1982-2002

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A Lei do Direito Autoral é revolucionária

Abel Silva - Nós estamos descobrindo que esta luta pelo Direito Autoral não tem fim. Você foi fundamental na aprovação da nova lei do Direito Autoral, participando de todos os encontros, das discussões com os compositores e com os advogados especialistas. Você participou da elaboração da lei e esteve sempre do nosso lado. A lei foi votada pelo Congresso Nacional, como nós, os compositores, queríamos, ou seja, uma lei justa. A lei foi sancionada pelo presidente da República, e com um ano de vigência está totalmente desrespeitada. Estamos cheios de questões na justiça, os grandes usuários da música popular continuam sem pagar. Será que esta lei é daquelas que não "pegam" ou que não vão "pegar"?

José Genoino - Para essa lei "pegar", como outras que mudaram a realidade brasileira, é necessário pressão, é necessário denunciar, é necessário fiscalizar, é necessário que haja um movimento político, um movimento até de cultura política, para as pessoas compreenderem que o Direito Autoral no Brasil sempre foi tratado com selvageria, da pior maneira e como um grande negócio, cujas vítimas são exatamente os que colocam a vóz, a sensibilidade, que colocam a cara, a sua personalidade na obra. Eu acho que nós não temos no Brasil, ainda, uma mudança de atitude em relação a isso. As instituições públicas, que deveriam fiscalizar o cumprimento da lei, são passivas e andam na velocidade de tartaruga. Há uma impunidade em relação ao cumprimento da lei, principalmente porque a questão do Direito Autoral movimenta milhões e milhões em dinheiro, tanto nas relações comerciais e econômicas internas como nas relações comerciais do Brasil com o mundo. O Brasil não tem uma história de respeito ao Direito Autoral. Então, na minha visão, uma lei não muda a realidade. O que muda a realidade é a luta dos agentes políticos, dos agentes sociais, para fazer a lei virar realidade. Hoje nós enfrentamos dois graves problemas para a lei avançar: o primeiro é o combate a pirataria, e é necessária uma lei específica para combater a pirataria, com a taxação da fita virgem para o arrecadado ser distribuído entre os criadores. E a produção regional. Nós temos que estimular a produção regional num país com a nossa dimensão e ao mesmo tempo aperfeiçoar os instrumentos de fiscalização dos próprios criadores, dos próprios artistas, tanto através das suas associações, como através das suas iniciativas individuais, mas principalmente das suas associações, para que haja um cumprimento eficaz. Muitas vezes acontece no Brasil o seguinte: em relação aos poderosos que burlam a lei, há uma impunidade e muitas vezes se pega o pequeno, porque o pequeno não tem como burlar a lei. Eu acho que é necessário um movimento político, um movimento de pressão, um movimento de opinião pública, para que o Direito Autoral seja uma realidade para aqueles que criam.

AS - O nossos grandes adversários, aqueles que realmente não querem pagar o Direito Autoral são exatamente os que influenciam a opinião pública. São os usuários das grandes tecnologias, como, por exemplo, as TVs a cabo e por assinatura. Há oito anos instaladas no Brasil, até hoje não pagaram nem um tostão. Isso é uma vergonha! Na Argentina já pagam há tempos. Então, há determinadas questões jogadas na mídia, que levam a uma completa deformação do Direito Autoral.

JG - No Brasil nós temos uma tradição patrimonialista em que a elite se apossa das instituições para fazer o que bem entende. E se não houver uma quebra dessa cultura, dessa impunidade, desse descumprimento da lei, nós vamos chegar a uma situação inaceitável para os compositores, para os criadores, para os escritores. Porque, na verdade, no Brasil, não se vive de Direito Autoral. E na medida em que não se vive de Direito Autoral, a criação começa a decair. A criação começa a ser desprezada, a criação perde o status que é a fonte originária de todos os valores do país. Foi muito importante para mim participar da lei de Direito Autoral porque eu fui perceber como uma questão tão sutil e encoberta é fundamental para o país. Tanto do ponto de vista dos interesses econômicos, como do ponto de vista dos valores da nossa gente, assim como do ponto de vista da própria criatividade em si.

AS - No próximo milênio, de quem será a propriedade da autoria?

JG - O grande problema é que quando a gente fala em democratizar a propriedade, democratizar a riqueza, democratizar o capital, nós estamos falando em democratizar a autoria. Este capitalismo selvagem nega a autoria e trata as pessoas como coisas, como números. Nós temos que "peitar" essa mentalidade e essa visão política. Na verdade, a sociedade não é apenas dinheiro, negócios, cifras. Ela é feita por gente. E quando você fala em sociedade de gente, está falando numa sociedade que cria, numa sociedade de valores, numa sociedade pluralista, numa sociedade democrática. Este nosso capitalismo se manifesta nos grandes veículos de comunicação, que burlam a lei porque querem levar o lucro máximo. É aquela lei que socializa o prejuízo e privatiza o lucro com a complacência e a impunidade das instituições do Estado. Nós temos que criar um organismo de fiscalização do cumprimento das regras, das cobranças e da fiscalização do Direito Autoral. Tem que haver uma remexida geral nesse mecanismo de fiscalização, e nós queríamos incluir isso na lei, um órgão de fiscalização que não seja estatal, mas um órgão de fiscalização dos criadores, um órgão de fiscalização que tenha a representação das empresas e possa ter, numa condição minoritária, a representação do poder público, não no sentido do poder público ditar, mas do poder público fazer a fiscalização e regulamentar aquilo que lhe compete.

AS - Os nossos órgãos representativos são as sociedades como a UBC, a AMAR. São as nossas associações simbólicas, mas sem poder algum.

JG - Acho que uma coisa importante é que os próprios artistas, os compositores, os criadores, os escritores tenham uma ação mais coletiva, através das suas entidades, das suas associações, para fazer esta luta. Se não houver um envolvimento direto dos interessados no respeito ao Direito Autoral, se depender só do poder econômico, eles vão sempre encontrar um jeitinho de burlar a lei. Quando eu falo de órgão de fiscalização, estou me referindo a uma fiscalização regulatória, com uma compulsão majoritária de quem cria. Isso é fundamental.

AS - A gente tem detectado o foco por onde entram os inimigos que burlam a lei do Direito Autoral. O ponto fundamental é o problema do órgão único arrecadador. Mas se ele for fragmentado serão criados os órgãos fantoches arrecadadores.

JG - E é muito difícil num país como o Brasil arrecadar os Direitos Autorais sem um órgão único de caráter nacional. Tem um projeto de lei, que estão tentando apresentar na Câmara, de criar um órgão de arrecadação no âmbito estadual. O problema é que a execução das músicas tem um caráter nacional e internacional. Como você vai ter um órgão arrecadador em cada estado? Isto é para burlar. Eu acho que um segundo dado importante é que esse órgão único arrecadador tem que ter a força dos artistas, uma força dos compositores, uma força dos criadores para "peitarem" politicamente as principais forças econômicas que se negam a pagar Direito Autoral. Elas estão com determinadas iniciativas no Congresso, para encontrar o jeitinho de não pagar Direito Autoral. Assim, o Direito Autoral passa a ser uma doação para o artista, uma espécie de paternalismo para o "coitadinho". E essa é a relação que nós temos que mudar. O atual projeto foi importante, na medida em que o Direito Autoral é de pessoa física. É o criador que decide sobre o contrato, as modalidades do contrato, os instrumentos de fiscalização. Isso é fundamental ser mantido. Por outro lado, as iniciativas que tentam extinguir este órgão arrecadador são inconstitucionais porque não se pode extinguir um órgão de uma associação, não se pode extinguir um órgão fiscalizador. Trata-se do direito constitucional das garantias individuais e das pessoas terem o direito de se associarem, de se organizarem e de serem livres. Portanto, a luta para fazer valer o Direito Autoral está apenas começando, na minha avaliação.

AS - E esta lei que a gente conquistou não pode mudar. É muito recente.

JG - Primeiro, nós não criamos ainda legitimação, a aplicação da lei. Segundo, nós não criamos ainda um lastro de experiência no cumprimento da lei. E terceiro, as relações contratuais não foram alteradas radicalmente para alcançar um novo patamar. Quando nós aprovamos aquela lei, a gente sempre dizia: não é a lei que muda a realidade, mas as pessoas em luta, e a lei vai refletir essa mudança. Nós somos contra mudar a lei, nós somos contra extinguir o órgão arrecadador, esse é um assunto dos próprios criadores. Eles é que decidem de maneira livre e autônoma como devem se organizar e fiscalizar. É uma entidade privada, não mexe com dinheiro público e aqueles que tentam limitar a ação do órgão arrecadador querem burlar o pagamento do Direito Autoral.

AS - Deputado, tem uma questão enviada pelo Fernando Brant que tem a ver com o que estamos conversando: as forças que se insurgem contra o Direito Autoral são tão fortes quanto as que não reconhecem os direitos dos trabalhadores. Essas forças muitas vezes se valem das deficiências do ECAD, que devem ser sanadas, para tumultuar o ambiente e não pagar o que é devido aos autores.

JG - Isso é verdade, as forças que querem burlar o Direito Autoral usam falhas do ECAD para não pagar o que devem. Então, essas forças deveriam fazer sugestões e recomendações para que o ECAD mude a sua maneira de funcionamento. E nós temos que aperfeiçoar a lei e não mudá-la para pior. A gente não pode enfraquecer os instrumentos de fiscalização e de arrecadação porque assim não se vai pagar Direito Autoral nenhum no Brasil. E como hoje existem interesses poderosos com o desenvolvimento tecnológico, com o desenvolvimento da comunicação e da informação, na minha avaliação, a pressão para mudar a lei vai ser cada vez mais forte, no âmbito do Congresso Nacional e do próprio Poder Executivo, em relação ao avanço que representou a lei votada.

AS - Genoino, a gente está na luta, reclama, cobra, visita aqueles políticos identificados com esse assunto, mas há também a questão de que temos conseguido vitórias, ou seja, o compositor tem participado muito mais das suas associações. Nós mesmos, da UBC, eu, o Fernando Brant, o Ronaldo Bastos, o Paulo Sérgio Valle nunca pensamos em dirigir sociedades. Mas isso acontece porque vimos que o letrista é basicamente quem vive do Direito Autoral. Por isso é que foram eles, o Mário Lago, o Braguinha, que começaram esta questão. Para o letrista fica difícil e o Caneção é um exemplo disso. Quem vai lá e sobe no palco recebe. Agora, se ele for lá e cantar uma música minha eu não recebo.

JG - Esse é que é o grande problema. Mas é também a grande virtude da lei do Direito Autoral.

AS - Se analisarmos os últimos tempos, você vai ver que nós temos aumentado a arrecadação. Apesar de toda dificuldade, a lei é muito positiva.

JG - Se você considerar o tamanho do Brasil, a diversidade regional, a falta de uma cultura de fiscalização, a falta de uma cultura que no fundo é uma cultura cidadã, a pessoa tem que saber o seguinte: quando está executando uma música, alguém a fez. Alguém fez a letra, alguém botou um arranjo, alguém está colocando a sua vida, a sua personalidade naquela música. Nós temos no Brasil uma cultura de esperteza, do vale-tudo. As pessoas gostam de uma obra, mas não perguntam quem produziu, quem criou aquela obra. Nesse sentido, essa lei de Direito Autoral, para o padrão brasileiro, é uma lei revolucionária. Nós vamos demorar muito tempo para transformá-la em realidade, pelo que ela tem de avançada no sentido do respeito. A obra é extensão do indivíduo. Você vê uma obra, ouve uma música, vê uma peça no teatro e vê a pessoa. Esse respeito à pessoa no fundo é um respeito à cidadania. Se apropriar do que o outro produz, do que o outro cria, num vale-tudo, está errado. Temos que enfrentar isso com uma luta política. Serão necessárias muitas campanhas contra a pirataria, contra a sonegação de Direito autoral. Tem que se fazer campanhas para que as pessoas tenham uma relação com seus ídolos, mas uma relação de não aproveitamento no mau sentido, uma relação com seus ídolos no sentido de preservar, de valorizar aquilo que eles criam. Eu acho que é um movimento político-cultural que tem que ser desencadeado no Brasil. E na minha avaliação, é nesse ponto que o poder público podia fazer muito mais. Não é o poder público dirigir, não é o poder público recuperar o CNDA (Conselho Nacional de Direito Autoral). Mas é o Ministério da Cultura fazer campanhas institucionais sobre a importância do Direito Autoral e a importância da obra. As pessoas levarem em conta quem criou a obra, quem compôs a obra. Esse é que é o problema.O Brasil tem que ter orgulho da sua obra, da sua criação, da sua música, da sua literatura, das suas artes. Esta é uma relação de valorização, e quando o Direito Autoral é desrespeitado se está desrespeitando a cultura brasileira, os valores brasileiros. Por isso, é uma luta transformadora o respeito ao Direito Autoral, porque envolve valores, envolve o respeito ao indivíduo, à pessoa, ao cidadão e à cidadã, e envolve uma relação solidária da sociedade com a obra. Os compositores, os criadores, os escritores que têm público, que têm credibilidade, que têm opinião pública deviam fazer mais movimento, deviam falar mais da importância da lei do Direito Autoral. O Direito Autoral é uma coisa fundamental para a cultura, para a criação. Sem Direito Autoral não há criação, não há valores culturais, não há diversidade cultural. O que se terá é uma maquiagem eletrônica totalmente deformada. Acho que devem ser feitas campanhas massificantes a respeito da importância desta lei.

AS - A área econômica do governo ainda não notou que a inadimplência e a sonegação dos Direitos Autorais também significam a sonegação dos impostos correspondentes. Quando uma casa de espetáculo não paga, ela não está pagando impostos. E eu que não estou recebendo também não estou pagando, ou seja, a sonegação do Imposto de Renda é uma sonegação impatriótica, é um dinheiro que não circula também para a nação e para o poder público.

JG - Como o sistema tributário brasileiro é um "faz-de-conta" para quem pode sonegar e rigoroso para quem paga na fonte, a área econômica não dá importância a isso. Então, é preciso ter um cuidado maior, a gente devia pressionar a Receita Federal sobre a importância do pagamento do Direito Autoral porque a ilegalidade do Direito Autoral acoberta uma sonegação em escala, em cadeia. Do pequeno, que é o criador, até a grande casa de espetáculo, até a grande produtora de música, até o grande veículo de comunicação.

AS - Mas o que acontece dentro do Congresso? Existem lobbys para a lei não ser cumprida?

JG - Os veículos de comunicação têm uma representação forte no Congresso. Parte dos deputados e senadores são concessionários de rádios e de televisões e têm interesses diretos, aliás, o que é proibido pela constituição. Mas, na verdade, são os donos das emissoras e na maioria das vezes por via indireta, que constroem dentro do Congresso Nacional uma força de pressão contra o Direito Autoral. Aí é que está o problema. O Direito Autoral leva a uma discussão de caráter universalista sobre a cultura. Ele leva a uma discussão geral sobre os direitos da sociedade, sobre os direitos da cidadania, sobre os direitos de quem cria. Como existe um lobby no Congresso dos proprietários dos meios de comunicação que querem continuar lucrando, desconhecendo o Direito Autoral, eles usam todo tipo de pressão para burlar o cumprimento da lei.

AS - Agora gostaria de saber um pouquinho da sua relação pessoal com a música. Você é cearense de Quixeramobim, seu conterrâneo Fausto Nilo é um dos grandes letristas e compositores brasileiros. Queria que você dissesse rapidamente o que você gosta, o que você ouve...

JG - Uma das grandes satisfações que eu tive com este projeto de Direito Autoral foi conviver com pessoas com as quais sempre tive uma relação de profundo respeito e admiração, que foram e são meus ídolos. Então, para mim foi gratificante me encontrar com essas pessoas e defender uma causa que dizia respeito a sensibilidade, a valores, a uma maneira de compreender a música popular brasileira. Geralmente, eu associo a música a momentos importantes da minha vida em todos os sentidos, no bom e no mau sentido. Como também há fatos históricos que me levam a um desejo de subjetividade de sublimação, a um desejo de um lazer reconfortante para o ser humano. Portanto, nesse momento em que a gente vive uma sociedade de números e resultados, uma sociedade que "coisifica" as pessoas e as relações sociais e humanas, eu acho que a música tem um papel fundamental para o reconhecimento do outro, dos valores humanos e dos valores do país. É importante proteger a música, as nossas artes e a cultura brasileira, que, no meu modo de entender, continua sem proteção, apesar de termos uma boa lei.

AS - O Fernando Brant mandou outra sugestão. Daria para o senhor falar sobre as músicas que cantava na prisão e que foram importantes na sua resistência, como é o caso de Viola enluarada do Marcos e Paulo Sérgio Valle?

JG - A Viola Enluarada foi muito importante tanto na época da guerrilha, pois era uma canção que a gente cantava muito lá no Araguaia nos treinamento militares, quanto na época da prisão. Depois, o Cipó de Aroeira (Geraldo Vandré), que a gente cantava e os militares não gostavam, assim como Apesar de Você (Chico Buarque), que eles detestavam. Eram música muito fortes, e a gente tinha uma relação de beleza e ao mesmo tempo de rebeldia com elas. A música não pode ser apenas um instrumento de propaganda política. Ela é a beleza e tem autonomia. Mas ela também manifesta um gesto, uma atitude do ser humano. E isso era muito importante, inclusive na época em que eu estava preso do DOPS em São Paulo, cheguei a ser punido e ir para a cela forte porque eu ficava à noite cantando com outros presos. Cantando Assum Preto, Asa Branca (H. Teixeira e L. Gonzaga), Apesar de Você... Então eles achavam que a gente estava fazendo através da música um protesto contra eles, e aí a gente era punido ou nos jogavam água. A música faz um elo entre passado, presente e futuro que está sempre vivo. É uma linguagem muito fácil, muito concreta e que reflete a riqueza cultural do nosso país, a diversidade cultural do nosso país, a sensibilidade do nosso povo.

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