinguimos a Medida provisória ou nós a limitamos só para questões de câmbio, moeda e casos de guerra. E não pode ter reedição porque a Medida Provisória é uma medida cirúrgica com andamento determinado e não pode se alongar no tempo como acontece por aqui, onde algumas são reeditadas 40, 30 vezes. Se nós não democratizarmos o Poder Executivo, teremos uma tendência ao enfraquecimento do Legislativo, a uma tutela do Judiciário e a uma sociedade de massa que fica à mercê de uma autoridade messiânica do presidente da República.

Ainda é possível salvar o Brasil de um desastre total?

Genoino - Eu acho que o Brasil é maior do que qualquer governo. E, apesar de tudo o que aconteceu no nosso país, o Brasil tem uma potencialidade do seu povo, do seu tamanho, da sua diversidade eleitoral, dos seus aspectos culturais. Nós podemos viabilizar um país civilizado, democrático e justo, construindo um novo modelo econômico centrado na produção. Um país como o nosso não pode ter um modelo econômico centrado no monetarismo dogmático. Um país com essa dimensão, com esse tamanho, com essa diversidade, é bem maior do que qualquer desacerto de qualquer governo.

Busca no site:
Receba nossos informativos.
Preencha os dados abaixo:
Nome:
E-mail: