1982-2002

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Ética na política

Agradeço à Federasul. É uma honra participar de uma mesa com Cesar Maia, Emerson Kapaz, e mediação de Carlos Tramontina. Agradeço a presença de vocês, e a atenção.

Ética e Política caminham juntas mas têm autonomia. A ética referencia a política, principalmente no terreno dos valores, e a política arbitra, numa relação de confronto e de negociação, aquilo que é entendido como o bem público, como o bem comum, como aquilo que é universal. Portanto, a política sem valoração ética é uma mera extensão de interesses ou - como no passado era entendida -, mera extensão da guerra, em que um lado tem que destruir o outro.

Esse debate é fundamental nos dias de hoje, porque vivemos uma crise de valores, de esperança, de auto-estima. Essa crise não será resolvida sem a recolocação da política como elemento que se sustenta em valores éticos. No meu modo de entender, esses valores éticos estabelecem uma relação intrínseca e direta entre os objetivos da política e os meios que a política constrói - para não adotarmos aquela máxima de que os fins não justificam os meios. Há uma relação entre os objetivos e o caminho pelo qual vamos perseguir esses objetivos.

Vivemos uma crise no Brasil, de dimensão macro, grande, estratégica. Vivemos episódios marcantes da nossa história, em que a crise ética, a questão da corrupção, foi colocada de uma maneira muito forte. Presenciei de maneira dramática todos esses fatos do Congresso Nacional, e ouso dizer a vocês que, sem corrupção, o Brasil é plenamente viável, não tem problema nenhum. É um país viável, tem uma diversidade, uma vitalidade, uma criatividade, uma generosidade, uma riqueza, muito grandes.

A corrupção no Brasil, a falta de ética no tratamento da coisa pública, foi ao longo da nossa história um instrumento de acumulação privada, em que o público e o privado se misturam e se confundem. Primeiro, pela nossa formação econômica, nossa formação histórica, do velho patrimonialismo. Agora, com esse novo modelo de fusão patrimonialista, em que não se sabe onde começa a esfera pública e termina a esfera privada. Está aí o episódio do Banco Central com os bancos privados. Está aí o episódio do BNDES com as empresas privadas. O antigo Conselheiro do Ministro das Comunicações, que desenhou o modelo de privatização, vira presidente de uma empresa privatizada em São Paulo, o caso da Telefônica.

Quero dizer isso a vocês porque um jornalista - muito amigo seu, Tramontina, e por sinal muito respeitado, trabalha inclusive na emissora em que você trabalha – e eu estávamos conversando sobre a crise. O pai dele é ex-Senador, foi cassado e já faleceu. Ele disse que esse exemplo nunca saiu da cabeça dele. O pai dele era Diretor do CADE na época em que o poder ficava no Rio de Janeiro - Juscelino Kubitschek. O pai dele ia de carro para a sede do Conselho de Defesa do Direito Econômico, e passava na mesma rua do colégio. Um dia ele pediu carona ao pai:

Me leve de carro oficial, porque você me deixa na porta do colégio.

O pai dele disse:

Não posso fazer isso, porque esse carro tem uma placa oficial e tem a finalidade de me levar ao trabalho. Se eu coloco você aqui dentro, eu posso desviar, eu posso ir para a outra rua, e estou quebrando aquele limite entre o público e o privado.

Para mim, a questão central da ética no tratamento da coisa pública é a separação de esfera entre o público e o privado. Porque o público tem a sua finalidade universal, de arbitragem, de defender a sociedade. O privado tem a sua lógica, a sua finalidade. Quando as duas esferas se misturam, por exemplo na crise do orçamento - o que gera a crise da corrupção, no orçamento? - é porque se misturam o interesse privado com o interesse público. A crise que nós vivemos na CPI do PC, na discussão, muitas vezes, sobre imunidade parlamentar, ocorre quando se mistura o privado com o público.

No meu modo de entender, a grande questão que se coloca para a Reforma do Estado é essa esfera pública reguladora, fiscalizadora, com autonomia em relação ao interesse privado para arbitrar, para fazer a parceria com entes autônomos indiferentes. Quando existe a promiscuidade e a intimidade, você abre a porta para quebrar com aqueles princípios constitucionais que o Cesar Maia colocou aqui, conforme a Constituição.

Há um outro elemento importante na discussão da ética na política, que é o controle da instituição política. Refiro-me aos três poderes. Não existe poder que se baste a si mesmo. O poder tem que ser controlado publicamente: do ponto de vista da sua função legitimadora, que é o processo eleitoral, no caso legislativo e executivo; do ponto de vista do seu funcionamento; da sua produtividade, da sua qualidade; e do ponto de vista do processo crítico. Os integrantes desses poderes recebem o ônus e o bônus na relação da ética pública.

Vamos pegar o exemplo do parlamentar. O parlamentar, ou qualquer cargo eletivo, se legitima pelo voto. Portanto, ele tem a função de representação. Não tem uma função de extensão da sua pessoa enquanto indivíduo. A partir do momento em que ele se diploma e passa a ter o cargo de representação da sociedade, ele tem a imunidade política para exercer a função de representação. Conseqüentemente, ele tem que deixar de ter, numa concepção da mistura da ética com a política, o sigilo bancário fiscal. Porque o seu patrimônio e o seu salário são públicos, conforme a peça orçamentária. Portanto, o político eleito não devia ter sigilo bancário fiscal, a partir do momento da sua diplomação, porque a sua função é um contrato público com a sociedade. Nesse contrato público, o privado é a sua vida íntima, e isso tem que ser preservado. Mas a sua movimentação fiscal e financeira é pública, porque ela espelha uma relação contratual com a sociedade.

A imunidade parlamentar. A imunidade é para exercer a função política e pública do mandato. Quando se sai daquela função política e pública do mandato, não se pode ter imunidade, por exemplo, para crime comum. Não se pode ter imunidade para crime cometido fora do exercício do mandato, que é: falar, fiscalizar, votar e representar.

A questão, por exemplo, que acho importante, é a da relação do parlamentar, ou do representante eleito no Legislativo e no Executivo, com a instituição, a sociedade. Vamos tocar aqui na questão do lobby, que é o instrumento de transparência da pressão da sociedade. Ele é anti-ético, ou ilegal, quando ele estabelece uma relação promíscua e não transparente com a função de legislar. Quando ele se expressa de maneira transparente para pressionar, para reivindicar, seja um orçamento, seja um interesse de uma empresa, ou de um grupo econômico, é uma função legítima, porque o Congresso arbitra interesses. Não é uma extensão, mera evidência. Arbitra interesses que devem ser colocados de maneira clara e transparente, os privados, os corporativos. O Congresso tem que arbitrar esses interesses dentro da sua visão de universalidade. Por isso a legalização da pressão da sociedade junto aos poderes constituídos é algo fundamental para a instituição e para o exercício e a preservação do mandato parlamentar.

A questão, por exemplo, do controle público, da máquina, do governo, e do Poder Judiciário. É um elemento central nessa relação da ética com a política, porque o ato de julgar é intrínseco à função de juiz. Mas o ato de governar a máquina, o prédio, o contrato de funcionário, não é intrínseco à função de juiz. Por isso deve haver controle público do Poder Judiciário, que é o chamado controle externo.

Existem certas instituições da máquina estatal que têm um outro ônus e um bônus. O bônus de ter uma diferenciação salarial, por exemplo, de ter um cargo com a função de fiscalizar, de arrecadar, de prender, de ter a informação, e de julgar. Mas deve ter o ônus das proibições. Aí é que entra a discussão ética da quarentena, tanto para pessoas do Banco Central, da Receita Federal, como pessoas do Judiciário, que não podem sair de um Tribunal e ir para um escritório de advocacia, particular. Porque aí você separa o tema entre a função pública e a privada. Essas instituições representam a função estatal, no sentido dos interesses gerais da sociedade. Portanto, essas funções têm que ser de carreira, não podem ter a influência política no sentido do acordo, da divisão do bolo. Deve haver uma função que preserve pelo lado do conhecimento, do valor ético, e ao mesmo tempo, por essa separação em relação ao interesse privado.

Essa crise, Cesar Maia, você que foi um lutador para regulamentar o artigo 192 da Constituição, em 1991, e até hoje não foi regulamentado... Essa discussão da independência do Banco Central hoje é ótima para ser discutida desde esse ponto de vista. Independência de quem? Para quem? Em função de quem? Porque se colocava que a independência do Banco Central era dos parlamentares e dos políticos. O problema é fundamental para uma instituição como: o Banco Central, para ela ter a sua autoridade fiscalizadora e reguladora; a Receita, para ter a sua autoridade fiscalizadora e reguladora; a Agência Brasileira de Inteligência, por exemplo; a Polícia Federal, por exemplo; são instituições nobres da função do Estado, porque são funções essenciais para que o Estado funcione, nesse processo de arbitragem da sociedade.

Essa é a grande reforma que, se não acontecer, poderemos ter um processo de apropriação privada dessas funções nobres do Estado. Isso está colocando uma crise, no meu modo de entender, no nosso modelo de reforma do Estado. Porque hoje os interesses privados se fundem com os interesses públicos, numa relação que não é a mega obra super faturada, ou a propina de tipo clássico, que existe em São Paulo. Nós estamos convivendo hoje, no Brasil, com as duas pontas da relação dramática da falta de ética na política: da propina do fiscal e do trabalho informal para sobreviver, até a sofisticação de uma resolução do Banco Central, em relação a determinada mudança da política cambial.

Esse nível de preparação do poder público para enfrentar a competitividade globalizada, para enfrentar a disputa de interesses, para enfrentar uma sociedade cada vez mais angustiada que, digo, caminha na velocidade de Fórmula I com seus problemas, e um Estado que tem uma velocidade de bicicleta ou de fusquinha, com muita dificuldade para andar -, coloca um problema de legitimação das instituições democráticas. Aí, a questão da política como fonte legitimadora e constituinte da democracia, que resgate na cidadania a sua função nobre, se coloca em cheque por um processo do salve-se que puder, da justiça com as próprias mãos, do individualismo de uma competição destruidora, ou então, dos fenômenos como o que nós estamos vivendo hoje, em que a anormalidade é aceita pela sociedade como estado de inanição. A pior coisa para um país, para uma sociedade civilizada, é o estado de inanição: começar a dominar as pessoas num processo que cause violência, em que as referências éticas e políticas perdem o seu sentido hierárquico dos poderes, dos representantes desses poderes, e das instituições.

Certamente, acho que entramos num debate aqui fundamental, que é a relação ética e política entre a legalidade e a legitimidade. A relação tensa entre legitimidade e legalidade tem sido um dilema da democracia, porque ao longo dos tempos, a democracia institui direitos e busca construir uma legalidade para esses direitos. No terreno ético, estamos vivendo esse debate, por exemplo, na CPI do Senado.

Eu estava respondendo ontem, para um jornal do Ceará, uma pergunta sobre a relação ética e a legalidade da decisão do Ministro Sepúlveda Pertence, em relação ao depoimento do Chico Lopes. Eu dizia que ele buscou o termo correto para garantir a legalidade e a legitimidade num terreno ético. Por que? Porque quando se faz a investigação, os direitos individuais, portanto os direitos da cidadania, se constituem num acúmulo histórico universal. Agora também há relação tensa com as mudanças da lei, para que esse direito não se torne um arbítrio absoluto em relação à coletividade. Aí é que se coloca, no meu modo de entender, a questão de que a finalidade da discussão da ética e da política em relação às normas e aos valores, oferece um terceiro elemento. Esse terceiro elemento da minha colocação é fundamental, no meu conceito de utopia e sonhos para pensar o mundo, neste final de século no Brasil, que é exatamente o padrão de decência social que nós vamos construir civilizadamente, democraticamente no nosso país.

Hoje há um risco de ruptura com o padrão civilizado dos direitos sociais básicos, em que a cidadania é coisa no sentido da degradação da pessoa humana. Por isso o poder público tem que buscar nas leis e nas normas a finalidade de promover a cidadania. Estou falando em cidadania, aqui, no sentido básico da política. Não estou falando da cidadania no sentido da igualdade absoluta. Estou falando de cidadania no sentido da condição das pessoas serem gente, terem vontades, desejos, e pelo menos expressarem esses desejos, enquanto condição material de vida. Esta função do bem estar da comunidade é um problema, hoje, num país como o Brasil, como é também um problema dos países desenvolvidos. Aí se coloca, na relação com o interesse privado, um novo tipo de debate: se o Estado não é mais aquele antigo empresário que gerenciava a produção. Também o interesse privado não se sobrepõe a essa exigência de cidadania para a coletividade em bens básicos, sob pena de se cair numa guerra que não tem limites. Nela, os incluídos, cada vez mais, diminuem; e os excluídos, cada vez mais, aumentam. Nessa ruptura do pacto civilizatório, nós entramos numa guerra em que não se sabe de onde vem o tiro, nem onde se esconder, nem de onde vem o medo.

Daí a discussão da relação: com o interesse privado, do lucro que tem a sua legitimidade na sociedade democrática; com o direito de propriedade, que tem a sua legitimidade na sociedade democrática; com a competição, com a concorrência. Acima disso, e são legítimos, existem os valores da solidariedade social, do humanismo, da cidadania, que regulam o padrão civilizatório de uma sociedade em que não se cai na lei do cada um por si, e todos que se virem para o abismo da desesperança.

A função do Estado é esta. Daí a discussão, por exemplo, da relação com o interesse privado. É legítimo o Estado ter uma relação de parceria com o interesse privado? É sim. É legítimo o interesse privado, por exemplo, em relação a uma questão que é pública, saúde? O plano de saúde, é. Agora, as regras do plano são diferentes das regras de seguro de carro, porque a vida é diferente de carro. As regras do serviço como telefonia são diferentes, por exemplo, das regras da construção de estradas. Não as regras do ponto de vista do processo licitatório, mas do ponto de vista da cobrança, da fiscalização, e dos mecanismos de controle do poder público. A função do poder público é promover cidadania e garantir, na regulação e na fiscalização, esses interesses.

Qual é a crise que está rondando o nosso país? É que toda a sociedade diz o seguinte:

Todo mundo perdeu. Do mais rico industrial, do maior proprietário de terra no país, ao mais coitado do aposentado que está debaixo da ponte, ou do desempregado.

Quando a sociedade percebe que todos perderam - para o Brasil passar por essa crise recente, meia dúzia não perdeu, até lucrou -, rompe com limites da valoração ética no pacto civilizatório da sociedade organizada. Quebra-se isso. Na hora em que se quebra isso, estabelece-se uma hierarquia dos valores, um jogo do tudo ou nada lá em baixo. Porque lá em baixo, a leitura que o coitado vai fazer, é a seu modo, de acordo com o seu nível e sua cultura.

Portanto, eu quero ser otimista. Ser otimista é recuperar um conceito de reforma política, um conceito de valores éticos, um padrão civilizatório para a função pública do Estado, na função legislativa, na função executiva e na função judiciária, tendo como razão constituinte e legitimadora a produção de uma sociedade civilizada, uma sociedade com grau de decência social, uma sociedade em que as pessoas não são coisas no sentido de objetos, que podem ser excluídos de qualquer tipo de gente. Essa idéia de coisa se torna um processo de causa e violência, que coloca a sociedade em medo. Temos que recuperar, nesse sentido, a auto-estima e a esperança, com essa discussão de Ética na Política.

Muito obrigado. Parabéns à FEDERASUL por promover este tipo de debate

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