1982-2002

Artigos | Projetos | Docs. Partidários

Versão para impressão  | Indicar para amigo

Artigos


O estado nacional e a esquerda

Um dos principais problemas na definição de um projeto de esquerda diz respeito ao enfoque acerca do caráter e das funções do Estado nacional. A dificuldade é tanto maior na medida em que nas duas últimas décadas as relações internacionais passaram por profundas mudanças, que incidiram de forma extraordinária sobre as características tradicionais dos Estados nacionais. O fim da Guerra Fria, a internacionalização da economia, o surgimento dos blocos econômicos, as reformas neoliberais, as novas tecnologias, o surgimento de agências internacionais como a OMC, entre outros fatores, deterioraram a capacidade e reduziram a abrangência de governabilidade do Estado.

A principal característica do Estado nacional, tal como ele vigorou até o final da Guerra Fria (1989), consistia na idéia de soberania. A soberania articulava o monopólio do uso legítimo da violência dentro de um determinado território, a legitimidade de criar regras internas e de relacionamento exterior na esfera da autoridade estatal, o gerenciamento da sociedade a partir da noção de um Estado de Direito, a administração de parcela importante da economia e a sua regulação nacional etc. No século XX os Estados nacionais revestiram-se nas formas de um capitalismo regulado e de um socialismo estatal. As mudanças operadas a partir de 1989 têm o sentido geral de indicar a perda da capacidade de governabilidade, entendida também como perda de parcelas da soberania tradicional. Houve também uma sobreposição de processos e agências de governabilidade internacionais sobre as esferas nacionais. Pelo caráter caótico desse processo, várias esferas da vida social, econômica, política e cultural caíram em zonas de não-governabilidade estabelecendo-se relações puras de mercado, prevalecendo os mais fortes.

A desregulamentação de relações, o enfraquecimento geral da autoridade e o aumento da pobreza, são algumas de decorrências dessas mudanças. A desregulamentação proporcionou também a perda de parcelas de soberania do Estado-nação em favor de agências de governabilidade internas, como regiões, estados federados, municípios, agências ditas "não-governamentais" e assim por diante. As novas tecnologias, por exemplo, além de aprofundar a contradição entre as características cada vez mais móveis do capital em contraposição a uma base relativamente fixa do trabalho, reduziram a capacidade de controle e de homegeinização do Estado sobre a sociedade. Apesar da perda de parcelas da soberania tradicional, ela, contudo, não foi eliminada. Mas muda de características.

Se é verdade que a política e a governabilidade não podem mais ser concebidas em termos de atividade exclusiva do Estado, o fato é que os Estados nacionais permanecem ainda "soberanos" no que diz respeito ao controle dos povos e da territorialidade. Parece que o desafio que está posto hoje para a esquerda é o de construir e interligar redes de governabilidade, levando em conta os condicionamentos internacionais de um lado, e intra-estatais, de outro. A perda de parcelas de soberania e de funções de governabilidade não retira do Estado-nação a condição de ser o epicentro da reconstrução de novas funções e esferas de governabilidade. Em primeiro lugar, porque normas internacionais só adquirem validez se forem fundadas em processos decisórios respaldados pela legitimidade dos Estados-nação. O direito e as normas internacionais tendem a legitimar-se a partir de uma sociedade internacional configurada como uma associação de Estados que representem comunidades políticas nacionais.

Em segundo lugar, se o Estado, entendido como ordem institucional de uma sociedade autogovernada, ainda controla povo e território, ele continua sendo a fonte legitima da autoridade da lei interna. Na medida em que hoje o sistema político e social é mais complexo e pluralista, mais importante se torna a autoridade da lei. Superar as zonas de anomia e as lacunas de governabilidade torna-se decisivo para evitar que prevaleçam poderes das estruturas privadas ou as relações puras de mercado, que vêm impondo incertezas, insegurança e deterioração social.

O Estado já não dispõe de instrumentos poderosos de intervenção na economia, como acontecia no Estado nacional tradicional. Mas isto não significa que não haja necessidade de regulação econômica e social. Num contexto onde a produção econômica se define pela intervenção dos insumos do conhecimento e da tecnologia e pela mobilidade do capital e desregulamentação das relações de trabalho, o Estado deve desempenhar novas funções. Mediar conflitos, impedir que a modernização desestruture coletividades sociais, estabelecer contrapartidas ao capital, são algumas das novas tarefas que se impõem ao Estado. Nos processos de modernização da produção, o Estado deve desempenhar um novo papel de indutor, gerindo programas de qualidade, principalmente para as pequenas e médias empresas, de requalificação da mão-de-obra, buscando estabelecer uma nova regulamentação das relações de trabalho. Adensar as cadeias produtivas existentes, estruturar novas cadeias, financiar a ciência e a tecnologia, induzir a modernização da infra-estrutura, incentivar formas variadas de economia solidária, coordenar a competição impedindo que ela seja destrutiva, são novas exigências da ação do Estado. Numa economia internacionalizada, o Estado passa a cumprir um papel decisivo na articulação e inserção dos setores dinâmicos da produção no contexto dos mercados globais. Definir interesses nacionais, orientá-los internacionalmente e apoiá-los com uma diplomacia comercial competente, passou também a ser uma nova atividade estratégica do Estado.

Busca no site:
Receba nossos informativos.
Preencha os dados abaixo:
Nome:
E-mail: