1982-2002

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Artigos


A dor do passado

O torturado fica reduzido à condição de objeto
Da sua vontade sobram apenas escombros

Ao longo da minha trajetória política, fui consolidando a convicção de que a transparência deve ser uma das principais virtudes da conduta do homem público. Acredito também que a sociedade tem o direito de saber tudo o que diz respeito à atividade pública do político. Somente assim é possível estabelecer algum grau de coerência entre discurso e ação e algum grau de confiabilidade entre os representantes e os representados. Somente a transparência dos atos e a sinceridade das palavras podem dissipar as trevas das dúvidas e das incertezas que a sociedade alimenta em relação aos políticos.

Na última semana, fui questionado publicamente na tribuna da Câmara pelo deputado Jair Bolsonaro (PPB-RJ) acerca do meu comportamento na prisão. Em respeito aos eleitores e aos que me prestaram solidariedade, integrantes de outros partidos, dirigentes e militantes do meu partido, militantes do PC do B, amigos, jornalistas e militares, sinto-me no dever de relatar o que aconteceu na minha prisão.

Na manhã do dia 18 de abril de 1972, fui detido, sozinho, na região do Araguaia. Pertencia a um grupo de preparação da guerrilha constituído de 21 pessoas. Existiam outros grupos com os quais não mantinha contato e dos quais não sabia a localização. No momento em que fui preso, estava perdido na mata durante o cumprimento de uma tarefa. No fim do dia, deveria reencontrar o grupo em lugar previamente acertado. Como sabíamos da presença de militares, combinamos que, caso eu não aparecesse, deveria ser considerado que eu estava preso ou morto. 

No momento da prisão, fui amarrado a uma árvore e passei a ser torturado com queimaduras e afogamentos, circunstância revelada por uma série de fotos publicadas pelo jornal "O Globo". Nos primeiros cinco dias, os militares não sabiam quem eu era. Fui transferido para a cadeia de Xambioá, depois para Brasília. Nesse período sustentei a versão de que estava na região para trabalhar na Transamazônica. Em Brasília fui identificado por meio de um álbum de fotografias do congresso da UNE realizado em Ibiúna e de impressões digitais. Durante os oito meses seguintes, fui submetido a interrogatórios e pressões. Nos primeiros três meses, fui torturado em momentos intermitentes, com afogamentos, pau-de-arara e choques elétricos.

A partir da minha identificação e ao longo desse tempo, prestei determinadas informações, guiando-me pelo seguinte critério: não informar nada que pudesse levar à localização dos guerrilheiros e dos estoques de remédios e suprimentos. As informações referiam-se ao motivo da minha ida para o Araguaia, à finalidade de instauração da guerrilha e a nomes de pessoas com quem trabalhei na preparação da luta armada, cuja identificação, avaliei, não prejudicaria a guerrilha.

Nenhuma dessas informações poderia levar à localização da guerrilha, pois nem eu sabia onde se encontrava, já que a presença militar impôs o seu deslocamento na selva. Todas as informações que prestei nos depoimentos estão registradas nos autos da Justiça Militar e foram repassadas para os advogados que me assistiram, inclusive consta a negativa da 2ª Auditoria Militar para exame de corpo de delito.

A decisão de falar ou não falar, quando se está sob tortura, é absolutamente traumática. A mente e o corpo do torturado cindem-se em duas partes distintas: a mente quer preservar as convicções e a segurança dos companheiros; o corpo, dilacerado pela dor, quer a vida. A mente cogita que a morte é uma fuga viável, uma salvação. O corpo dilacerado e a mente degradada moral e psicologicamente do torturado, nos fugazes momentos em que se encontram, querem a piedade do torturador. O torturado fica reduzido à condição de objeto. Da sua vontade sobram apenas escombros. É nessas circunstâncias quase indescritíveis que se decide falar ou não falar. Alguns decidiram, heroicamente, não falar. Quase todos eles morreram em consequência das torturas. Outros, como foi o meu caso, decidiram prestar informações que julgaram não comprometedoras à segurança de outras pessoas. Outros inventaram histórias que geralmente não se sustentavam. Há também aqueles que, sob tortura, entregam informações essenciais. Jamais me senti no direito de julgá-los moralmente.

Fui condenado a cinco anos de prisão, que cumpri integralmente. No primeiro ano, não tive acesso a visitas e a advogado.

Ao recuperar a minha liberdade, decidi me dedicar à política de uma forma construtiva e em nenhum momento me julguei um herói da guerrilha do Araguaia. Heróis são os que tombaram lutando. Sucumbiram acreditando na luta pela liberdade. Nunca perdi as esperanças de construir uma sociedade mais justa, talvez com meios e valores diferentes daqueles em que eu acreditava outrora.

Não alimento desejos de vingança porque acredito no ser humano e acredito que o perdão é a forma que os seres humanos têm para se reconciliar e dar continuidade à vida. Falar e escrever sobre isso, para mim, é profundamente dolorido. Mas falo e escrevo porque penso que o passado não deve ser esquecido. Só assim o tornaremos uma lição para o futuro.

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