1982-2002

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A CLT e o país dos absurdos

Um europeu que viesse ao Brasil e fosse infirmado de que o país é governado por um partido social-democrata, o PSDB, mas que o presidente implantou o modelo econômico neoliberal e que o governo age sistematicamente para acabar com os direitos dos trabalhadores, teria dificuldade de entender nossa realidade. Tal europeu ficaria ainda mais confuso ao constatar que o Ministro do Trabalho age sempre como Ministro do Capital. Certamente chegaria à conclusão que o Brasil é um país de absurdos. Mas esta verdade absurda se reforça ainda mais quando se analisa o projeto do governo que procura golpear a CLT, através de um artifício que submete as leis trabalhistas a acordos e convenções coletivas das categorias.

O projeto do governo, que praticamente revoga a CLT, representa a terceira investida contra os direitos trabalhistas. A primeira instituiu o contrato de trabalho temporário e a segunda, estabeleceu a demissão temporária. Todas essas investidas são justificadas com o argumento de que a flexibilização favorece o aumento de emprego. O argumento vem sendo desmentido pela realidade: os dados indicam que a flexibilização não estancou o processo de corte de postos de trabalho, mas aumentou a precariedade das condições de vida dos trabalhadores. Não será o flexibilização de direitos que garantirá o aumento de empregos, mas o desenvolvimento econômico, taxa de juros adequadas e o fomento à produção.

Vivemos num momento histórico em que há um enorme desequilíbrio nas relações entre capital e trabalho. Por conta das novas tecnologias e da reestruturação da organização do trabalho no interior das empresas, os sindicatos vêm perdendo força nos processos negociais. A relação negocial tende a se reduzir cada vez mais a uma relação entre indivíduo trabalhador e empresa. As novas tecnologias permitem, também, grande flexibilidade do capital contra uma mão de obra relativamente fixa. Ou seja: hoje, uma empresa pode se transferir de uma cidade para outra, de um Estado para outro ou de um país para outro, com rapidez e sem grandes dificuldades e custos.

O mesmo não ocorre com os trabalhadores: eles não são transferidos junto com as empresas e, ao perderem o emprego, enfrentam muitas dificuldades para encontrar um novo trabalho. Outra dificuldade trazida aos trabalhadores pela flexibilização produtiva consiste em que as empresas podem mudar rapidamente o perfil dos seus produtos. Quando os trabalhadores não estão qualificados para produzir os novos produtos são demitidos, e outros são contratados. Assim, não bastassem as dificuldades inerentes às mudanças tecnológicas, no Brasil, os trabalhadores são atacados em seus direitos pelo governo. Em muitos países, especialmente os europeus, busca-se hoje uma regulação mediação externas, estatais ou comunitárias, para proteger os trabalhadores diante de sua impotência crescente ante o capital. No Brasil o governo faz o contrário: aumenta ainda mais a impotência e a precariedade do trabalho.

Além disso, o projeto do governo representa um violento golpe à doutrina dos direitos sociais que se afirmou desde no final do século XIX e ao longo do século XX. Esta doutrina funda-se na premissa de que os direitos sociais, para serem efetivos, não dependem apenas da vontade de seus titulares, como ocorre com os chamados direitos de liberdade. A efetividade dos direitos sociais só ocorre mediante uma ação positiva do Estado. O projeto do governo que derroga a CLT anula esta ação positiva do Estado na garantia dos direitos sociais trabalhistas ao propor que sua ocorrência dependa de acordos e de convenções coletivas. Joga para a esfera das vontades e das correlações de forças aquilo que era garantido pela ação imperativa do poder público.

O que justifica a imperatividade da norma jurídica na garantia dos direitos sociais é o reconhecimento de que o trabalhador é a parte fraca na relação com a força do capital. Para que haja justiça e eqüidade, função irrenunciável de um Estado civilizado, a norma jurídica deve ser, neste caso, imperativa na garantia dos direitos sociaia. Por outro lado, a teoria social está cada vez mais inclinada a incorporar a tese de que um conjunto determinado de direitos sociais deve fazer parte constitutiva do rol de direitos inalienáveis e imprescritíveis do ser humano. Até mesmo pensadores liberais aderem a este pressuposto. O avanço desta tendência radica-se em um novo entendimento sobre o conceito de liberdade. A liberdade não deriva apenas da existência de normas constitucionais e legais formais. Muitas pessoas que vivem sob normas de liberdade, mas que têm condições precárias de existência, não são capazes de efetivar uma vida de liberdade e de realização de oportunidades, por conta dos constrangimentos materiais. Transposta esta tese para a esfera dos direitos trabalhistas, não se pode aceitar que os direitos à férias, repouso semanal, 13° salário, licença maternidade, contribuição previdenciária básica, entre outros, sejam submetidos a negociações onde a força do capital normalmente impõe sua vontade.

Com isto, não estamos negando a necessidade da reformulação da CLT. Mas a reforma da CLT deve partir do patamar da garantia de um conjunto básico de direitos trabalhistas. Itens como contribuições sociais, salários indiretos, banco de horas, entre outros, podem ser flexibilizados. A reforma da CLT deve decorrer de um amplo debate democrático, envolvendo os trabalhadores, as entidades patronais, os partidos e o governo. Não pode ser feita a partir da vontade imperial do governo.

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