1982-2002

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Privatizações: oposição errou ao não apresentar alternativas

"Nosso modelo de privatização é um dos piores do mundo" 

Jornal do Economista - Na reta final do Plano Nacional de Desestatização, qual o saldo das privatizações? Quais os pontos positivos e negativos desse processo?

José Genoino - Hoje o País pode fazer um balanço das privatizações saindo da ótica essencialmente ideológica para fazer essa avaliação com os critérios de racionalidade econômica, qualidade dos serviços, mecanismos de controle público e uma avaliação se melhoraram ou não os serviços privatizados. Em primeiro lugar, eu acho que já está claro hoje para a sociedade que o modelo de privatização do Brasil foi um dos piores do mundo. Porque foi uma privatização pela via da transferência patrimonialista, isto é, se transferiu o patrimônio estatal para setores privados através de uma série de processos: do financiamento do próprio estado, via BNDES, da participação dos fundos de pensão das estatais nesse processo, da utilização de moedas podres no abatimento do preço das empresas, da recuperação das empresas para serem privatizadas até elas começarem a dar lucro e, mais recentemente, da divulgação de que o ágio, alardeado pelo governo como um grande trunfo, como êxito, estar sendo descontado do Imposto de Renda num prazo de cinco anos.

Portanto, do ponto de vista financeiro, a privatização foi um grande negócio para as empresas, porque se sai do monopólio estatal para o monopólio privado, não se garantiu a competição, não se garantiu a democratização da venda de ações e não se garantiram os critérios de concorrência. E nesse processo, além dos consórcios que foram estimulados pelo próprio Estado, montados para ganharem certas licitações no processo de privatização, o País não preparou um modelo que garantisse à esfera pública mecanismos para defender os interesses do cidadão.

JE - E as agências reguladoras?

Genoino - As agências são meros órgãos burocráticos, que só aparecem quando existe tragédia. É como na saúde: as pessoas só dão conta da importância da saúde pública quando o cidadão está na UTI. É quando tem um blecaute, uma pane no serviço telefônico, quando há uma crise nas estradas com os alagamentos é que se descobre que existem agências, porque essas agências não fiscalizam, não têm um corpo técnico, não existe representação da sociedade nelas e nem o governo as controla. Então, na verdade, são órgãos ineficientes que fazem declarações e emitem notas.

JE - O Congresso é a casa das leis. Como se pode criar aqui um mecanismo eficiente, eficaz, de fiscalização?

Genoino - Eu acho que isso envolve uma avaliação da posição da esquerda nas privatizações. Acho que a esquerda acabou caindo na armadilha da direita de enfrentar a globalização só pelo lado ideológico. Nós tínhamos que ter apresentado outro modelo de privatização que resguardasse algumas empresas que não pudessem ser privatizadas, como a vale do Rio Doce, a Embratel. Um modelo que aceitasse algum tipo tipo de privatização, desde que isso se desse através da pulverização de ações, através de um controle público sobre a qualidade dos serviços, modificando a lei geral das agências de fiscalização e de regulação e estabelecesse no processo de privatização uma avaliação para certas áreas do verdadeiro valor. Eu acho que o grande erro na privatização da Embratel é que o País hoje não tem condições de fiscalizar uma área altamente sofisticada, com um grau de renovação tecnológica muito grande e que envolve muito dinheiro.

JE - E daqui para a frente, o que de ser feito?

Genoino - A tarefa central da oposição é revisar o modelo de privatização no Brasil, não é reestatizar. É alterar esse modelo para reforçar os instrumentos de controle público, de representação da sociedade e do consumidor: um modelo que enfrente o monopólio privado. Se a sociedade engoliu a crítica do monopólio estatal, ela vai ver agora como o monopólio privado é uma guerra: é a selvageria, é o vale-tudo. E o cidadão é quem vai ficar vítima desse processo.

JE - E a qualidade dos serviços?

Genoino - Os serviços pioraram e nós temos informações, através de pesquisas, de que a maioria da população avalia negativamente sua qualidade. Prometeram o céu e nós temos uma situação pior.

JE - Mas, indiscutivelmente, hoje é muito fácil e barato adquirir uma linha telefônica.

Genoino - Um maior número de pessoas tem telefone, mas muita gente devolve o telefone porque não pode pagar a conta por causa do aumento da tarifa. Mais pessoas têm acesso ao telefone, mas também crescem as panes no sistema, os problemas.

JE - Por que os contratos de venda das teles prevêem a utilização de índice diferente do que os usados para medir a inflação? Como fica isso?

Genoino - Esse negócio da tarifa é um escândalo. Primeiro, porque as tarifas foram reajustadas um pouco antes da preparação das empresas para a privatização. As empresas foram saneadas para serem privatizadas. E agora elas recebem um aumento de tarifa acima do aumento da inflação, isto é, o cidadão vai pagar mais pelos serviços que foram privatizados. É a mesma coisa que acontece com as tarifas de energia, de telefone, e com o reajuste nos preços dos pedágios. As estradas foram privatizadas sem a inclusão das vicinais e as vias principais, que dão lucro porque têm pedágio, aumentaram o preço do pedágio.

Na verdade, o consumidor está sendo vítima da armadilha da privatização. Arrebentaram as empresas estatais para provocar um desgaste diante da opinião pública, apresentaram a privatização como o milagre do século e o cidadão está experimentando agora, e numa avaliação até benevolente, o pior dos mundos, o purgatório, porque a qualidade dos serviços piorou e, o mais grave, o cidadão é desrespeitado. É tratado como coisa, como objeto. Se você reclama, se você apela, você não existe mais como cidadão.

Há uma arrogância muito grande dessas empresas que foram privatizadas na área de telefonia porque alguns burocratas, que eram do Ministério das Comunicações e das empresas estatais, viraram executivos com salários monstruosos e tratam o consumidor com um nível de arrogância brutal. Quer dizer: os próprios diretores das empresas privatizadas eram antigos preparadores das empresas para serem privatizadas. Então, eu acho que o cidadão tem que ser defendido por um novo modelo que garanta representação do consumidor nessas agências, que garanta medidas punitivas para determinadas falhas e determinadas irregularidades dessas empresas e que as agências possam agir para evitar as tragédias.

JE - A premissa do Programa de Desestatização era o pagamento da dívida pública. Mas a dívida...

Genoino - A dívida pública não diminuiu, o patrimônio das empresas foi queimado e nós temos hoje uma situação estranha, porque nós temos uma dívida que compromete o futuro do País: é uma dívida sem ativo. Em outros momentos da história do Brasil, você tinha dívida, mas tinha ativos. Agora, a dívida só tem passivos, isto é, papéis. E essa dívida vai crescendo numa espiral com a taxa de juros. E o patrimônio das empresas foi torrado para cobrir parte dos juros dessa dívida.

JE - Que conseqüências futuras esse processo pode trazer para o Brasil?

Genoino - Hoje o País está sem instrumentos de negociação para defender seus interesses, porque perdeu o controle acionário dessas empresas, como no caso da Vale do Rio Doce e da Embratel. E ainda tem o risco de perder o controle acionário da Embraer. Quer dizer, essas empresas deveriam ser empresas saneadas, públicas, inclusive com os riscos de qualquer empresa privada, mas desde que não tivesse perdido o controle acionário. É que através dessas empresas o Brasil poderia ter o trunfo na mão para negociar melhor e defender seus interesses.

JE - E com relação ao Banco do Brasil, à Caixa Econômica Federal e à Petrobrás? O governo abandonou a idéia de privatização?

Genoino - Acho que o BB, a CEF e a Petrobrás tendem a ficar nas mãos do governo, porque com o fracasso das privatizações e o desgaste perante a opinião pública o governo não tem força para privatizar. Se bem que, na verdade, o que o governo quer mesmo é privatizar essas empresas, queimar o resto, além das empresas na área de saneamento e do setor elétrico.

JE - No caso das empresas do setor elétrico, qual a estratégia da oposição para tentar evitar a privatização?

Genoino - Acho que, nesse caso, nós temos condições de intervir positivamente para mudar esse modelo. Em relação a defender a pulverização de ações. No caso do setor elétrico, impedir que se privatize junto os rios, lagos e mananciais. No caso do saneamento, não se pode deixar a critério apenas das leis da competição e do lucro uma área que é essencial para a qualidade de vida nas grandes cidades. Eu acho que nós temos melhores condições porque na época que a privatização começou, no governo Collor, que teve continuidade no governo Fernando Henrique Cardoso, a privatização era uma verdade intocável, era um pensamento único. Eles tinham três verdades: globalização, abertura e privatização. E hoje está se discutindo abertura, está se discutindo que a globalização é um movimento de mão dupla e a opinião pública questiona a qualidade dos serviços privatizados. Então eu acho que nós temos uma situação mais favorável para derrotar o governo nesse modelo perverso, selvagem, que saiu do monopólio estatal para o monopólio privado.

JE - O governo está revendo o modelo de privatização. O ministro Alcides Tápias está por soltar um "pacote" dando uma conotação mais social ao modelo de desestatização, através da pulverização de ações. Isso atende à reivindicação das oposições?

Genoino - Esse "pacote" é por causa do desgaste do programa de privatização, porque o modelo brasileiro foi pior do que o da Inglaterra, muito pior do que no governo da Margareth Tatcher, a Dama de Ferro. Em segundo lugar, porque há uma crítica de setores - inclusive empresariais - a esse modelo. Agora, essa proposta do ministro tem pouca conseqüência porque o essencial já foi privatizado, o filé mignon da privatização era o sistema Telebrás, e esse já se foi.

JE - E o grampo telefônico que levantou suspeitas à lisura do processo de privatização do sistema Telebrás?

Genoino - É interessante. Nós entramos com um pedido de CPI, continuamos insistindo e os deputados não assinam. O governo se comprometeu publicamente que daria uma resposta sobre os grampos. Os deputados não assinam nosso pedido de CPI, o governo continua adiando a divulgação do relatório sobre quem grampeou e até hoje existe uma penumbra, no mínimo, sobre o processo de privatização. Eu acho que o processo de privatização no Brasil não resiste a uma CPI.

JE - E como fica?

Genoino - Acho que temos que continuar denunciando, porque a esquerda tem legitimidade para fazer essas denúncias. A esquerda foi derrotada nas privatizações, mas ela gritou, denunciou. Segundo, temos que apresentar um outro modelo para defender a sociedade e o cidadão. Nós temos que dialogar, agora, é com a sociedade, porque o governo nos colocou como se a gente estivesse defendendo corporativismo. Nós temos que mostrar que o governo está defendendo patrimonialismo privatista. E nós temos que defender a sociedade e o consumidor, mudar esse modelo.

JE - O Brasil virou o milênio com o seu patrimônio quase todo privatizado. Qual a relação do governo brasileiro com o resto do mundo?

Genoino - Eu acho que o Brasil não só está privatizado, como está com uma dívida impagável, que compromete o nosso futuro. O Brasil está com uma sensação mais grave ainda: a esperança, a auto-estima do brasileiro está muito baixa. Para mim, o maior desastre desse modelo e desse governo foi ter castrado a esperança e o otimismo dos brasileiros. Acho que nós temos que ter uma reforma para reconstruir o Estado brasileiro na sua dimensão pública, na sua dimensão republicana, na sua dimensão de promover a cidadania, de ser um Estado que não é empresário mas que também tem que ser indutor de políticas. Nós temos que reconstruir o processo produtivo, que nesse modelo de abertura foi destruído por uma abertura meramente ideológica. O importante era abrir, sem a gente ter um plano, ter interesse, sem a gente ter critérios. Eu acho que nós temos que recuperar a capacidade do Estado de ter políticas públicas para enfrentar o maior desafio do início deste século, que é a exclusão e o apartheid social.

JE - E como se muda isso?

Genoino - Para mim, a grande causa de uma utopia transformadora radical de esquerda é ter um projeto econômico que garanta, a um só tempo, a democracia, a soberania e o enfrentamento do apartheid social. Porque muitas vezes o Brasil teve desenvolvimento econômico, mas não teve distribuição de renda. Algumas vezes o Brasil teve momentos de autonomia, mas não tinha momentos de democracia. Agora, se a gente olhar os 500 anos, o Brasil evoluiu política e economicamente, mas socialmente nós continuamos sendo uma sociedade atrasada, arcaica, indecente por causa da discriminação e da exclusão.

A razão de ser de um projeto de esquerda é produzir um país mais justo, um país no qual as pessoas possam viver de forma decente. Hoje os brasileiros vivem com medo, porque quem é rico gasta dinheiro para blindar o carro e para ter segurança privada em condomínio fechado. Quem não pode ter isso, vive com medo de ser assaltado nas esquinas. E quem não tem emprego espera no futuro uma cadeia, um cemitério, ou um tiro, porque as pessoas se vinculam com o narcotráfico e com o crime organizado. Então, nós temos que mostrar que o Brasil tem potencial, diferentemente de outros países, tem capacidade produtiva, tem mercado, temos uma dimensão geopolítica, uma diversidade produtiva e regional fantástica. E o povo brasileiro é fantástico. O problema é que tem uma elite que nunca cedeu nada a esse povo. Ela pode ser enquadrada naquela avaliação do Raimundo Faoro: é uma elite que quer, pode e tem, porque ela faz de tudo, seja a manobra de fazer a revolução antes que o povo faça, seja a truculência para matar e assassinar quando isso é necessário. Então, nós temos que fazer uma transformação deste País.

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