1982-2002

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Democracia perde espaço com crise de segurança

A crise da segurança pública é uma ameaça à democracia e às instituições no Brasil, avalia o deputado José Genoino (PT-SP), o político de esquerda de maior trânsito no Congresso Nacional. Nessa entrevista, o deputado alerta as esquerdas e as elites para a “crise ética, política e moral”, que estaria, junto com a crise social, na raiz da explosão de violência. “Esta situação pode levar o país à pior das guerras, na qual não se sabe de onde vem o tiro nem quem é o inimigo”, adverte José Genoino. O deputado viu “pontos positivos” no Plano Nacional de Segurança Pública anunciado terça-feira pelo governo, mas reclama “um mutirão social” para discutir o problema e evitar suas conseqüências: “A pior coisa para a sociedade é viver sob o medo.”

Valor: O discurso tradicional da esquerda aponta a questão social como causa da insegurança e da violência. É o que está acontecendo no Brasil?

José Genoino: Não é só isso. No caso do Brasil temos mais de uma crise. Não podemos reduzir o problema da violência e da criminalidade à questão social. Seria um erro dizer que os pobres estão predestinados a serem criminosos. A degradação da sociedade – social, moral, política – cria um caldo de cultura em que a violência, o crime e o tráfico prosperam e crescem. Vivemos uma situação de medo e de impotência que é provocada, também, pelo sentimento da impunidade.

Valor: É possível ser miserável e honesto?

Genoino: Aliás, no Brasil, essa é a regra: os pobres são mais honestos do que muitos ricos. Mas quando você tem uma degradação de valores em todos os sentidos e, principalmente, uma degradação da atividade política, a sociedade que se organiza de maneira civilizada pode caminhar para a barbárie. Muitas vezes, quem está mandando o policial prender o criminoso também está cometendo ilegalidades. Numa situação como essa, quem está embaixo não vai respeitar a autoridade. A autoridade democrática tem de ser respeitada por sua legitimidade.

Valor: De onde vem essa crise de autoridade?

Genoino: Quando pesa suspeita sobre quem deve manter a ordem, lá embaixo o efeito do comando é menor, duvidoso. Se existe juiz corrupto, deputado corrupto, prefeito corrupto, governador sendo denunciado, qual é a autoridade da lei e da democracia para punir e para reprimir quem tem um revólver e pode fazer um seqüestro, um refém? Há certas esferas do Estado brasileiro muito vizinhas do crime. Isso foi mostrado pela CPI do Narcotráfico, com fatos relacionados ao crime organizado e ao roubo de cargas, à proteção de criminosos... Quando há membros dos três poderes numa relação de vizinhança com áreas criminosas, as conseqüências para a sociedade são devastadoras.

Valor: Que conseqüências são essas?

Genoino: Uma parte se aliena da política porque pode se defender com o dinheiro que tem. Uma parte mais ampla também se aliena e vai se defender como pode. Aí a sociedade acha que resolve os seus problemas independente das instituições democráticas. Na bala, na sua pequena comunidade, no seu pequeno Estado paralelo, ou no próprio morro, onde as coisas se resolvem numa relação com o bandido que dá proteção. Isso é um perigo: você cria bolsões de Estados paralelos em relação ao Estado legal. É péssimo para a democracia. Estamos vivendo numa situação de sinal amarelo; as instituições têm que olhar o sinal.

Valor: Ainda há gente na esquerda apostando que crise social a favorece politicamente?

Genoino: A barbárie e o caos social não favorecem a transformação nem a mudança. Como a esquerda trabalha com a possibilidade de transformar e de mudar, não há essa idéia. Degradação social não muda. Se mudasse, o mundo já seria vermelho há muito tempo. A barbárie social produz sentimentos baixos, como votar em qualquer um, vender o voto, mercantilizar a cidadania. O baixo nível de esperança faz com que a cidadania rebaixe as suas aspirações.

Valor: A culpa é só dos políticos e das autoridades?

Genoino: A elite rica desse país prefere gastar com carro blindado, segurança privada e condomínio fechado, em vez de contribuir para ter uma sociedade mais civilizada. Vi estudos mostrando que se gasta hoje no Brasil R 28 bilhões por ano em segurança privada – do alarme do carro à empresa de vigilância. Esse dinheiro daria para reequipar muitas vezes a segurança pública. Como a maioria da população não pode pagar para ter isso, ela está entregue à própria sorte. O aparelho público está inteiramente sucateado. Falta a ele, além de condições materiais, valorização, auto- estima e perspectiva de que seu trabalho está gerando resultado.

Valor: As elites privatizaram a segurança?

Genoino: A própria, mas deixando a sociedade ao abandono. Elas preferem ter um policial mal pago porque ele vai fazer sua guarda privada nas horas de folga. É a lei do mais forte. O risco que elas correm é que, mesmo com segurança privada, carro blindado e condomínio fechado, vivem numa sociedade que se transforma numa grande prisão e pode explodir a qualquer momento. é uma ilusão, pois não têm segurança para andar na rua, para o lazer, para sua família. O dinheiro dessas elites está bem seguro nos paraísos fiscais, mas no Brasil elas vivem com medo. Medo de assalto, de seqüestro de uma bala perdida.

Valor: Além do risco individual, há um risco coletivo, institucional?

Genoino: Há uma massa humana deserdada e desesperançada, que está aplicando a cultura do tudo-ou-nada. Não tem força que a segure quando o desespero tomar conta. Crise social, crise ética, desesperança são fios desencapados que a qualquer momento podem entrar em curto-circuito. Não desejo isso, mas podemos ter um abalo, um cataclisma imprevisível. Será preciso o caos para o país mudar? Alguns países entraram em degradação econômica e política por causa da crise social e moral. O processo de desconstituição da África é um alerta sobre o caos e a anarquia social. Num país grande como o Brasil, com desequilíbrios regionais e uma péssima distribuição de renda, se não agirmos com profundidade e urgência diante do problema de segurança pública, poderemos ter uma situação de degradação. O risco não é de um golpe de Estado, de um assalto ao poder no sentido clássico. A democracia aqui está em risco pelo ângulo da corrosão, do esfacelamento dos laços civilizatórios, da falta de confiabilidade de nossas organizações.

Valor: As elites políticas, inclusive a esquerda, estão dormindo sobre esse problema?

Genoino: O Brasil vive discutindo o feijão-com-arroz, mas não discute quem vai participar da mesa. A idéia de futuro e de esperança hoje é muito tênue na população. As pessoas não estão com auto-estima nem com esperança. Fica muito difícil fazer política nesse quadro.

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