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Política e moral

Ao sentir-se premido e condenado pela opinião pública, o governo inventou um ardil procurando apresentar-se como vítima de uma campanha incidiosa, orquestrada pela mídia e pela oposição. Alguns intelectuais e alguns articulistas de grandes jornais secundaram o ardil e vêem na oposição uma atitude "moralista" ou "fascista", que teria como intuito promover uma "caça às bruxas" e desestabilizar o governo. A acusação à oposição e ao "jornalismo moral" não passa de um mero artifício de defesa de um governo acuado e de um crasso equívoco daqueles que acreditam nele.

O ardil governista estrutura-se numa tese acadêmica ou numa determinada interpretação das idéias do pensador italiano, Niccolò Maquiavel, que no início do século XVI escreveu o famoso livro, "O Príncipe". A concepção de Maquiavel acerca da política, em parte, foi absorvida e reescrita pelo sociólogo Max Weber, em "Ciência e Política duas Vocações". De acordo com essa interpretação — identificável nas posições sustentadas pelo filósofo José Arthur Giannotti e pelo presidente-sociólogo Fernando Henrique Cardoso — a ação política (do governante) não deve ser julgada moralmente, mas pela vantagens que oferece ao Estado. O fim próprio da política seria a conquista e a manutenção do poder. A política, na sua autonomia, não seria moral e nem imoral, mas amoral.

Foi com base nessa interpretação que o presidente Fernando Henrique, em aula inaugural proferida em 1998 na Universidade Sarah, em Brasília, sustentou que "o homem de Estado não pode dizer tudo o que sabe" e que "é obrigado a não dizer" ou a omitir-se, em determinadas circunstâncias. De forma semelhante, o professor Giannotti escreveu na Folha de S. Paulo (17/05/01), que "as leis guardiãs das leis que regem a 'polis', para serem praticadas, requerem uma zona de amoralidade sem a qual não poderiam funcionar". A interpretação que se faz de Maquiavel é sustentável por uma longa tradição acadêmica. Mas não é a única. Outros intérpretes argumentam que a moralidade subjacente ao Príncipe está orientada para moldar a conduta do governante não só para conquistar e manter o poder, mas para exercer o bom governo. Na passagem em que Maquiavel escreve que as "maldades podem ser bem praticadas", ele acrescenta que, além de necessárias e de cessar em seguida, devem se transformar em vantagens para os governados.

À parte das possíveis interpretações do pensamento de Maquiavel, a tese de Giannotti de que "as leis requerem uma zona de amoralidade" é insustentável. As leis, por expressarem o universal, o comum e válido para todos, requerem a moralidade e o ético. É por isso que um presidente dos Estados Unidos não pode mentir quando inquirido por um juiz ou que, quando alguém presta um depoimento a uma CPI ou em juízo, deve fazê-lo sob a pressuposição de dizer a verdade. Sem a pressuposição da moralidade das leis, instaurar-se-ia o reino da astúcia, da escuridão, das maquinações secretas e da razão de Estado.

Se política e moral não se confundem, a "zona de amoralidade" passível de ser sustentada deve dizer respeito à ação política, não à lei. Note-se também que Maquiavel aconselhou monarcas absolutistas, cuja soberania fundava a lei ou legitimava ações sobrepostas às leis. Nós vivemos na democracia, no Estado de Direito, que limita a ação do governante, exige um padrão de transparência do poder público e supõe o império da lei. Claro que com isso não se quer dizer que a ação política está pré-determinada pela lei. A lei apenas restringe o âmbito de imprevisibilidade da ação e serve de medida e critério para o julgamento da política.

Convém reiterar mais uma vez que não foi o PT quem desencadeou a atual onda de denúncias. A maior parte delas emergiu da própria base governista e outras foram reveladas pela imprensa. A oposição apenas cumpriu com o seu dever político ao exigir a investigação usando mecanismos constitucionais como CPIs, acionando o Ministério Público etc. O clima de suspeição que recai e se reforça sobre o governo deriva de dois motivos. O primeiro, pela evidência de alguns escândalos como a Sudene, Sudam, Banpará, banco Marka, entre outros. O segundo, pelo sistemático bloqueio das investigações e da instalação de CPIs patrocinado pelo governo.

Tudo isso, somado ao espantoso volume de recursos desviados e à ações astuciosas, como a criação da Ouvidoria da República, de cujas investigações ninguém sabe ou ouviu falar, corroeram a credibilidade do governo afetando seriamente a governabilidade do país. Querer culpar a oposição por um suposto clima inquizitorial não passa de uma manobra que já nasce desacreditada. Afinal de contas, como observou o editorial do jornal O Estado de S. Paulo (12/05/01), a operação abafa da CPI da corrupção representou um "deprimente strip-tease moral do sistema político brasileiro".

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