1982-2002

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O papel do histórico do Poder Legislativo

ROBERTO GOUVEIA - Agora o deputado federal José Genoino, que dispensa apresentação, democraticamente também vai fazer uso da palavra.

JOSÉ GENOINO - Permitam-me destacar que é uma satisfação estar aqui com os alunos do Colégio Equipe, que foi onde iniciei minha experiência dando aulas em São Paulo, quando o pessoal não sabia nem o que eu era - eu era um cidadão misterioso, que não podia dizer de onde vinha, pois estava clandestino.

Discutir o Poder Legislativo é debater os dilemas da democracia contemporânea. Eu gostaria de partir de três pontos centrais. Além dos problemas das normas, da periodicidade, das regras da democracia representativa, hoje temos um mais grave se agregando, que é O mecanismo de controle dos poderes, seja do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário. Hoje a sociedade - com a revolução tecnológica, com as mudanças econômicas e com a dinâmica do consumo - caminha numa velocidade de fórmula um, e a impressão que se tem dos Poderes é que andam de bicicleta. Há um descompasso muito grande, que acaba gerando um processo de crise da funcionalidade das instituições democráticas - qualidade dos recursos do Poder Judiciário, a morosidade etc. Digo isso para situar nesse debate um grande problema que surgiu paradoxalmente após a democratização, que é exatamente o enfraquecimento do Poder Legislativo e o fortalecimento do Poder Executivo. O Poder Executivo acabou usurpando funções legislativas - e na Câmara Federal isso é evidente - com as medidas provisórias, com a iniciativa do presidente da República de mandar emenda constitucional e com a prerrogativa de enviar proposição com urgência constitucional de 45 dias. Com esses três instrumentos, o Poder Executivo usurpa a função do Poder Legislativo, e essa usurpação, se considerarmos que nos últimos anos tivemos cinco planos econômicos, todos eles baixados por medidas provisórias - e planos econômicos que mudaram as vidas das pessoas, a caderneta de poupança, o preço dos produtos, o sistema financeiro etc. -, foi uma característica desse processo de democratização pós-regime militar. Essa questão envolve diretamente o Parlamento nacional.

No nível do Parlamento estadual, acho que temos um outro problema a diagnosticar, porque é a crise da federação afetando diretamente as Assembléias Legislativas. Na verdade, estamos vivendo uma crise do pacto federativo. O que compete aos entes federados - União, Estados e Municípios? Quais as competências definidas desses entes federados? O processo de democratização do País resgatou a luta contra a centralização, que, como falou aqui o Edgard, era o símbolo do regime autoritário e militar. Mas o processo de luta contra a centralização que veio em seguida foi revogado, com os planos econômicos, para o fortalecimento do poder da União, criando uma espécie de volta ao Estado unitário, que é um pouco o dilema que na história do Brasil sempre existiu - Estado unitário e Estado federado. Nós não temos um equilíbrio federativo, e esse problema diz respeito ao papel, ao espaço e à função das Assembléias Legislativas.

Entendo que a questão, hoje, da crise do Poder Legislativo, tem de ser analisada do ponto de vista de uma grande reforma desse Poder, a qual teria de dar conta também de três aspectos a um só tempo. O primeiro é o problema da representatividade do Poder Legislativo, a qual não é resolvida só porque há eleições periódicas. Também as normas das eleições periódicas acabam deformando a representatividade. É bom deixar isso claro, porque se vier o voto distrital misto, essa crise vai se agravar nos parlamentos, tanto em nível estadual como nacional. Aproveito e coloco isso aqui para debatermos. A representatividade diz respeito a uma aproximação cada vez maior entre o exercício da cidadania e o Poder Legislativo. O que está acontecendo hoje? Na relação da sociedade com o Poder Legislativo acontece o mesmo fenômeno que acontece no âmbito econômico e da comunicação. Quem pode, quem tem mais recursos fiscaliza mais o Poder Legislativo, porque tem a assinatura do jornal, TV a Cabo e Internet. A grande massa popular não tem condições de acompanhar ou fiscalizar. Há um processo de reprodução na relação do Poder Legislativo do "apartheid" social como uma espécie de "apartheid" político, o que é grave. Por quê? Porque a exclusão social coloca a massa humana como mercadoria para ser mercadejada nos processos eleitorais por fisiologismo, por promessas etc. Isso acaba deformando a representação política do Parlamento.

Temos de discutir o problema da representatividade dos parlamentos, que é aproximar a sociedade deles. Isso vai desde as regras eleitorais. Quando a gente discute financiamento público de campanha, nós estamos discutindo a representatividade das instituições, porque a democracia parte do pressuposto de que os concorrentes são iguais para perderem ou ganharem. Quando os concorrentes são desiguais desde o princípio, é como num campeonato - você sabe que haverá vários jogos, mas já sabe quem será o campeão. Isso não é democrático. Nesse sentido, o problema da representatividade é fundamental. Vai desde as normas eleitorais até o processo de construção do que chamo o processo de legitimação social das leis.

No Brasil há uma discussão em torno de a lei ter de ser de tal maneira técnica e acadêmica como se o Parlamento fosse uma casa de sábios e especialistas. A lei tem de misturar a legitimação social com a competência técnica, senão nunca será legitimada. A lei tem de sair da cultura das urnas, das ruas, dos contrachoques dos diferentes interesses, porque se não for assim, qual é o sentido do Parlamento? O Parlamento não forma vontades a partir de uma posição majoritária. Suas vontades se formam através de um processo combinado de consenso e dissenso. Esse processo vai produzindo, no conflito, uma legitimação para as leis. A feitura social das leis é assim. Nós não podemos imaginar um Parlamento em uma sociedade de massa como se fosse uma espécie de academia de letras que se reúne depois das quatro, e aí o pessoal vai fazer aquela coisa academicamente perfeita. A lei tem de ser perfeita, mas ela tem de ter o calor da disputa política. O Parlamento tem de produzir uma legitimação social no processo legislativo. Acho isso fundamental. Não podemos ter uma visão elitista do Parlamento. Este tem de trazer a sociedade com a sua cara, com o seu jeito, para o processo de elaboração do confronto. A representatividade do Parlamento tem de ser corrigida do ponto de vista de uma maior aproximação com a sociedade.

A segunda questão é a transparência do Legislativo. O processo de democratização do País, em vez de produzir o Legislativo com um nível de transparência muito grande - porque a ditadura era a negação da transparência - com as normas de funcionamento das instâncias, acabou escondendo o processo legislativo do controle público, e é por essa falta de transparência que se criou a cultura da impunidade. Nós tivemos escândalos. Muitas vezes, dois ou três escândalos em qualquer Casa Legislativos são suficientes para detonar a legitimação da instituição. É o problema da transparência. No Parlamento há outro debate sério: o que é salário e o que é mandato? - a separação entre o privado e o público. Para mim, salário é para o deputado viver enquanto pessoa física. Fora de salário, ele tem de exercer o mandato enquanto função pública. Para o exercício daquele mandato, o Estado banca e tem prestação de contas conforme verbas orçamentárias. Quando se mistura o que é salário do indivíduo pessoa física com o do indivíduo pessoa jurídica, essa promiscuidade gera esses escândalos que costumamos ver, que acabam atingindo o Parlamento, porque não se separa o agente privado da esfera pública.

A questão que mais me chama a atenção nessa reforma do Legislativo é a funcionalidade, que diz respeito à agilidade com que o processo legislativo responde à sociedade. Primeiro, temos que criar no Legislativo fóruns adequados para que a sociedade entre, seja através de seminários, audiências públicas, iniciativa popular, democracia participativa ou semidireta. Se nós não avançarmos nos instrumentos de democracia participativa, só o setor que tem acesso à Internet e à TV por assinatura vai participar da democracia. E quem é que acompanha esse processo? É uma elite da sociedade. Esse processo pode elitizar a participação. É por isso que temos de instituir a audiência pública, seminários, assinatura, referendo, senão iremos combinar a exclusão social com a exclusão política, o que vai resultar numa sociedade organizada por um quinto da população, e os quatro quintos restantes que se virem - ninguém sabe como é que eles vão sobreviver nesse processo de relação. A funcionalidade também diz respeito ao processo legislativo. A estrutura dos parlamentos tem de estar em função da sua finalidade principal, que é a representação, a legislação e a fiscalização. Muitas vezes a estrutura burocrático-administrativa dos parlamentos não privilegia a sua atividade-fim, que é plenário, comissão, liderança.

Há uma estrutura que é pulverizada num somatório individualizado de mandatos. É claro que a origem do Parlamento remonta aos mandatos, e este tem sua individualidade. Até costumo dizer que o mandato tem uma cara individual e uma coletiva, que é o partido. Uma cara do mandato é a sociedade, a outra é o partido. O mandato tem essa dupla face. Mas se o Parlamento não tiver um corpo que se volte principalmente para o processo-fim, para a atividade-fim, temos um enfraquecimento. E quando o Parlamento vai se sentar para discutir um projeto de lei ou uma comissão de investigação com, por exemplo, técnicos de instituições privadas, no caso de "lobby" ou de instituições públicas, com grande quantidade de especialistas, como no caso da Receita Federal ou do Banco Central, a função do Legislativo fica evidentemente comprometida, se não tiver informação e conhecimento, porque o processo legislativo é a um só tempo pluralista e universalista. O deputado tem de dar conta de vários assuntos e ao mesmo tempo tem de se especializar. Por isso eu costumo dizer que o Parlamento tem mais ou menos três tipos de deputados. Há o deputado especialista em determinadas áreas, o deputado com uma vocação universalista, e há o que representa regiões, categorias ou determinados interesses legítimos. É assim que se forma o Parlamento. A riqueza do Parlamento é a formação dentro dessas vertentes. A vontade política do Parlamento se dá no choque e no entrechoque. A sociedade reclama, muitas vezes estimulada pelos meios de comunicação, da demora em fazer uma lei. Como se o processo de feitura de uma lei fosse o presidente da República assinar e ponto final. Há o debate, a divergência, o conflito. É assim porque se não institucionalizar o conflito na democracia, acaba-se não tendo um processo democrático legitimador permanentemente. Entendo, então, que esses três elementos - a representatividade, a transparência e a funcionalidade - são objetivos para se encontrar numa grande reforma do Poder Legislativo.

Quanto à relação com o Poder Executivo, acho que no Brasil temos historicamente uma relação de oito ou oitenta. Ou o Parlamento se afirma quando entra numa crise, que projeta o Parlamento ou o derrota - foi assim nos períodos militares, de ditadura, de "impeachment" ou de CPI - ou então se vai para o oito, que é o Parlamento como uma espécie de anexo do Poder Executivo: a agenda é do Poder Executivo, a pauta é do Poder Executivo, a vontade é do Poder Executivo, ou seja, não conseguimos construir o Parlamento enquanto um Poder que tenha a sua autonomia, que ora faz oposição, ora faz situação, governo. Nós não temos no Brasil a experiência de um Parlamento enquanto Poder. A agenda do Parlamento tem de ser essencialmente a agenda da sociedade, porque a do Executivo é a de quem foi eleito para governar. Quem representa a agenda da sociedade? É essencialmente o Parlamento.

Muitas vezes o Parlamento não representa a agenda da sociedade, porque, na relação com o Executivo, ele se transforma no que eu chamei de oito ou oitenta, sem nunca ser autônomo para exercer sua função de Poder. Nessa relação com a estrutura de poder do Congresso, e imagino também das Assembléias, transferimos para dentro do Legislativo a concepção presidencialista que existe no Brasil. Na maioria, pelo menos no Congresso e na Câmara funciona assim, a estrutura é presidencialista. O deputado está lá embaixo. É mais ou menos assim: Presidência, Mesa, Comissão, Liderança e Deputado. Deveria ser o contrário: haver o espaço do deputado enquanto agente público. Deveria se priorizar as comissões enquanto fóruns para a produção das políticas, onde se faria a elaboração, discussão, produção, plenário e, subsidiariamente, a Mesa, que não deveria ser presidencialista, como acontece, por exemplo, no Congresso Nacional. Por ser a Mesa presidencialista, não há colegiado político para produzir um projeto de lei, uma determinada iniciativa. A iniciativa do deputado é individual ou é do partido, e nunca um projeto que envolva o corpo de direção da Mesa, porque dentro do Legislativo funciona o viés presidencialista. E como se radicaliza esse viés lá embaixo? Da seguinte maneira, que é o pior caminho: é o processo verticalizado de cima para baixo. E quando chega no deputado? O deputado tem de se virar, é o salve-se-quem-puder, porque o Parlamento também individualiza e radicaliza a atuação do deputado. Esse é o problema. Nós não temos os corpos coletivos de produção de idéias e debates - que estão enfraquecidos - e que no meu entender são as bancadas, as comissões e o plenário. Para mim - pelo menos estou muito baseado na experiência da Câmara - o funcionamento das bancadas, das comissões e do plenário é que dá o sentido coletivo ao que chamei de dilemas do Parlamento, que é disputar, conflitar e produzir dissenso e consenso. Isso só é possível se houver fóruns legitimados para esse processo. No meu modo de entender, há essa disputa, que não está resolvida na organização interna da estrutura de poder, de como o poder é exercido dentro do Legislativo.

Na verdade, o deputado não é a base do Legislativo. Ele é formalmente. Ele entra numa guerra de sobrevivência, o processo legislativo individualiza-se num limite máximo e, muitas vezes, como por exemplo na nossa experiência de partido, que é uma experiência coletiva de bancada, a gente tem de fazer um esforço muito grande enquanto bancada coletiva, porque o Parlamento é dispersivo por natureza, quando deveria ser exatamente o contrário. É característica do Executivo ter vontade unipessoal, dada por uma decisão majoritária do eleitor. No Legislativo é o contrário. Nós deveríamos criar essas condições. Eu sei que o que estou falando aqui pode ser difícil, na medida em que é da natureza do processo legislativo esse nível de conflito e de disputa, mas não vejo condições de enfrentarmos o novo papel do Legislativo nos dias de hoje se não atacarmos ao mesmo tempo esses três aspectos.

O primeiro é buscar uma legitimação do Parlamento. A democracia hoje está deslegitimada, preocupantemente, junto à população jovem - e por isso é importante estes jovens estarem aqui - que está tendo uma relação negativa com a democracia e com as instituições.

Porque a democracia e as instituições estão virando sinônimo de privilégio, de sacanagem, de toma-lá-dá-cá, de aproveitamento. Essa função nobre da democracia nós temos então de enfrentar na reforma política. A segunda questão é o resultado para o cidadão, que tem de saber que A Assembléia e a Câmara mudam a vida dele, porque, se ele não sentir essa relação, não descobre o sentido da representação e do processo legitimador dessas instituições. Por isso aprendi muito no Parlamento, onde minha experiência sempre foi no microfone, como parlamentar. Eu gosto de exercer esse nível de disputa. Nunca exerci cargo de Mesa, nem em comissão na Câmara Federal. Aprendi muito porque o Parlamento dá a noção de disputa e de radicalidade e, ao mesmo tempo, a possibilidade de buscar consenso na disputa, sem maquiá-la. Como se diz, toda pessoa no Parlamento tem de ter cara e tem de ter lado - a pior coisa é um deputado sem cara e sem lado. Mas o fato de ter cara e lado e saber a mesa em que se senta não significa que deixe de conversar com o outro, porque somos obrigados a conviver e a conversar numa relação política, que é essencialmente conflituosa.

ROBERTO GOUVEIA - Nós temos também várias perguntas para o José Genoino. Pergunta do funcionário Hamilton de Ataíde do Passo: "Como realizar o papel do Poder Legislativo estadual, de feitura social das leis, de viabilizar o entrechoque de idéias políticas e sociais, quando se mantém o mecanismo de votações em regime de urgência? Como retirar de nossa cultura a centralização presidencialista? Apesar de o Parlamento ser um verdadeiro governo, fazendo lei no regime democrático, e o Executivo sendo apenas executor, qual o caminho para o coletivo Parlamentar governar realmente?" Pergunta de Carmen Araújo: "A palavra processo remete à idéia de tempo, de evolução paulatina, processo histórico, processo biológico etc. Como conjugar celeridade e processo legislativo?" Perguntas da funcionária Else Carvalho: “Considerando que as leis devem originar-se do clamor popular, havendo necessidade de maior integração entre o Poder Legislativo e a sociedade, por que o senhor acha que o voto distrital irá agravar os problemas de representatividade? O que o senhor acha do voto deixar de ser obrigatório? Gostaria que esclarecesse melhor sua opinião sobre o voto distrital misto."Tem a palavra o deputado José Genoino.

JOSÉ GENOINO - Primeiro, eu concordo com as observações de que as competências concorrentes são, na verdade, uma maneira de inviabilizar as competências dos Estados e da União. Eu acho que o Brasil deveria radicalizar o conceito de República Federativa, com cada Estado tendo um nível de autonomia em determinadas matérias. Aí a Assembléia Legislativa teria evidentemente sua identidade e seu papel. Eu acho que a formulação de competências concorrentes é exatamente uma espécie de empurra de um para o outro. Concordo com a observação. Sobre a questão da assessoria legislativa em Direito Parlamentar, é um ponto de debate interessante.

No processo de assessoramento legislativo existe uma especificidade, uma característica própria. O processo de produção das leis tem uma particularidade. Nesse sentido, acho que seria interessante esse nível de especialização enquanto assessoria legislativa, para popularizar. Mas enquanto uma categoria autônoma de Direito, não tenho elementos para me posicionar favoravelmente. Os meios de comunicação comparam o processo de assessoria legislativa com a assessoria no Executivo, mas é totalmente diferente, não dá para comparar. O processo é diferente. O Parlamento é feito de maioria e minoria em cada uma de suas esferas. É claro que a feitura das leis está passando por esse processo. A assessoria legislativa é técnica e altamente especializada, mas ela também tem comando político, o que aliás é um problema, porque na assessoria legislativa de uma Casa que atende a todos os partidos quem é que vai dar a orientação política? Há a esfera da Mesa, da liderança e do deputado, que assumem a responsabilidade política. Como se resolve esse problema? Eu acho que se deve definir na organização legal do Parlamento o que compete às assessorias. Eu estou muito empenhado nisso, porque a Assessoria Legislativa da Câmara - que eu conheço muito e que é, aliás, muito competente -, como não se define o que ela faz, muitas vezes é obrigada a fazer o que não é de sua competência. Até pinga-fogo em discurso de formatura de deputado. Isso não é assessoria legislativa. Assessoria legislativa existe em função do processo e devia se recusar a fazer certas coisas. Não é porque o deputado manda que ela vai fazer.

É preciso criar o conceito de desobediência devida, como há o conceito de obediência devida. Quanto à atividade de fiscalização há uma confusão. Quando se fiscaliza uma irregularidade, ou se previne ou se instala uma CPI. Não se pode criar a cultura de que a fiscalização é essencialmente negativa. A investigação é positiva, primeiro, porque está se combatendo uma irregularidade, um desvio; segundo, porque se está dando elementos para se produzir uma mudança na lei. Temos, então, de criar uma cultura de que o ato de fiscalizar é intrínseco ao Parlamento, pois ele tem de fiscalizar e legislar a um só tempo. Já o requerimento de urgência eu considero um absurdo. Na Câmara existe o urgente urgentíssimo, que é artigo 155 do Regimento, que põe o projeto automaticamente na pauta. O governo age de forma autoritária. Quando uma minoria vai fazer uma emenda, a urgência urgentíssima impede a emenda, porque pressupõe um número elevado de assinaturas. Como se resolve o problema da urgência? Qualificando. Porque, em tese, é possível em determinadas situações ter questões urgentes urgentíssimas a deliberar.

Eu concordo que haja urgência urgentíssima na Câmara dos Deputados, mas desde que especifiquem os assuntos. Lá há o absurdo de coleções de urgência urgentíssima brecando a pauta, dez ou mais - ora, aí não é mais urgência urgentíssima. Há ainda a preferência da urgência urgentíssima - bom, aí virou farra. Como se pode ter preferência da urgência? Eu acho que o caminho é qualificar a matéria em que pode haver urgência urgentíssima. Foi mais ou menos o que defendemos nas medidas provisórias. Sempre fomos contra medida provisória, mas admitíamos sua edição em algumas situações, como matérias de moeda, câmbio e questões de guerra e de calamidade. Nessas quatro áreas pode-se ter que adotar medida provisória, mas não há reedição, porque é só para aquele momento, numa situação cirúrgica. A centralização presidencialista é uma cultura que tem de ser resolvida no plano legal. As Mesas dos Parlamentos têm de ser colegiadas, para que as decisões sejam de quem os partidos indicaram para representar. Esse é o ponto fundamental. O que é o Parlamento? O Parlamento é um colegiado. A Mesa é a representação do colegiado. A ordem do dia e a pauta têm de ser decisões colegiadas, no sentido até de legitimar o processo legislativo. Com relação à celeridade legislativa há uma contradição. Essa contradição é que faz do processo legislativo uma dinâmica interessante. Como se faz isso? Definindo prazos. O processo de feitura das leis não tem prazo. Só tem prazo quando se tratam das leis do Executivo. Deveria haver prazo. Entra-se com muitos projetos que não têm sentido. Há muitos projetos que numa admissibilidade prévia seriam postos para fora. Deveria haver uma comissão de triagem junto à Mesa, de alto nível, pluripartidariamente formada, para dar um parecer de triagem dos projetos, opinando se ferem ou não determinados requisitos, às vezes até de conveniência. E aqueles projetos que entram no processo legislativo deveriam ter prazo nas comissões, para evitar obstrução. Essa seria uma maneira de se resolver.

Quando houvesse um recurso de urgência ou de prioridade, deveria ter prazo definido, porque aí iria a Plenário, tendo de ser votado, sob pena de sobrestar a pauta ou então não produzir recesso parlamentar. Eu acho que o ruim não é dar celeridade ao processo legislativo que termine por suprimir o conflito. O conflito deve ser garantido. O que gera muitas vezes insegurança é as pessoas não terem noção de quando vai deliberar. E, por último, deve-se garantir nos prazos direito à obstrução. Como se garante a obstrução? A obstrução e a maioria têm de ser democráticas. O direito à obstrução deve ser considerado no seguinte sentido: as deliberações têm de ser tomadas por maioria absoluta, os pedidos de verificação de votação têm de ser atendidos num prazo menor que de hora em hora, como é feito na Câmara dos Deputados. Geralmente, no processo deliberativo é necessário esse tipo de plenário.

Não conheço a dinâmica aqui, mas, no caso do Legislativo Federal, defendo uma outra dinâmica de funcionamento. Essa nossa dinâmica de funcionamento é disfuncional. Nós trabalhamos terça, quarta e quinta, e ficamos no Estado de origem sexta, sábado, domingo e segunda. Isso não funciona em lugar nenhum, porque não se dá continuidade ao processo. Eu acho que é muito mais racional trabalhar-se ininterruptamente de segunda a sexta, durante, por exemplo, 20 dias, direto, quando se produz muito melhor. Também deveria haver um prazo durante o mês no qual os deputados legalmente teriam a permissão de estar em suas bases, para participar de seminários e discussões. O melhor seria durante uma semana não haver deliberação na Casa, liberando o deputado para fazer seminário, palestra etc. E a imprensa vai cobrar do deputado, querendo saber onde ele está. Dentro dessa sistemática, no dia em que houvesse comissão, não haveria plenário, porque a dinâmica de comissão é uma e a dinâmica de plenário é outra. Até o material que a gente leva para a comissão é de um tipo, enquanto para o plenário é outro. Isso permitiria mais concentração no trabalho de maior elaboração nas comissões, e no trabalho de disputa política, que é o do plenário. Essa deveria ser a dinâmica do processo legislativo.

Quanto ao voto facultativo, tenho simpatia por ele, mas sou obrigado a dizer a vocês que hoje há um argumento contrário de peso. Com o processo de exclusão econômico-social, o voto facultativo poderia consolidar uma exclusão política, fazendo com que uma faixa da população não tivesse relação formal nenhuma com o Estado, nem com a polícia, nem com o processo eleitoral, nem com o emprego. Isso criaria um fosso muito grande. Eu, pessoalmente, tenho simpatia pela tese do voto facultativo, mas a reforma política não pode começar por ele - no mínimo, tem de terminar por ele. Porque se o voto facultativo fizer parte de uma reforma das instituições, uma grande parte do eleitorado vai se desvincular de qualquer relação formal com o Estado, o que resultaria numa democracia da exclusão social, na qual parte da população não teria nenhum contato com o voto periodicamente.

Quanto ao voto distrital, seria necessária uma palestra específica sobre ele. Eu disse a vocês que a força do Parlamento é ser pluralista, porque é proporcional das vontades majoritárias e minoritárias da sociedade. Estou radicalizando o conceito de proporcionalidade. A proporcionalidade é a mais fiel representante da sociedade - das mulheres, negros, interesses econômicos, interesses políticos, voto de opinião etc. O voto distrital conduz a uma vontade majoritária no distrito, em que metade das cadeiras é por voto majoritário. E o voto majoritário é uma confluência de vontade para uma pessoa. No caso da sociedade brasileira, os movimentos de reformulação são muitas vezes movimentos de opinião pública, permeando o conjunto da sociedade. Acho que o voto distrital pode gerar um problema grave do ponto de vista da renovação. Outro grave problema é que não temos uma uniformidade de população e região. Se for pelo número de deputados, vamos ter um distrito como o ABC e um como o Vale do Xapuri, no Acre, que está elegendo deputados federais para a Câmara Federal. A distorção pode aumentar muito mais do que hoje, quando o mínimo de deputados por Estado é de oito e o máximo de 70. E há ainda um outro problema, que envolve deputados estaduais. A proposta distrital é: metade dos deputados federais serem eleitos pelo distrital e a outra metade pelo proporcional.

A mesma coisa para deputados estaduais. Imaginem São Paulo. São 70 deputados federais. Mas a metade dos deputados não é de 35 deputados - como é que se vai fazer, vai haver distrito para deputado estadual diferente de distrito para deputado federal? Isso não vai funcionar. Eu acho que distrital misto não controla. Se distrital misto controlasse mandato, não haveria prefeito ruim nesse País. Todo prefeito seria bom. E não é bem assim. O que mais vigia deputado na Câmara é sua visibilidade, porque ele se preocupa com falta, com pronunciamento. A visibilidade no Congresso é o que corrige a mutreta no Congresso, e não a idéia de ter um Parlamento que seja um somatório de prefeitos ou de vereadores, "paroquializando-se" a disputa, com parlamentares que discutiriam o distrito especificamente e não o conjunto do País. Como eu sou de uma visão mais universalista da política, tendo a defender o voto proporcional e não o voto distrital, mesmo considerando-o misto. Acho que, no Brasil, o voto distrital misto não dá certo, devido às características do País. Ele funciona razoavelmente bem na Alemanha, porque é um país com outro desenho populacional e geográfico.

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